Flávio R. Kothe é professor titular de Estética na Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Essa pergunta me parece pouco pertinente, talvez só sirva à vaidade. Não se pergunta a uma mulher grávida se ela quer parir. O que hoje é publicado, em geral não vale a pena ser lido; o que mais mereceria ser lido não consegue ser publicado. O que se publica é banal e previsível. O inovador é impedido de aparecer; se aparece, é punido.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Isso não faz diferença na qualidade da produção, que é o que importa. Escrevo por necessidade interior, para exorcizar fantasmas. O duende de Lorca não tem hora para aparecer. Na ditadura, jogado para fora das universidades, tive de sobreviver da escrita, como tradutor, trabalhando catorze horas por dia, inclusive nos fins de semana. Eu não podia dizer o que pensava, mas ao menos pude traduzir alguns autores que diziam o que eu gostaria de dizer: Kafka, Heinrich Mann, Benjamin, Adorno, Marx, Celan, Nietzsche.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nulla dies sine linea. Não por provérbio, mas por coação interior. Eu tenho de sustentar o escritor como professor. Se não consigo cumprir metas, faço o que posso. Embora eu tenha nível para publicar nos grandes jornais e editoras, há trinta anos quase não recebo mais encomendas. Percebo, no entanto, o limite do não-dizer que permeia o que é publicado e sei que me interessaria sugerir algo que vai além desse horizonte. Muitos dos que escrevem precisam pagar seus livros para serem lidos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depende do gênero. No ensaio, em geral tem sido cursos que ministro. Já fui crítico literário pago, mas essa profissão acabou. Poemas e contos em geral derivam de anotações, que depois são retrabalhadas. Novelas e romances são um fluxo sucessivo mais longo. Nas traduções tem-se um trabalho, que precisa ser revisto até ficar bom. Em 1990, vivendo em Rostock como professor titular visitante, escrevi um romance histórico, O Muro, sobre o choque entre os sistemas e a Queda do Muro como foi vivenciada desde dentro. Na época, Jorge Amado, que estava em Paris, leu o romance e quis publicar na Record, mas algo não deu certo e guardei o texto por 25 anos. Fiz revisão e publiquei em 2016 na Editora Scortecci.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Meus trabalhos longos me deram problemas mais porque foram publicados. Há muita inveja e maldade na universidade. Meus últimos livros foram projetos de pesquisa que foram todos rejeitados pelos ad-hocs dos órgãos financiadores, considerados impossíveis de serem feitos: isso para eles, por eles. Eu fiz. Ainda que lamente, não me sinto culpado por não fazer best-sellers. O texto de qualidade está acima do horizonte do público comprador, que, aliás, quase não existe no país. Em geral consigo atender bem às encomendas, mas, vivendo fora do eixo das grandes editoras, estou marginalizado desde 1985. Eu não tenho uma instituição que me dê apoio e cobertura.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso várias vezes, talvez sempre uma a menos do que seria necessário. Quando se retoma um texto após anos, percebe-se melhor onde mudar. Um texto precisa repousar para amadurecer, como a massa do pão. Raramente mostro algo a alguém. Assumo a culpa sozinho. Recebi, por exemplo, em 1985, o prêmio nacional por traduções de Paul Celan, mas eu refiz várias delas em edição recente, de 2016, A poesia hermética de Paul Celan, publicado pela Edunb.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
