Flávia Regina Marquetti é doutora em Estudo Literários pela UNESP/FCLAr.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim, levanto, tomo café e sigo com o que for mais urgente no dia, seja trabalho, seja algo de casa ou escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu horário predileto é à noite, sobretudo de madrugada, quando o mundo fica quieto e eu tenho todo o tempo só para mim e o texto. Nem sempre é possível, implica não ter que acordar cedo no dia seguinte e outras coisas. Mas é meu horário predileto. Não tenho nenhum ritual, às vezes ouço música clássica, outras prefiro o silêncio.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta diária, geralmente leio muito antes de começar algum texto. Anoto uma infinidade de observações e ideias, faço fichamento dos livros ou artigos, só depois, que considero que tenho uma boa bagagem teórica sobre o assunto, organizo a linha de raciocínio, ou um esqueleto do texto e inicio.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É sempre a parte mais difícil, sair da pesquisa para a escrita. Às vezes levo dias indo e vindo no início do texto, achar um começo que permita o fluxo coerente das ideias é o mais demorado, mesmo tendo partido de uma organização prévia. Porém, quando encontro essa veia, não paro até esgotar. Mesmo que para isso tenha que virar a madrugada escrevendo e ficar sem dormir. Não consigo parar a escrita e voltar no dia seguinte, parece que o encadeamento lógico se esgarça e não consigo retornar àquela trilha perfeita que apareceu naquele momento. A insistência é uma das chaves para escrever, no meu caso. Diversas noites li e reli o texto escrito até encontrar o caminho, não abandonar a escrita quando se “empaca” é essencial. Persistir, buscar outra perspectiva, outro norte também ajuda. Escrever nunca é fácil.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nunca fui de procrastinar, minha responsabilidade com o trabalho assumido é sempre muito grande. O que pode ocorrer é faltar alguma informação chave, que surge no meio da escrita, me obrigando a parar e voltar a leitura, ao retornar ao texto ter de refazê-lo, pois muita informação nova surgiu. Já me ocorreu isso.
Sempre tive prazos para escrever, fossem artigos, tese ou relatórios de pesquisa. Sou ultra pontual com eles. Acredito que em 30 anos de trabalho acadêmico, se atrasei um ou dois textos foi muito. Sempre procuro entregar antes. No máximo no dia exato. Para mim faz parte do profissionalismo. Claro que há situações excepcionais, morte de pessoas, doenças… Mas em condições normais, a pontualidade é obedecida.
Talvez por ter um embasamento sólido, oriundo das leituras, jamais tive medo ou ansiedade em relação aos textos, sou segura do que escrevo, defendo teoricamente o que coloquei e as propostas lançadas nos textos. Como tive desde a graduação excelentes mestres e orientadores, que me ensinaram a pesquisar e, principalmente, me cobraram a responsabilidade sobre as ideias colocadas no papel, conquistei uma segurança sobre a qualidade do que estou fazendo.
É importante dizer que a aprendizagem se dá com erros e acertos, ter humildade para acatar críticas, sobretudo quando elas vêm de pessoas que estão ali para contribuir com o seu crescimento, é fundamental. Não se melindrar e encarar as deficiências é um dos primeiros passos para quem quer escrever, seja na área acadêmica, seja na literatura.
Adoro projetos longos, me permitem muita leitura, escalonar o texto em etapas. Sou bastante metódica. Tudo é planejado, mas às vezes o planejamento fura, normal, mas para isso você tem que deixar um prazo elástico para contornar o inesperado. Muitas vezes você conta, ao iniciar um projeto longo, com acesso a textos ou livros que não ocorrem, seu objeto de análise se tornou de difícil acesso de repente e muitos outros contratempos. Passei por isso no mestrado e no doutorado, tendo que achar soluções, alternativas, mas isso não chegou a atrapalhar, dificultou, faz parte de toda pesquisa. Digamos que nos oferece uma dose de adrenalina no percurso e muitas vezes são ganhos inusitados.
