Flávio Jacobsen é redator e roteirista e músico, autor de Uns Contos no Bolso (Kötter, 2015).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Trabalho como redator há 28 anos (tenho 51). Passei coisa de duas décadas trabalhando em agências de publicidade. Minha rotina depende da fase profissional. Houve tempo de trabalhar apenas à tarde. Então consistia em levantar cedo, ler os jornais do dia enquanto provia o desjejum, escrever alguma coisa no restante da manhã e partir para o almoço ou escritório/redação no período vespertino. Quando o expediente começava pela manhã, seguia a rotina de qualquer trabalhador. Chegava ao local de trabalho às pressas e ia à leitura de periódicos logo cedo e criação do trabalho ao fim da manhã. Tudo isso com imensas variações, intercalando fases boêmias com ressacas homéricas, mas sempre mantendo mais ou menos essa rotina matinal. Trabalhei também em veículos como rádio, e a rotina era mais ou menos a mesma. Hoje trabalho em casa, sou casado, sem filhos, e minha mulher também é redatora, e também trabalha em casa. Home Office é um velho sonho de 90% dos escritores, mas não é fácil como parece. A rotina atual: acordar cedo, entre 6h e 8h, ler as notícias (é algo fundamental na minha profissão, ler os jornais, ouvir o rádio, etc.), ver o que tem na pauta, atender alguns telefonemas e e-mails, e trabalhar no que pode ser desde um roteiro para televisão ou rádio, ou uma criação para anúncio, ou ideia para slogan, outdoor e tudo o mais. Daí é “partir pro ataque”. Costumo resolver rápido o chamado “trabalho formal”. Depois do almoço, a depender do final destes trabalhos, entro na internet e começo a ler mais coisas, e as ideias vão aparecendo. Escrevo literatura, pego o violão e componho algo, sempre na base do esboço. Quando vejo que algo está pronto e engatilhado, uso do mesmo expediente pra finalizar. Isso inclui desde contos até roteiros ou argumentos para audiovisual e um romance em que venho trabalhando agora. É difícil, mas o meu ideal é levantar cedo e proceder da mesma maneira apenas com literatura. Um dia chego lá.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como descrevi, acho que o melhor é escrever pela manhã. Já que vivo de escrever, por incrível, não sobra muito tempo pra escrita “artística”, aspas por minha conta. Mas não me queixo, acho que todo meu trabalho é voltado à criação, seja ela comercial ou literária. Preciso estar inspirado o tempo todo. Coloco música, jazz ou black music, às vezes ópera ou música de orquestra. Um café. É assim que funciona o “motor”. Meu ritual é pensar, pesquisar e ler muito (ou pouco, depende) antes de sentir que aquilo que pretendo está pronto para encarar a página branca. Pode levar dias ou minutos. Como diria o Verissimo (filho): “minha inspiração é o prazo da editora”.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias. Não tenho saída. Escrevo o que tem pra escrever. Sempre tem. Já literatura, arte, conforme relatado, acaba acontecendo em períodos concentrados. Não é um processo que criei ou estabeleci. É assim que acontece. Tenho que ganhar a vida. Ainda bem que sem vida não há literatura.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É difícil começar, sempre. Meu processo, involuntariamente, acaba sendo exatamente este: o de coletar notas (anotadas ou mentais) e a partir deste acúmulo encarar a escrita propriamente dita. E varia. Há “coletas” diferentes. Um roteiro encomendado requer pesquisa específica em determinada área. Se for escrever uma reportagem free lance pra um festival de rock, por exemplo, a tendência é eu saber tudo sobre aquele ambiente antes. Ler, ouvir, assistir, coletar material, entrevistar pessoas, etc. Pra uma letra de música ou poema é diferente, mas pode ser igual, a depender do tema que estou abordando, da frequência que estou tentando imprimir para tornar aquilo uma peça criativa, materializar de alguma forma aquela minha ideia e/ou propósito.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu lido dando um tempo, quando há. Procrastinação é pra quem tem prazo pra procrastinar. Digo que sempre é preciso dar um tempo. E, claro, este tempo é variável. Posso deixar pra amanhã um roteiro de comercial que não estou conseguindo encaixar a ideia, ou largar tudo por um dia inteiro. Depende do prazo. Assim como posso deixar uma ideia anos guardada. Exemplo do meu livro Uns Contos no Bolso, que é fruto de vários contos curtos que escrevi ao logo de mais de uma década, até o dia que achei que aquele amontoado podia ser uma coisa só. Uma obra. Trabalhei então por semanas no recorte dos textos, enviei a uma editora e fui contratado. Mas, enfim, a resposta para a falta de qualquer coisa é: dar um tempo. De cinco minutos a uma década. Depende do “produto”.
Quanto a corresponder às expectativas, devo confessar que meu receio é muito maior quando tem algum dinheiro envolvido, quando estou sendo pago para que algo aconteça, e tal acontecimento dependa da minha produção. Como disse: eu vivo de escrever. Não vejo nenhuma atitude romântica no ofício. É um trabalho. O gibi do Cebolinha que teu filho tá lendo ali teve alguém que escreveu o roteiro. O comercial de tevê no intervalo do programa que você está assistindo foi escrito por alguém. A novelinha, o filme, a série, o panfleto, tudo foi alguém que escreveu. Então, antes de ser a “grande promessa da nova literatura, com linguagem diferenciada” que a crítica considera (outros não), eu sou apenas um redator, membro da classe dos redatores. Operários da escrita. Quando se trata da minha literatura, digo isso com franqueza total, eu acho que já entro com o jogo ganho. Se eu cheguei até ali, oferecendo a quem queira conferir a minha linguagem, foi por conta própria, não por encomenda, ou pela necessidade de pagar as contas. Adoraria, no entanto, que houvesse alguém me telefonando agora, cobrando prazos por um conto que ainda não entreguei, com um cheque bem gordo do outro lado da linha.