O computador facilita a revisão, a reescrita. Em geral, a primeira versão é manuscrita. Ter melhores máquinas não melhora por si a qualidade do texto. Tenho publicado ultimamente mais de 160 haicais no facebook.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Desde pequeno eu lia muito. Era hábito familiar. Estudei Letras e Direito, mas larguei o Direito por não acreditar que a justiça se fizesse pelo direito positivo nem pelo sistema vigente. Vivi a contradição entre ato institucional e constituição. Uma noite estava lá o professor a ensinar direito, no dia seguinte ele era ministro da justiça. Da ditadura. Fiz mestrado, doutorado, livre-docência e vários pós-doutorados em literatura nalgumas grandes universidades do exterior. Levei a literatura a sério, achando que haveria mais liberdade nela do que no Direito, mas me enganei. Escrevi sobre isso nos meus livros sobre o cânone literário brasileiro publicados pela Edunb, em 2000 páginas uma revisão crítica do que é ensinado nas escolas e faculdades. Mais recente é o livro Arte Comparada, que tem umas 900 páginas e nele discuto questões estéticas básicas. Juristas não aceitam que literatos escrevam sobre Direito e Justiça, mas eles se metem a escrever literatura e sobre literatura, em geral como ornato e ornamentação. Entre a realidade vivida e aquilo que se pensa há um abismo que gera ideias e imagens para a escrita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Publiquei mais de 40 livros e uns 400 trabalhos. Se giro em torno da escrita, não é porque eu queira, mas porque nasci assim. Eu não escrevo o texto, o texto é que se escreve através de mim. Só a obra que usa o autor para se fazer é que vai além dele. A obra se obra pelo autor. Escrevi várias teses. Se a pergunta é relativa ao doutorado feito na USP, na época eu disse ao meu orientador que gostaria de aprofundar a discussão dos problemas que afloravam entre Benjamin e Adorno, mas ele disse que era para eu continuar com a proposta original, descritiva da relação entre eles, o que foi uma limitação, um defeito que eu corrigi em parte em alguns ensaios posteriores. A tese foi publicada na Ática e se esgotou. Detalhe: entre eu entregar a tese e poder defendê-la me fizeram esperar 10 meses, mas acho que devemos poder aqui discutir o que esteja na ponta do pensamento mundial.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Só se deve escrever o que não se pode ler porque ainda não está escrito. Estudo cada dia, sempre menos do que gostaria. Escrever é uma vocação e uma coação, não uma vaidade. Aos 17 anos fui submetido, em 1964, a interrogatório no quartel sobre textos que eu havia publicado em jornais estudantis. Havia um soldado armado na porta. Aprendi cedo que escrever é perigoso. Não creio que tenhamos real liberdade de expressão pública. Há um controle generalizado. Exclui-se quem vai além de certas linhas invisíveis. O que se supõe ser liberdade é apenas irrelevância pública da publicação. O Estado de Direito, tão ameaçado hoje, pressupõe que só seja direito o que o Estado diz que é direito. A liberdade de pensamento começa, no entanto, depois das cercas do aprovado como correto.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Depende do gênero literário. No ensaio longo, há um esquema geral a ser preenchido passo a passo; na crítica literária, tem-se por objeto uma obra e se discorre sobre a impressão que ela causou e a avaliação que provoca; no romance, há um roteiro, um planejamento a ser seguido; no conto, tem-se uma dança de fantasmas, a presença de figuras e situações que querem ser ditas e das quais só nos livramos escrevendo; na crônica, um momento da existência deve ser sintoma de algo maior; no poema, tem-se uma inspiração momentânea, em que imagens já aparecem mediadas por palavras que é preciso transcrever. No avião, pousar é mais difícil que decolar; na escrita literária, mais difícil decolar do que pousar, mas, mesmo assim, a frase final é um fecho que exige ser bem feito, para deixar ecoando o texto todo. O meio é que sustenta os extremos.
Eu não planejo tudo, a criação teórica e literária depende de um fluxo interior, de origem inconsciente, que aprendemos a atender, seguir e controlar para que seja produtivo. Sem inspiração não há boa criação. O autor é como que tomado por um dáimon, uma força interior que chega a ser uma entidade própria: a obra usa o autor para se obrar, para se fazer e depois se livrar do autor para ter vida própria, independente. Se ela vai ter essa vida não depende do autor nem dela, mas de uma variável estranha, inconfiável: os potenciais leitores. Uma boa obra pode ser esquecida e perdida, mas se ela não for boa é mais provável que se perca.
