Flávio Morgado é poeta, autor de Um caderno de capa verde (7Letras, 2012) e Uma nesga de sol a mais (7Letras, 2016).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim. Tenho uma rotina matinal bem típica de um professor de colégio. Acordo quatro vezes na semana entre cinco e seis da manhã e tenho a manhã toda preenchida com as aulas. Em geral, meu momento de estudo e escrita acaba sendo o que essa rotina mais sistemática deixa de vácuo: leitura no transporte público e bloquinhos infinitos de anotações na mochila. Também por isso, acabo sendo mais produtivo na parte da noite. Quase sempre atravesso a madrugada se um poema já está prestes à folha, e antes de dormir é sempre o momento que escolho para revisão de um poema da madrugada anterior ou escrito no ônibus, entre as aulas, entre as outras mil coisas. A conquista do produtivo ócio ainda nos é um objetivo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Nesse sentido eu respeito ainda mais e legitimo o escritor de prosa, gênero que exige o trabalho diário e a disciplina das horas muito mais do que ao poeta. Não se escolhe a hora de um poema. Mesmo que sob encomenda, ao menos comigo, aquilo vai demorar milênios a sair, há todo um percurso até os versos escritos. E um percurso que obedece a outro registro, outra temporalidade. Quase sempre o poema ainda me é um susto, um “espanto” (para usar um termo bem do Gullar), uma tentativa justa de ordenar algo que previamente é só desconcerto, inexprimível. A ocorrência desse fenômeno para que de fato provoque a evocação de um poema tem que ser abrupto, disruptivo à rotina. Estar atento a esses estampidos diários já é um ofício, algo que pra mim muito se difere da noção corrente de “trabalho”. Até mesmo o que se pode chamar de “pesquisa” é quase sempre a amarração de algo que já se desenvolve corporalmente, existencialmente. É importante estar atento ao que se é feito hoje, mas não no ofício estritamente crítico, mas sobretudo pelo diálogo. Ler os clássicos, mais por emulação do que erudição. Ir aos eventos, pelo prazer em vez da política. Por mais disciplinado que eu seja, em matéria de poesia eu realmente acredito na espontaneidade, na técnica que escuta ao próprio poema, no ritmo que respira o que se quer comunicar. Não sei se conseguiria pensar em um ritual que não o de esteticamente sempre se colocar sob o risco da vida, esse sim. Acho que nesse sentido, em contrapartida à faina do prosador, o poeta tem esse privilégio de apenas ter que estar, na acepção mais profunda desse termo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Atualmente estou com dois livros na cabeça. Um deles com poemas já bem adiantados, outro menos. Para o primeiro livro eu compilei tudo que tinha até ali, dos 16 anos até os 23, foi muito mais corte do que acréscimo. No segundo aconteceu algo louco: publiquei tudo que tinha escrito desde a publicação do primeiro, sobrou nada, quatro anos de distância entre eles. Então fica complicado pensar em uma meta quando eu não pensava diretamente em projetos. Dessa vez é a primeira em que penso em livros com direcionamentos, prazos, número de poemas. Achei que isso me ajudaria a criar uma meta, mas como disse antes, isso é impossível. Então tem um dia em que escrevo três poemas, na minha cabeça já penso “maravilha, tô no lucro, sem problemas um silêncio maior”. Às vezes não se esgota esse atravessamento criativo, escrevo mais dois, mais um ao longo da semana. Por outro lado, já cheguei a ficar seis meses sem escrever um verso. Nesses momentos, ansioso convicto, prefiro me poupar a aflição de me torturar em não estar produzindo e leio mais, uso esse tempo para burilar os inéditos, pensar o caminho que quero seguir. No livro, nos poemas, estou o tempo todo, ainda que não necessariamente os escrevendo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Geralmente eu sempre tento escrever. Nem sempre será o satisfatório, o encerrado.