Já a ansiedade existe em tudo. Sou ansioso, então é da minha natureza resolver tudo de pronto. Talvez escrever literatura seja fruto de ansiedade. Há algo não resolvido, o sujeito vai lá e escreve Guerra e Paz. Pronto. Todo projeto parece longo demais. Demorei pra aprender a lidar com o tempo. Hoje sei esperar, sem achar que estou procrastinando.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso e reescrevo inúmeras vezes. Sim, mostro a algumas pessoas, nem sempre escritores. Apresento os originais a menos pessoas do que eu deveria. Acho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é tranquila. Desde que tudo funcione, é claro. Leio muito e pesquiso pela internet, mas não abandonei os livros e bibliotecas. Não sou, digamos, um louco por computadores, e cheguei a trabalhar com máquina de escrever, no começo. Raro escrever à mão. O que faço é anotar muitas coisas com lápis ou caneta, na fase de pesquisa. Claro, uma frase, um poema, uma ideia ou sacada rápida, sempre vai à mão. Mas o que chamo de redação mesmo é sempre direto no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Bem, as ideias vêm da vida. Do mundo ao redor. Meus personagens transitam via de regra por ambientes semelhantes aos meus, têm vidas semelhantes às pessoas do mundo que me envolve. Não poderia ser diferente. Óbvio que não vou entrar no mérito de tudo ser ou não baseado em fatos reais. Isso não se diz, nem se pergunta. Ainda bem que você não perguntou. (risos) Mas há, sim, hábitos que conferem melhor refinamento às ideias, e consequentemente à escrita. Aprendi com meu pai que quem escreve bem é porque lê bem. Ele dizia que uma pessoa que lê fotonovelas ainda é melhor que uma pessoa que não lê nada. Sou fanático por livros, discos e filmes. Então, não tem jeito. É isso aí mesmo. Ler, ouvir e assistir muito. Eu diria que “apreciar” é o melhor meio para me manter criativo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou a rotina (hoje tem) e a disciplina (tenho tentado, via rotina). Acho que o que eu diria a mim mesmo seria algo como: “seja como eu sou hoje”. Disciplina e rotina, mesmo no ambiente profissional caótico em que eu transito, são sempre fundamentais. Enfim, vejo dessa forma porque acredito que se eu tivesse o vislumbre disciplinar que eu tento (apenas tento) me impor hoje, quando eu era mais novo, eu seria melhor.
No âmbito temático, é possível dizer que eu me sinto muito mais livre hoje em relação às minhas influências reais. Veja bem: há dois tipos de influência. Há aquela arte que você gosta, que você aprecia, algo como “nossa, eu queria fazer aquilo”. Sei lá, Cem Anos de Solidão, quem não gostaria de ter a maestria daquele imenso livro? Me influenciou? Claro. Muito. Mas há outro tipo de influência, que é o mundo ao redor, que acaba por caracterizar teu cenário, como já respondi antes. Depois que eu aprendi que há muito mais em mim da lata de coca-cola, dos discos de rock, dos gibis, dos desenhos e seriados de tevê da minha infância e do cinema de bangue-bangue e policiais, antes de me aparecer um Fellini, eu me considerei liberto. E garanto a você que Garcia Marquez utilizou do mesmo para compor Cem Anos de Solidão. Ele trabalhou com o mundo dele. Li certa vez uma entrevista em que ele dizia que era engraçado como o realismo fantástico poderia ser tão apreciado por leitores de outros lugares, sem que tais leitores sequer tenham ideia da realidade que gerou este fantástico. É mais ou menos isso. Meus personagens estão sempre sob a mira de um aparelho de tevê, de um outdoor, de uma manchete de jornal, tomando cerveja vagabunda, ouvindo música pop e usando tóxicos baratos. É esta a realidade e a influência do mundo ao meu redor. Enfim, o que mudou? Perdi a vergonha da cultura pop, que me influenciou verdadeiramente. Ganhei a minha liberdade criativa. E verdadeira. O resto é estética. Cada um com a sua.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Além do romance em curso, de mais um livro de contos, duas peças de teatro em fase final, o projeto que mais me encanta, e ainda não começou, encontra-se em fase de pesquisa. Um argumento para seriado de tevê. Infelizmente não posso revelar por completo. Mas trata-se de ambientar para a tela certos personagens da literatura brasileira, colocando-os na Londres vitoriana, em1890, encontrando outros personagens reais e imaginários. Algo como Sherlock Holmes, Santos Dumont, Brás Cubas e Oscar Wilde interagindo em uma mesma trama. Crime, espionagem, artes marciais e muita ciência vão incrementar a série. Não posso dizer mais. Como nunca fiz ficção em tevê, é algo que eu gostaria muito que começasse e acontecesse. A linguagem do cinema sempre está entre minhas ambições e projetos. Olha, o livro que ainda não existe é a meta de todo escritor. Antes que vire filme.