Dou um exemplo, em meu mestrado tive dois orientadores, uma antropóloga e um semioticísta, pretendia trabalhar, na semiótica, com a fusão da teoria das paixões com a da actorialização no mito de Narciso, sob a orientação do Prof. Dr. Edward Lopes, já então meu orientador de iniciação. Por motivos pessoais ele teve que deixar a orientação e eu fiquei a meio caminho. Por sugestão dele, procurei o Prof. Dr. Inácio Assis Silva, também da semiótica, mas com linha teórica completamente diferente, embora trabalhasse também com o mesmo mito, na versão latina. Como eu supunha, ele rejeitou a proposta teórica que eu vinha trabalhando com o Edward. A única saída foi abandonar o que havia iniciado e, em menos de um ano, dar conta de uma nova teoria e aplicá-la ao meu objeto de estudo. Foi muito exaustivo, montanhas de leituras e esforço para dominar uma teoria complexa em pouco tempo. Porém, graças a nova teoria, eu descortinei o projeto do doutorado, sem esse conhecimento, não teria subsídios para enxergar uma proposta de tese e comprovação por meio de análise. Ou seja, sempre é um ganho e devo confessar que adoro desafios.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Procuro reler os textos quantas vezes forem possíveis, mesmo assim sempre escapa algo. Meu cérebro parece atraído pelo tema e as vezes, na revisão acrescento parágrafos inteiros que me ocorrem após a leitura do todo. Isso é muito bom por um lado, mas a revisão do texto sempre acaba comprometida. Entre a forma e o conteúdo, eu acabo me deixando seduzir pelo conteúdo e lá ficam algumas formas estranhas no texto. Por isso, sempre que posso passo o texto para algum amigo ou colega ler. De preferência para quem não seja especialista na área, já que as falhas textuais ou trechos confusos são rapidamente detectados. Informações, que eu considero muito difundidas e as subentendo no texto, o leitor pode apontar, auxiliando muito no processo de escrita.
Outra revisão, muito chata de ser feita, confesso, mas altamente necessária é a de citações e bibliografia, para essa conto com um amigo impecável, não deixa passar nada. Esse tipo de cuidado com o texto acadêmico é algo que se aprende e é muito importante para referendar o próprio conteúdo. Se a fonte estiver citada erroneamente ou faltando, ela depõe contra o autor. Voltando à questão da insegurança, que me foi perguntado acima, esse domínio da informação e de como apresentá-la em texto, contribui para a nossa segurança.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação é de amor e ódio com a tecnologia. Sou da geração que viu surgir o computador enquanto utensílio doméstico já na universidade, mas ele ainda era um objeto caro e inacessível para mim e a maioria dos alunos. Muito rudimentar, perto dos atuais. Portanto, toda a minha pesquisa sempre foi feita em rascunhos feitos a mão. Toda a redação do meu mestrado foi à mão. Eu só digitei o texto depois de pronto no computador. Trabalhos de faculdade eram entregues escritos à mão ou datilografados, só quem viveu isso sabe o horror de uma diagramação manual.
Eu tinha uma enorme dificuldade em elaborar um texto direto no computador, não conseguia alterar o conteúdo, para mim o texto em letra impressa era percebido como algo já finalizado, pronto. Meus rascunhos em papel eram verdadeiros caos visuais, textos sobre textos, flechas para inclusão de citações, ou supressão da informação, um verdadeiro mapa do tesouro ou do inferno. Só eu entendia aquilo. Mas me dava uma liberdade de junção de ideias que a máquina não oferecia. Ainda hoje, se tiver tempo suficiente para produzir um texto, prefiro ir para a escrivaninha com pilhas de papéis e rascunhá-lo. Penso melhor quando escrevo à mão.