Sobre a pesquisa e a escrita, vou dar dois exemplos recentes. Tem um dos poemas que escrevi nos últimos meses (Litígio à bandeira) que estava em sala de aula. Aula sobre “Proclamação da República no Brasil”, explicando a matéria até que no meio da explicação eu abro pra uma discussão mais pessoal, autocrítica e digo “minha cara não encobre minha culpa mas não quer dizer que venha a extinguir essa estranha sensação de carregar o que condeno” (na ocasião falava sobre a não absorção dos negros na sociedade). Uma sala só de brancos, classe média alta. Naquele momento eu vi que tinha um potencial verso e o sentimento necessário pra seguir com ele. Para, anota. Depois pensa o caminho que o poema deve seguir. Quero algo mais historicizado, então preciso pesquisar, preciso amarrar esse sentimento de revolta, preciso justificar essa mea-culpa, preciso compor a persuasão sobre o público que mais quero atingir. Tem pesquisa aí? Claro, mas ela nunca abdica do susto inicial e nem pode escondê-lo.
Outro exemplo é um poema sob encomenda. Atualmente preciso escrever a partir de uma fotografia do Robert Mapplethorpe do Andy Warhol. Preciso ler sobre fotografia, conhecer o sistema de referências do cara, conhecer a relação com o personagem. Tudo isso compõe essa bagagem, agrega. Mas o resultado ainda é fruto do enfrentamento imaginativo com a obra. Todo o resto se completa e aparece no nascimento desse verso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando se começa muito novo na literatura, tudo isso na primeira publicação já é um grande aprendizado. Seja qual for a repercussão do primeiro livro, a ansiedade será gigante e quase sempre destrutiva. Por isso, que, sinceramente, eu prefiro não responder às travas, ou talvez respondê-las da única forma possível: vivendo. Por mais clichê que soe, qualquer pessoa que se dê essa importância, que coloque o papel da poesia nesse centro de fragilidade egóica vai encontrar um muro à frente. Claro que é normal, mas eu acho que o jeito é combater. Isso mata a importância desses espantos diários que coloquei anteriormente; isso mina a atenção do poeta.
Há um certo respeito ao espaço concreto dos poemas, não só no que se refere a lhe expurgar tudo que for sobra, como reconhecer a sua temporalidade outra. O maior exemplo disso é o Gullar, que já citei antes: ficava dez, doze anos sem escrever. E por outro, há quem publique anualmente. Isso vai muito do ritmo, da vivência, do momento de cada um. Mas eu ainda acho impossível me lançar a qualquer projeto que não seja fruto de uma investigação bem íntima antes. E esse tipo de investigação não faz hora extra ou bate cartão. É um método tanto do campo da subjetividade que exigir frequência me soa não compreendê-lo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes. Eu gosto de fazer aquela revisão imediata, de ler em voz alta mil vezes ainda naquela euforia. Gosto da leitura amanhecida do dia seguinte, mais lúcida, mais crítica. E sempre tive a sorte do bom diálogo. Divido minha casa com um irmão que considero um grande poeta (o Italo Diblasi), que sempre é uma escuta urgente aos poemas. Mesmo antes, sempre tive a sorte de contar com a camaradagem de outros poetas, até mais velhos, bem mais experientes que eu. O Salgado Maranhão teve esse papel fundamental no que ele chama de “carpintaria” do primeiro livro, mesmo o Ferreira Gullar, o Antonio Cícero. Hoje, até pela proximidade afetiva, os primeiros leitores são os poetas amigos: Marcelo Reis de Mello, Leonardo Marona, Rafael Zacca, Adelaide Ivánova… hoje essa escuta é muito mais afetiva e fundamental. E isso é de uma importância muito grande, para além de técnica, digo até na construção estética do sujeito-poeta, o acolhimento, os pares, tudo isso é inexcedível para continuar fazendo, acreditando. O poema ganha em escuta e em vivacidade.