Flávio Carneiro é escritor, roteirista e professor de literatura na UERJ.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uma rotina, mas é como se não tivesse, porque é diferente a cada dia da semana. Divido meu tempo entre duas cidades, Teresópolis e Rio. Gosto de acordar cedo, quando durmo cedo. E de acordar bem tarde, quando durmo tarde. No café da manhã, um luxo é ter à mesa pão de queijo e bolo de fubá, com café quentinho (minha vida por pão de queijo, café e bolo de fubá). A manhã de sábado é a mais esperada (dia em que jogo meu futebol, em campo oficial, de grama natural, 11 contra 11, em Teresópolis, um bando de cinquentões se achando profissionais da bola).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto muito de escrever à noite, quando chego da UERJ, onde dou aulas de literatura. O silêncio da madrugada sempre me atraiu. Parece que a cidade dorme e é bom vê-la dormindo, como vemos dormir a mulher amada (há um belo soneto do Álvares de Azevedo que fala disso, do poeta velando o sono da mulher que ama). E escrever de madrugada dá uma sensação de que você está na contramão da vida, do tempo, que você está trabalhando quando todos descansam. Isso também é bom, a literatura é um pouco isso também, andar na contramão do tempo.
O problema é que também gosto muito de escrever de manhã. De acordar cedo, tomar meu café e reencontrar meus parceiros de papel e tinta, que aguardam (suponho) a minha volta. Escrever durante boas horas da manhã parece que te garantem o dia. Hoje ganhei o dia, penso ao final da manhã, depois de alguma ou algumas páginas. E afinal o que pode a literatura dar, a quem escreve, senão a promessa de que o dia vai ser bom?
Só as tardes me parecem impróprias para escrever. As tardes deveriam ficar reservadas para o trabalho de outra natureza, ou para o sono, ou os amores proibidos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Todos os dias. Tem dia que o máximo que você pode fazer é anotar uma frase que te veio à cabeça, uma fala de algum personagem, ou um cenário que precisa entrar na sua história, ou uma ideia qualquer que falta no que você está escrevendo. Mas mesmo isso, convenhamos, pode ser muita coisa.
Quando escrevo, penso na história até quando estou lavando louça. Isso faz parte, é bom. A arte zen de escrever lavando louça. Claro, não estou escrevendo, mas pensar na história faz parte do trabalho.
Tenho sim metas diárias, que variam de acordo com o que estou escrevendo e com o dia da semana. Se é um dia complicado, com muitas outras coisas pra resolver, a meta é mais modesta. O importante é não deixar de escrever. Não perder o ritmo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Agora me lembrei de uma cena, do diálogo entre Mallarmé e Dégas. O poeta e o pintor. Nem sei se de fato aconteceu essa conversa, e as circunstâncias em que teria ocorrido. Dégas disse que tinha grandes ideias pra escrever um poema, mas não conseguia. E Mallarmé respondeu: um poema não se faz com ideias, mas com palavras.
Então é isso o que acho, que compilar notas faz parte do processo, mas o que vale mesmo é escrever o que você tem pra escrever.
No meu caso, faço muitas pesquisas na escrita dos romances. E são pesquisas tentadoras, sobre assuntos que não fazem parte do mundo acadêmico. Mas o que importa mesmo é embate com as palavras, é aí que a coisa pega.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Na minha juventude, achava que escrever tinha que ser algo sofrido, doloroso. De fato, é, na maior parte do tempo. Mas não acho que deva ser. Escrever deve ser como brincar. É quando de alguma forma você volta a ser a criança que sempre foi. Nenhum escritor deveria se cobrar demais. É como o Mário de Andrade dizia, da sua escrita do Macunaíma: foi um brinquedo que fiz.
Hoje, tento não sofrer demais escrevendo. Aceito até a procrastinação, que faz parte do jogo, desde que não seja excessiva, que em algum momento você diga: pronto, agora chega de enrolação, meu camarada, vamos lá.
Não tenho isso, de muita ansiedade em trabalhar em projetos longos. Todos os meus livros demoraram muita a ser escritos. Romances como A confissão e A ilha, por exemplo, me tomaram cerca de 8 anos cada. Claro, enquanto escrevia esses romances, fui escrevendo outras coisas, mas foram, os dois, processos demorados. E os outros livros também, não tanto, mas foram demorados.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas, muitas vezes. Sempre achei que escrever é reescrever. A cada página que se salva, nove vão para o lixo. É por aí. Uma vez tive uma conversa com a Cora Coralina (conto isso no meu livro O leitor fingido). Eu a visitei na sua casa na cidade de Goiás, a casa à beira da ponte do Rio Vermelho (Cora Coralina é um pseudônimo, ela se chamava Ana, e na sua cidade as pessoas a conheciam como Aninha da ponte). Naquela tarde, ela me ensinou algo que nunca esqueci: escrever é ter paciência. Drummond (leitor de Cora, aliás) escreveu: convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Sim, mostro sempre meus textos antes de publicá-los. Para minha esposa, minhas filhas (pequenas ainda), amigos, às vezes meus pais (já idosos), meu irmão às vezes. Acho muito importante essa leitura que eles fazem. Leituras variadas, de pessoas muito diferentes entre si.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Antes do computador, escrevia à mão e depois ia pra máquina de escrever. Hoje escrevo direto no computador. Mas sempre imprimo (quando o texto já está de certo tamanho), leio no papel, anoto bastante. Depois volto ao computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
De muitos lugares. Principalmente dos livros. Faz pouco tempo descobri, meio surpreso, talvez até comovido, que todos os meus livros são, na verdade, livros sobre livros.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Seja mais paciente. Aprenda com Drummond, que dizia: convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Sim, exatamente isso. Sou mais paciente hoje, tenho menos pressa de terminar, se comparado com o que eu era na juventude.