Flávia Stefani escreve ficção e é mestranda em criação literária pela Universidade de Las Vegas, Nevada.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu saio da cama antes do Sol nascer e me fecho em meu escritório. Escrevo enquanto a cidade dorme. Silêncio é fundamental para o meu processo, bem como o café e a solidão. Eu não consigo escrever em companhia de outras pessoas, e sinto que quanto mais curto o percurso entre o mundo dos sonhos e a escrita, mais vantajoso para mim.
Dito isso, eu nem sempre escrevo de manhã; às vezes, passo horas lendo. Trata-se, no entanto, de uma leitura ativa: tomo notas em um caderno, escrevo nas margens dos livros, interrompo a leitura para redigir um parágrafo. Ou seja, eu uso a leitura para tonificar os músculos da escrita. Eu mantenho essa mesma rotina aos finais de semana—estou redigindo essa resposta em um sábado, e da janela do escritório eu vejo a lua brilhante, exibida, no céu azul-escuro.
À tarde também costumo escrever, apesar de que à essa altura estou mais distraída com as questões do cotidiano. E se algum prazo importante se aproxima, sou capaz de escrever até tarde da noite, porém evito, pois noto a diferença na qualidade de minha produção.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sinto que trabalho melhor pela manhã e no comecinho da tarde. Conforme as horas vão passando, o meu poder de concentração vai diminuindo, a escrita vai ficando diluída, rebelde, geniosa.
Um ritual de preparação que tenho é acender uma vela antes de começar a escrever. Eu gosto do aspecto concreto, sensorial, de ver algo acontecer no ambiente enquanto escrevo; um evento paralelo que parece sinalizar para mim que aquilo (a escrita) está tomando forma, tendo consequências físicas no mundo: luz, fumaça, cheiro. E se começa algum barulho na rua, eu ouço música clássica, ou qualquer coisa que não tenha vozes.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu me esforço para escrever todos os dias, mas isso não significa que eu escreva muito—não em termos de volume. Talvez para pessoas como eu, cujo processo é notoriamente lento, tentar escrever com uma alguma constância seja mais importante do que estabelecer uma quantidade diária de palavras ou páginas. Sem dúvida há momentos em que a escrita fica mais concentrada: no momento, estou redigindo a minha tese de mestrado, logo por razões óbvias eu preciso estruturar o meu dia de acordo com as demandas da tese. Porém, se não tenho um texto importante para entregar, eu ainda assim procuro escrever um pouco todo dia: um parágrafo ou dois. Num dia bom, talvez uma página ou duas, mas esses são raros.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Até aqui, os contos que escrevi não exigiram muita pesquisa. Alguns de meus colegas estão escrevendo romances épicos, e no caso deles é diferente. No meu caso, acontece mais de eu pesquisar enquanto escrevo. Por exemplo, há umas semanas, passei uma manhã inteira estudando os hábitos dos pássaros mergulhadores porque apareceu uma ave dessas em uma cena do meu conto. Mas durante a revisão, achei melhor não usar essa cena. Tchau, pássaro. rs.
Quando comecei a escrever ficção, eu achava que antes de começar, era fundamental conhecer os personagens mais a fundo, reunir a maior quantidade possível de fotos, imagens, canções, mapas, notas, selos de cartas etc; qualquer coisa que esclarecesse a identidade e as motivações deles para mim. Essa abordagem não deu em nada. A escrita perdia o elemento da surpresa; o dossiê me distanciava do projeto. Hoje, eu não acho que preciso saber muito sobre um personagem, e dependendo do tipo de história, quanto menos eu souber, melhor. Obviamente, essa postura não funciona para todo tipo de texto, e não descarto a hipótese de vir a tomar muitas notas no futuro, rechear uma fichário inteiro—pelo contrário, estou aberta à possibilidade; adoraria experimentar um relacionamento diferente com a pesquisa. Só precisaria ser um relacionamento intuitivo, que não apagasse a chama da descoberta.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Uma maneira efetiva de lidar com a procrastinação é ter que entregar uma tese de mestrado. rs. Não acho que agi de maneira consciente, pelo menos não no começo, mas olhando para trás, me dei conta de que nos últimos anos eu venho me impondo certas datas limites que não podem ser negociadas, não sem alguma forma de penalização. Ao me inscrever em oficinas, cursos, conferências, e ao me matricular na universidade, talvez o principal compromisso que assumi seja o de entregar textos em um determinado período, do contrário a minha participação ficaria comprometida. Sentir o bafo quente de um prazo na nuca me ajuda a permanecer em movimento, escrevendo.
Sobre o medo de não corresponder às expectativas, eu acho que uma pessoa que assume para si a responsabilidade de escrever precisa eventualmente aprender a se perdoar. É uma prática constante e sem data para acabar: apontar para a lua, acertar um galho, continuar tentando. Aceitar que na maioria das vezes, a minha ambição será maior do que o meu talento, que o texto que consigo escrever é apenas esse mesmo, torcer para o de amanhã ser melhor. Tem dias em que é mais fácil me perdoar; em outros, reler o que escrevi é doloroso. Nesses dias, estar em posse de um livro bonito me ajuda porque quando o meu texto não me inspira (e isso é que mais acontece), o texto de uma outra pessoa pode me inspirar. Quando leio um livro de que gosto muito, um de meus primeiros impulsos é querer escrever algo em resposta, um conto ou um poema que converse com o texto que me inspirou. Ou seja, nos dias em que a parte analítica mais de minha mente está particularmente insatisfeita, eu paro de escrever, passo um tempo lendo e vejo se encontro alguma saída ali. E quando isso não funciona, eu entendo que preciso me distanciar do meu trabalho. Tento tirar uns dias de folga, ou pelo menos algumas horas, e ver que caminhos se manifestam enquanto estou distraída.