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou péssimo. Tenho uma dificuldade terrível com o computador. Não fez parte da minha adolescência a comunicação digital, então até hoje o computador é uma esfinge. Não sei baixar filme, preencher planilha, nada disso. Tenho uns dez cadernos que vou ganhando ao longo do ano e até hoje prefiro escrever à mão. Nem mesmo o bloco de notas do celular sei usar. À mão sempre, por romantismo e limitação.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Escutar, prestar muita atenção, apurar a própria atenção. Não sei se tenho um hábito. Eu diria que ler, mas isso não dá para ser colocado como método, é prazer. O máximo que pode acontecer é direcionar a leitura. Esse ano como terminei a dissertação de mestrado e o tema foi em Crítica de Arte, tanto para me manter focado quanto para não perder o fio criativo, eu me propus a escrever poemas sobre telas, esculturas, o que ali me estimulasse. Um livro que seria o resultado, a rebordosa de um trabalho acadêmico. O outro projeto de livro tem um apelo político maior, uma busca de identidade, uma investigação quase ideológica sobre o papel do poema: amplio minha leitura política, busco indicações. Até o fato de esse ano ter me proposto ler apenas latino-americanos é de certa forma resultado desse ímpeto do livro. O cuidado aí passa a ser não se deixar contaminar por uma imitação das leituras. Em geral, não só para me aprofundar sobre um tema eu escolho um livro, mas para conviver com ele.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muita coisa. Pude ter mais tempo e ressonância dos pares para aprofundar aspectos que já desejava mas não me sentia seguro. E a segurança, sempre tão cara, é fundamental nesse processo. Não necessariamente uma autoconfiança enquanto artista, mas aquela certeza de que o poema é resultado de uma entrega, e que essa entrega é mais importante que o escrito, e que por isso, não pode ser ela tão constante como gostaríamos, que um poeta não se faz só de versos (como já dizia o Torquato). A segurança dá essa calma, e isso chega aos versos. Aumenta a libido criativa.
Se eu pudesse dizer algo ao Flávio do primeiro livro? “Relaxa. Muito interessante essa vontade de síntese, mas não tem problema falar um pouquinho a mais não”. No mais: “bela coragem, moleque!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O dois que estou escrevendo. Um pela validade, pela urgência, pelas circunstâncias adversas a tudo que ele quer levantar como bandeira. Esse, inclusive, é o que mais me deixa ansioso exatamente por essa necessidade mais imediata. Mas ele sairá. Com sorte, antes de um Bolsonaro chegar ao Planalto.
O segundo, que dialoga com as artes plásticas, é um livro que sempre achei que mesmo que seu resultado técnico não seja o esperado ou o mais compreendido é já o início de um diálogo que sempre foi produtivo e que hoje essas artes voltam a se aproximar, mas ainda muito timidamente. Pensar o poema também como um exercício crítico, um desdobramento da obra de arte. Não está sendo um livro fácil de fazer, porque não é fácil alcançar esse limite – do poema manter sua integridade e carregar ainda assim alguma chama do que se refere –, esse lugar. Mas fazê-lo já é abrir esse caminho ao livro que quero ler e ainda não existe.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Acho que desde o terceiro livro (Preciso/2019) que a ideia de projeto vem se fortalecendo mais no que eu escrevo. Mesmo que o segundo livro tenha uma série de temáticas que o atravessam, ainda assim acho que funciona como uma antologia. O projeto acaba por se tornar interessante a partir do momento em que pode se subordinar a um desdobramento maior de um mesmo tema. Preciso, por exemplo, gosto de dizer que se ele tivesse um tema, seria a “agonia de eros” (e tudo que isso perpassa, a política, a ética, o amor). Meu próximo livro é resultado de um périplo de mais de vinte cidades com o tarô de Marselha e os mil atravessamentos que esse deslocamento (geográfico e conceitual, afinal são poemas a partir dos jogos de tarô) proporciona. O estímulo é esse desafio. Muitas vezes há um planejamento, mas quase sempre é se permitir essa entrega ao desconhecido e jogar para a edição o contexto, os encaixes.