Na obra extensa, há, após muita divagação, a cristalização súbita de um esquema que estrutura a multiplicidade dos dados e conceitos; na obra curta, subjacente à intuição que reúne palavras, imagens e sentimentos, temos uma longa reflexão, que na maior parte não é consciente, mas que súbito aflora e precisa ser fixada no papel para que a dança dos espectros se organize e faça o baile da obra.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu trabalho ainda como professor, apesar de idoso, para sustentar meus dependentes e manter em mim o escritor. O ideal para mim seria não ter de trabalhar, poder me dedicar ao estudo e à escrita. Estamos num país em que estudar e escrever não são considerados trabalho, não geram remuneração. Não há respeito pelo intelecto, há temor. Eram no passado atividades a que podiam se dedicar os que tinham pessoas que trabalhavam para elas, garantindo-lhe o ócio. Eu nunca tive isso, também não meus antepassados. Aprendemos a dar valor ao esforço. Tive momentos felizes de vida em que, mesmo ganhando pouco, podia me dedicar ao estudo, à escrita.
Há três tipos de autores entre nós: os que pagam para ser lidos; os que não ganham nada pelo que escrevem; e uns raros, que eu quase não conheço, que conseguem se manter com o que escrevem. Não se trata de uma gradação simples de qualidade. Não se costumam aqui pagar direitos autorais, o que significa que o labor e esforço do autor não são retribuídos em termos financeiros. O autor pode ter obras anunciadas em sites de venda, sem que ele receba nada por isso.
O leitor acha que o autor recebe a maior parte do preço do livro, não sabe que o autor em geral nem recebe os dez por cento que deveria, não tem controle sobre a quantidade de exemplares que é impressa e vendida. Ele é o elo mais fraco, embora tudo parta dele. O que faz é tão precioso que não está tendo preço nenhum. Não é assim onde o capitalismo é mais desenvolvido. Na década de 1980, quando dependi da escrita para sobreviver, grandes editoras como Abril e Ática tratavam de pagar devidamente. Um lado precisa do outro e ambos têm o interesse de produzir um bom livro. Precisam se entender e cooperar.
Há, portanto, um problema mais grave do que ter um ou mais projetos a tocar. A gente faz o que pode, numa época em que a mentalidade autoritária e pouco esclarecida avança, querendo submeter a criação às suas diretrizes. Fazer cultura é resistir. Ela sempre precisa ver o outro do que está aí, ela é um gesto na direção do futuro, um legado que preserva e nega o passado.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Eu não me dedico à escrita porque quero, por ter motivação de convencer, aparecer ou doutrinar. Desconfio do narcisismo e da intenção missionária. Queremos desenvolver a razão crítica e a imaginação, fazendo algo interessante. É antes uma necessidade interior, a doma dos fantasmas que nos povoam e dançam em nós. Sinto que tenho uma contribuição a dar. Procuro fazer algo que se sustente por si, que não seja frágil e inconsistente. O texto precisa ser denso e dizer algo que nunca foi dito antes. Deve-se escrever somente se aquilo não estiver disponível para ser lido. É preciso conhecer as grandes obras, não fazer de conta que se está inventando algo que já foi dito melhor.
Eu devia ter uns 10 anos quando resolvi separar um caderno e escrever ao menos duas páginas cada dia, seguindo o princípio antigo: “nulla dies sine linea”. Errei ao seguir a profissão de professor neste país, mas me sentia infeliz em trabalhos burocráticos e administrativos, enquanto na sala de aula eu não sinto o tempo passar e, parece, os alunos prestam atenção, querendo aprender. Publicar como professor gera antes despeito que respeito. Os valores acadêmicos ainda não foram interiorizados. Várias vezes na profissão sofri rasteiras, como se derrubassem a escada com que eu estava pintando uma parede, num emprego em que me sustentava: eu ficava pendurado no pincel, não sabendo como me sustentar, mas vendo o traço na parede ou no ar. Se o grupo do entorno imediato me rejeitava, a escrita publicada me permitia lançar uma ponte no além. Quanto mais eu fui derrubado durante a ditadura, tanto mais gente de alta qualidade encontrei entre perseguidos e discriminados. Eles me acolheram porque viam algum mérito em mim.