Finalmente, eu não acredito em projetos longos. Escrever um livro: impossível. Já escrever capítulos de um livro é plenamente possível; nesse exato momento tem alguém escrevendo um. A ideia de um projeto longo pode ser paralisante, e uma receita certeira para um desastre seria eu desviar o meu foco da tarefa imediata para a dimensão maior de um trabalho. Eu ainda não tive a alegria de entrevistar uma formiga, mas acho que se alguém perguntar, eu acho ela vai dizer, “A gente não constrói formigueiros; a gente carrega pedacinhos de terra para cima e para baixo, o dia inteiro.”
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes. O meu processo é lento, recheado de tentativas e erros. Eu ouço um som ou uma frase em minha mente, ou vejo uma imagem embaçada no fundo da cabeça, e me pergunto: “Que palavras correspondem a esse som? Que imagem é essa? Quem disse essa frase?” A partir daí, vou tentando montar o quebra-cabeças, e parte da tarefa de encontrar as palavras certas é experimentar usar um monte de palavras erradas. Eu adoraria ter um processo menos árduo, e torço para que com o passar do tempo eu precise de menos tentativas, mas até aqui, os meus contos precisaram de muita revisão.
Eu compartilho o meu trabalho para outros mestrandos—essa é uma das exigências do curso: participar de oficinas de criação literária nas quais se compartilha e critica textos. E fora da universidade, eu compartilho os meus contos com um grupo pequeno de escritores cujos critérios e opiniões eu respeito.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo o primeiro rascunho todinho à mão e essa é a fase mais divertida do processo, a mais libertadora, em que nem os erros gramaticais são visíveis—que dirá os estruturais. Quando transcrevo para o computador a coisa muda de figura: vou editando conforme transcrevo, e nessas horas sinto uma angústia tremenda. É quando questiono o texto e me questiono também. Eu tento adiantar o que for possível no papel (descobrir as regras do mundo que estou criando, a estrutura, os personagens) porque sei que a fase seguinte é dolorosa, e muitas vezes preciso parar de transcrever e voltar ao caderno e à caneta para resolver algum problema da escrita. Com o texto inteiro transcrito, eu começo a fazer as revisões de linguagem. A escrita volta a ficar divertida nessa fase.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu não saberia dizer de onde vêm minhas idéias, e não sei se quero descobrir. Digo, intelectualmente eu até arriscaria dizer que minhas idéias surgem do relacionamento antigo e enraizado entre meu inconsciente e meu intelecto, mas prefiro pensar que minhas idéias vêm de lugares misteriosos, desconhecidos. Cada vez que tenho uma idéia, é como se eu recebesse um cartão-postal anônimo, uma pista para uma brincadeira que venho jogado ao longo da vida, e para mim é mais interessante esperar o próximo cartão do que descobrir quem está enviando.
O que faço para me manter criativa: tento passar a maior parte do tempo lendo, pois considero a leitura uma das atividades mais prazeirosas que existem—quase tão prazeirosa quanto sentar na grama ou de frente para o mar. Em todos esses anos de civilização, poucos objetos continuam sofisticados como o livro; poucas tecnologias permanecem tão relevantes para o desenvolvimento do pensamento humano quanto a escrita, e eu separo tempo diariamente para mergulhar na escrita dos outros e sinto que me mantenho criativa assim. Em uma de suas palestras para a universidade de Harvard, o Borges fala que é essencialmente um leitor, e eu não consigo pensar em uma maneira melhor de um escritor se descrever e de se manter criativo do que sendo um leitor.
Um outro hábito, e confesso que esse é mais difícil, é o de tentar me manter um pouco entediada, afinal uma pessoa muito ocupada corre o risco de não conseguir escrever. Procuro não estar constantemente entretida, e faço questão de não ver muita televisão e não passar tempo demais nas redes sociais, pois sinto que a linguagem que me cerca é no final das contas o principal ingrediente de minhas histórias. Se quero que minhas histórias sejam intelectualmente e emocionalmente nutritivas, eu preciso abastecer a mente de textos mais complexos, consumir mais vegetais e menos Cheetos, digamos assim. rs.
Por último, sempre que posso eu procuro caminhar pela cidade, de preferência sem fones de ouvido. Pessoas mais articuladas do que eu já escreveram sobre a relação comprovada entre a caminhada e a escrita e os benefícios de uma atividade sobre a outra (Aristoteles, Thoreau, Nietzche, Kierkegaard, John Muir, Rebecca Solnit), então não preciso falar muito sobre o tema, mas é sem dúvida um do hábitos que cultivo para me manter criativa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria que escrever é mais importante do que acumular idéias sobre o ato de escrever; que me tornar melhor no que faço levaria muitos anos e que a estrada seria pedregosa e fria, mas não sem recompensas; que um dia em que a escrita vai mal ainda é um dia bem vivido; que já ter escrito é melhor do que escrever, mas que eu jamais passaria pela porta final de um texto sem antes passar por todas as outras. Acima de tudo, eu diria a mim mesma que textos ruins e histórias mal-sucedidas seriam meus professores e minhas principais companhias nessa jornada, então o quanto antes eu puder fazer as pazes com esse fato e encontrar alguma medida de conforto e gentileza no processo, melhor.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever um romance contemplativo, que se passasse em algum lugar da costa oeste norteamericana ou em um lugar de paisagens belas e remotas, como o cerrado brasileiro ou a Islândia. Um livro curto e sem muitos personagens, porém de linguagem densa, lírica, estonteante, que enfatizasse o que todos já sabem: que a natureza é mais sábia e mais interessante do que as pessoas. Um livro narrado por uma mulher e que se ocupasse de questões femininas, com uma estrutura feminina.