Não sei se o mais difícil é a última ou a primeira palavra, é raro ser acometido por uma frase que já dê conta de tudo. O poema é uma construção, não pode estar nada gratuito ali. O corte é o início do efeito. O mais difícil é sempre a próxima frase, a página em branco, a construção silenciosa do elo entre as partes.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Quando minha vida tinha um controle do tempo relacionado ao mercado de trabalho formal, e principalmente sendo professor, o que acontecia era a escrita aparecer no tempo que sobra. Hoje que basicamente me sustento com projetos de escrita e oficina, os famosos “freelas”, a organização passa a ter como ponto de partida os próprios projetos, o que me facilita a organizar mais de um ao mesmo tempo. Faz menos de um ano que é assim a minha organização e nunca tantos projetos caminharam em paralelo. Não sei o quanto dura, mas a ideia é aproveitar enquanto ainda há tempo.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
O espanto, a vontade de prolongar uma pergunta, o lirismo oculto e imanente de todas as coisas. A ausência de motivo, o tédio, uma boa frase do Borges ou do Piva, uma conversa, atualmente tudo é motivo.
A lembrança mais distante que tenho da ideia de escrever e assumir isso como uma função é de garoto. É a de escrever os primeiros poemas e achar que eles cabem em algo maior, em algo que os possibilite uma comunicação, o livro. Eu lancei meu primeiro aos 22 anos, mas ele já vinha sendo escrito desde sempre. Acho que o poema mais antigo desse primeiro livro eu tinha 16 anos quando o escrevi. Eu ainda era um lateral-direito, e óbvio que uma mudança tão drástica de devir (jogador-poeta) só pode exigir uma afirmação bem bruta, bem delirante. Eu devia ter 17, 18 anos quando decidi “agora não jogo mais, quero ser poeta”.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
A dificuldade de todos e que ainda me encontro. A ideia de encontrar um estilo é completamente anti-artística. Porque a suposta chegada ao estilo, ou seja, a uma zona de conforto da produção, ainda eu ela possa ser fundamental para um livro, para o poeta como um todo, o artista, ela significa ocupar um lugar de poder, ainda que sob si mesmo, e isso já é perigoso. Nesse sentido é Nietzsche: não tem que buscar lugar de poder, necrosado, imóvel. Mas os lugares de potência, os desdobramentos, a aporia, o que não para nunca de se dizer. Não me interessa a ideia de uma forma de dizer particular, mas me interessa uma forma particular de refazer as coisas ditas. E pra isso, só permitindo a insegurança e o desterro de se largar em cada livro e se buscar (mudo, balbuciante) no início do poema que está por vir.
Da mesma forma que a gangue de nossas referências vai mudando ao longo do tempo. Então já foi Vinicius, Clarice, Gullar, Piva, Jodorowsky, meus contemporâneos…ultimamente tenho viajado no Borges num poeta contemporâneo português chamado João Luís Barreto Guimarães.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Vou indicar um livro “clássico” e dois que ainda estão frescos:
“O arco e a lira” do Octavio Paz pra mim é fundamental. Depois de toda a neurose tecnicista que assola o poeta quando começa a escrever, é importante ter esse na cabeceira e reconhecer a importância do sagrado e do delírio na produção poética. Entender o fundamento quase místico do estatuto da poesia, que se por um lado, não deve ser aquele peso metafísico de séculos anteriores, por outro é a libertação de um dizer que não pode abolir essa função transcendental do poema.
“As durações da casa” da Julia de Souza é um livro desses tempos que gosto. Ele foge um pouco à urgência de um tempo politicamente aflito e retoma de certa forma a dicção dos livros-projetos que surgiram com força no início dos anos 2000. No entanto, tem um lirismo justo, uma construção que se dá sob o signo da falta, do que está partindo ao passo que encanta. Da casa, do lar, do conforto e sua impermanência: morosa, afetivamente implicada. Me parece um livro bem interessante para se ter como modelo de um livro-projeto.
“O limite da navalha” do Italo Diblasi é outro que carrego na camisa. Mais próximo à ideia de antologia, é um livro que podemos assumir a partir de sua dobradinha estética-ética. O livro, focado num Eu, não deixa de abrir espaço à polissemia e acaba por emular a construção de um sujeito estético a esses tempos, feito às estruturas da margem, precário, desiludido, mas incapaz de entregar ao mundo menos que sua assinatura lírica sobre os fenômenos. Um sujeito implicado. Um dos meus preferidos.