Flávia Péret é escritora, professora e pesquisadora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu tenho duas rotinas. Eu tenho um filho de 5 anos. Quando ele está em casa, eu acordo com ele, ou melhor, sou acordada por ele (que acorda super cedo) vou fazer nosso café da manhã e depois brincar, arrumar um pouco a casa, fazer o almoço, brincar mais um pouco, respondo uma mensagem ou outra e é isso. Não consigo escrever nem ler nada, só mensagem no telefone. Quando ele não dorme aqui eu acordo a hora que quero (caso não tenha compromisso de manhã) e aí tenho outra rotina, mais lenta. Sou praticante da Kundalini Yoga então faço alongamentos, uma série de respirações, medito e só depois tomo café e vou trabalhar. Tomo às vezes dois cafés da manhã.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu já tive rituais de escrita, mas não tenho mais por causa da maternidade, modifica completamente a relação com o tempo e com o trabalho, com o tempo de dedicação à leitura principalmente. Minha vida como a de muitas mulheres que são trabalhadoras autônomas e mães é muito corrida. Antes, quando eu não tinha filho e tinha um emprego de 25 horas semanais com carteira assinada eu conseguia ter rituais e me dedicar mais. Como eu trabalhava apenas na parte da tarde, eu acordava, tomava capuccino com chocolate (amo), arrumava minha mesa de trabalho, separava os livros e me sentava para escrever. Mas isso não acontece mais. A mesa fica um caos, a louça suja na pia, os livros eu não sei a onde estão e fico o tempo todo me levantando e tentando achar as coisas, escrevo cada hora num lugar, vou andando com o notebook pela casa e escrevo em qualquer pedacinho de tempo que consigo. Mas quando consigo/posso escolher, o horário em que mais gosto de escrever é de manhã. Mas também consigo escrever à noite se for preciso. Depois do almoço, acho impossível… principalmente para ler. A Virginia Woolf tem um texto clássico, muitas leitoras do blog devem conhecer, que é o “Um teto todo seu”. No texto, ela diz que toda mulher que deseja ser escritora, deve ter o direito de receber uma quantia x de dinheiro por mês e ter um espaço/um quarto só seu e, assim, se fechar lá dentro para criar, produzir, se afastando temporariamente das tarefas domésticas. Eu concordo totalmente e acho que deveria ser assim, mas não é. Na prática isso é impossível para mim e para grande parte das escritoras que eu conheço. Por isso, gosto tanto de um outro texto, da escritora, ativista e intelectual chicana Gloria Anzaldúa no qual ela fala que a mulher, principalmente as mulheres latino-americanas – escrevem como dá e quando dá. Ela começa o texto dizendo: “Sento-me aqui, nua ao sol, máquina de escrever sobre as pernas, procurando imaginá-las. Mulher negra, junto a uma escrivaninha no quinto andar de algum prédio em Nova Iorque. Sentada em uma varanda, no sul do Texas, uma chicana abana os mosquitos e o ar quente, tentando reacender as chamas latentes da escrita. Mulher índia, caminhando para a escola ou trabalho, lamentando a falta de tempo para tecer a escrita em sua vida. Asiático-americana, lésbica, mãe solteira, arrastada em todas as direções por crianças, amante ou ex-marido, e a escrita.” Esse texto é muito bonito, ele está disponível na internet, a tradução é da Édna de Marco.
E acho que o exemplo mais importante que temos no Brasil de uma escritora que escreveu apesar de todas as dificuldades foi Carolina Maria de Jesus. Eu como professora de escrita (trabalho há 10 anos dando oficinas e cursos de escrita nos mais diversos lugares) já tive alunos que escreviam em todos os lugares que você pode imaginar, pessoas que estão sempre em movimento, deslocando-se pela pelos espaços e não fechadas no silêncio do quarto com uma xícara de café nas mãos.