Aprendi, pela necessidade e os prazos cada vez mais exíguos a escrever direto no computador, a possibilidade de acesso a textos virtuais é maravilhosa. Sítios disponibilizam revistas, livros e uma infinidade de informações antes impossíveis. Conseguir uma cópia de um artigo internacional era caro e levava meses. Nesse sentido a tecnologia é maravilhosa, sem falar na diagramação, feita em um toque.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm da leitura e do conhecimento acumulado. Quanto mais se lê e se conhece assuntos variados, mais possibilidades temos de vislumbrar algo inédito ou aprofundar um tema. Ter o hábito da leitura e manter a curiosidade da criança é essencial. Nunca acreditar que já se leu tudo, que conhece um assunto a exaustão. E mesclar sempre as leituras teóricas com literatura (romances, contos, poesia), com arte, com informações de outros campos da ciência. Interessar-se pelo mundo, pelas pessoas e suas práticas, ser, em fim, insaciável de conhecimento, seja ele qual for. Isso nos mantêm criativos.
Um exemplo de como essa curiosidade funciona em mim. Durante o meu mestrado, quando trabalhei com o mito de Narciso, tive que recorrer aos professores da farmácia da UNESP, onde eu estudava, para tentar decifrar uma informação sobre os bulbos da planta narciso. De porta em porta nos departamentos da farmácia, cheguei ao pessoal que trabalhava com perfumes e narcóticos, que muito estranharam uma pessoa de Letras querer esse tipo de informação. Estranhamento à parte, consegui a informação e ela me levou a toda uma relação entre a narrativa do mito e os ritos iniciáticos praticados na Grécia antiga, contribuindo muito para o meu texto. A multidisciplinaridade é benfazeja. No doutorado e em pesquisas posteriores isso sempre se repetiu, a busca de informações, a curiosidade em explorar um detalhe, não deixar passar a afirmação sem verificar em outras fontes amplia nosso olhar e a qualidade do texto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A escrita é um processo de amadurecimento, correndo o risco de ser repetitiva, mas nossa bagagem de vida, conhecimento teórico e empírico, as leituras e até mesmo os afetos vão transformando nossa forma de ver o mundo e de colocá-lo em texto. Em meu processo de escrita se verifica isso, um amadurecimento na abordagem dos temas sobre os quais escrevo e a capacidade de aglutinar diversas áreas do conhecimento na pesquisa/escrita. Não sei se teria um conselho para a Flávia dos primeiros textos, eram os textos que ela tinha condição de produzir, não são piores dos que os de hoje, são diferentes, menos abrangentes teoricamente falando, mas são corretos. Acredito que o grande mal ao lermos textos de jovens é cobrarmos deles a maturidade que não possuem, seja ela teórica ou de vida.
Buscar se superar é um bom conselho para todo aquele que pratica esse ofício, independente de idade. Nunca estamos prontos, nunca será fácil, sempre se necessitará de muita transpiração e se tivermos sorte, teremos alguma inspiração. Escrever é um exercício, mas também um ato de generosidade, é quando partilhamos o conhecimento com o outro, buscamos oferecer ao leitor a forma mais clara e completa de um estudo que envolve a nossa vida, tenhamos 20 anos, 50 ou 100. Aquele que escreve oferece ao leitor o melhor de si até aquele momento e assim cria-se entre os escritores, leitores e novos escritores uma teia de conhecimento, permitindo vislumbrar algo muito importante, a noção de Humanidade, de empenho por um bem comum. Isso torna a escrita e as artes o grande diferencial do ser humano.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Nossa….muitos projetos. Talvez o próximo seja colocar em livro a pesquisa sobre religião e erotismo na Antiguidade ou um texto que estou amadurecendo sobre Oswald de Andrade e Machado de Assis.
Infelizmente não li todos os livros existentes para poder dizer que exista algo que não foi escrito e eu desejaria que estivesse em minhas mãos. Por enquanto, vou me dedicar a ler os existentes, tenho uma lista infinita deles, sem falar nos que volta e meia releio.