Não se trata de diletantismo nem de vontade de sobreviver após a morte ou de aparecer socialmente. Eu tenho até receio que me leiam. Não só porque não vão entender o que intentei escrever, mas vão se desviar do que realmente importa.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
A tradução é um modo de estudar em detalhe um autor. Eu pude traduzir autores que me impressionavam, como Kafka, Celan, Heinrich Mann, Süsskind, Marx, Nietzsche, Benjamin, Adorno. Aprendi muito com eles. Lamento não ter traduzido outros, em parte por falta de oportunidades, em parte pela necessidade, certa ou errada, de me dedicar a fazer meus próprios textos.
Eu não tinha preocupação em desenvolver estilo próprio e sim de conhecer bem os grandes escritores, ter uma formação extensa e intensa. Fiz graduação em Letras, larguei o Direito e a política; em teoria literária fiz mestrado, doutorado, livre-docência e vários pós-doutorados fora do país. Eu conheci de perto grandes mestres mundiais. Procurei me tornar um profissional competente. Quanto mais e melhor eu me preparava, mais eu era excluído do ensino das Letras no Brasil. Eu me sentia culpado por perder ou não conseguir empregos, não percebia que isso acontecia porque eu via coisas que os outros não viam ou não queriam que se visse.
Havia essa distância com os professores (mas não com os bons escritores), e essa distância gerou por diferença o estilo. Cândido dizia que meu texto prendia a atenção. Fui eliminado de empregos, barrado em outros, perseguido, impedido de lecionar onde poderia ser mais útil, nas Letras da UnB passei 28 anos sem progressão funcional, sendo excluído por 15.
Sacrificando descanso e família, insisti em escrever ao menos parte do mais relevante do que eu pretendia ensinar e não estavam deixando. Por anos a fio escrevi sem tempo e sem perspectiva de ser publicado, mas sem me preocupar com o que eu tinha ultrapassado. Agora alguns livros antigos e esgotados estão sendo reeditados, numa versão revista e reescrita por mim: Literatura e sistemas intersemióticos, Fundamentos da teoria literária, O cânone colonial.
Há um site que tem procurado confirmar comigo se a citação que é feita de mim seria correta ou não. Geralmente é, aparecem umas cinco novas por dia. São centenas. Obras antigas e até esgotadas continuam sendo citadas.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Para os que buscam ensaios, entre os “meus” leitores, recomendo as três obras abaixo:
- Fundamentos da teoria literária – confronta a abordagem idealista, materialista vulgar da literatura, para se abrir então ao estudo da dialética e da desconstrução crítica;
- Literatura e sistemas intersemióticos – busca conceituar diferentes sistemas de signos e ver como funcionam entre si, servindo de fundamento para o ensaio A narrativa trivial;
- O cânone colonial é o primeiro dos livros sobre o cânone brasileiro, em que se estuda a formação da mentalidade totalitária e racista no Brasil, preservada e cultuada no cânone.
Para os que preferem ficção, tenho três livros recentes publicados pela Editora Cajuína e vendidos pela Amazon, Estante Virtual, Cultura e outras redes de livrarias:
- Casos do acaso – contos;
- Segredos da concha – contos;
- Sem deuses mais – poemas.
Dos clássicos eu recomendaria A Ilíada de Homero, As fenícias de Eurípides, Don Quijote de Cervantes. Aliás, eu recomendaria todas as grandes obras. Os alunos brasileiros deveriam ter acesso às grandes obras da literatura mundial, em vez de serem doutrinados numa visão restrita do cânone brasileiro. A grande literatura deveria fazer parte da formação em todas as profissões. Não se ensina porque os governos querem um povo que obedeça, não que pense por si. Esquerda, direita e centro estão unidos nisso. Ensinar boa arte e boa teoria faz sentido, embora nós, os professores, tenhamos fracassado no que seria a nossa missão. Há uma acomodação muito grande por aí.