Eu penso muito nesse assunto, por isso acho importante desconstruir essa imagem romantizada em torno da pessoa que escreve. Uma imagem construída, sobretudo, pelos escritores homens que escreveram ao longo da história centenas de livros nos quais os personagens principais são escritores solitários. Minha pergunta (e de muitas outras escritoras) é: quem pode dedicar tempo à escrita e à leitura? Quantas horas por dia uma mulher-escritora consegue se dedicar a essas duas ações? Quando se discute as diferenças entre a escrita do homem e a escrita da mulher, fala-se muito na subjetividade feminina e pouco em desequilíbrios causados por diferenças sociais, econômicas, culturais. Recentemente li um poema da Cecilia Pavón (poeta argentina) chamado “As regras da poesia contemporânea”. Achei sensacional. Ela diz que a poesia “tem regras objetivas e impiedosas” e que só poucas pessoas podem dominar essas regras e que as mães têm mais dificuldade ainda, porque as mães precisam fazer tantas outras coisas. Super me identifico. Este poema está no livro Discoteca Selvagem, publicado no Brasil pela Edições Jabuticaba, com tradução da Clarisse Lyra e da Mariana Ruggieri.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende. Quando tenho algo grande para escrever como dissertação, livro, trabalho final/artigo acadêmico (no momento, estou no terceiro ano do doutorado) tento reservar tempos para a escrita. Nessas ocasiões, às vezes é necessário entrar na bolha. Fico cinco dias escrevendo, sem sair de casa, me alimentando de macarrão, chá e chocolate…rsrsrs. Meu filho fica na casa do pai ou com minha mãe, que vive em outra cidade. Mas eu não tenho metas. No entanto, saber que preciso terminar um texto me apavora um pouco. Eu fico meio travada. Mas já percebi que acontece uma cosia curiosa quando fico travada com um texto, eu começo a escrever outras coisas, para me distrair, eu invento outros textos onde a fluidez acontece e eu não me sinto tão péssima por estar travada. Deve ser uma forma de resistência-produtiva, sei lá. Mas isso é bom. Recentemente, eu tinha que finalizar um texto, até bem curto, uma nota de explicação, que irá entrar no meu novo livro. Mas não conseguia escrever de jeito nenhum, fiquei enrolando, dando voltas e voltas. Eu não achava o tom certo. Aí comecei, inspirada pela leitura de um livro maravilhoso chamado Eu amo Dick, da escritora norte-americana Chris Kraus (publicado no Brasil pela editora Todavia) a escrever um outro negócio. Esse texto ainda não tem nome. É uma espécie de ensaio- autobiográfico sobre ser mulher e escrever, que é um pouco o tema do meu doutorado. Escrevi umas dez páginas, fiquei empolgada, comecei a reler coisas para poder colocar no texto, até que lembrei que precisava terminar a nota de explicação e de repente consegui. Mas quando não tem nada para entregar, eu posso ficar meses sem escrever um texto ou um poema.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu sou obsessiva. Eu tenho muita preguiça desse meu perfeccionismo com o texto, porque é cansativo, pareço um cão correndo atrás do próprio rabo. Eu leio o texto em voz alta quantas vezes forem necessárias e vou cortando e mudando as palavras até chegar num formato que considere minimamente bom – que tem a ver com encontrar o ritmo certo, tanto na poesia quanto na prosa. Eu acho que isso não é bem um processo, é mais o método mesmo: ler em voz alta e sentir com a respiração e o corpo a pulsação do texto. Eu tenho as minhas musas do ritmo. Escritoras que conseguem fazer isso que eu fico tentando fazer. São elas: Natalia Ginsburg (italiana), Lucia Berlin (norte-americana) e Lydia Davis (norte-americana).
Como ficar tonalmente satisfeita com algo que eu escrevo é quase impossível, a sensação que tenho é que eu nunca termino os textos. Até o último momento, antes de mandar para a diagramação, eu mudo palavras, às vezes mudo até depois.
Eu acho que cada texto pede um processo. Meus textos, geralmente, revelam os processos a partir dos quais foram escritos. Gosto disso: mostrar como se escreve, enquanto escrevo, acaba sendo um pouco um exercício metalingüístico, no sentido de uma reflexão sobre a escrita, porque no final das contas o que mais me interessa mesmo (estou chegando a essa conclusão) é entender por que eu escrevo ou por que as pessoas escrevem. Acontecem coisas incríveis, extraordinárias com milhões de pessoas o tempo todo e algumas dessas pessoas jamais vão querer transformar essas experiências em textos. Eu acho que na minha vida as coisas só acontecem para serem transformadas em texto…rsrrs… porque quando eu escrevo eu penso sobre as coisas. Não é esse pensar que tradicionalmente chamamos de reflexão. Não é nesse sentido, de refletir, descobrir, decifrar, desvendar algo que ainda não estava visível. É o pensamento como invenção. Susan Sontag disse (em um documentário) que o movimento da escrita não é o da descoberta, até porque não existe A Verdade, existem verdades. Ela fala uma coisa que acho genial: na literatura, uma verdade é algo cujo seu oposto também é verdade. Então a escrita tem a possibilidade de inventar outros (múltiplos)modos de ver/fabricar a realidade. A escrita elimina as distinções (morais) entre verdade e mentira e permite uma liberdade que é maravilhosa, um pouco viciante. Eu publiquei um livro de poemas chamado Mulher-bomba. Eu costumo dizer que é um livro sobre minha separação e sobre a maternidade. Mas a separação e a maternidade apresentadas neste livro são criações. O livro mostra uma separação que está muito distante da separação real que eu vivi e ainda vivo…e mesmo não sendo o real, as pessoas se identificam, é muito doido né? A literatura é algo muito maravilhoso, como algo aparentemente tão simples – palavras organizadas de uma forma específica – criam mundos, modos de ser/ver/sentir, modificam nossa vida, nos transportam para outras realidades.
Outro método de escrita que tenho utilizado muito – esse ano escrevi dois textos assim – é o da anotação. Geralmente a anotação (assim como o diário) é um gênero textual da ordem do privado, do íntimo. Eu gosto muito desses gêneros literários considerados menores. A anotação é algo que dá origem ao texto final, mas ela fica escondida dentro da costura do texto. Como disse antes, gosto de mostrar o processo de escrita do texto, então tenho gostado de mostrar as anotações como anotações, ou seja, fragmentos, dispersos, meio que um quebra-cabeça ainda dentro da caixa. No texto literário, isso é mais fácil, porque tenho liberdade total, mas num texto acadêmico pode ser um pouco mais problemático. Estou tentando levar essa forma de escrita também para a academia. Queria escrever minha tese na forma de anotação. Escrevi um texto este ano que se chama “A anotação como escrita da deambulação, rizoma” porque acho que nossas anotações são uma espécie de mapa-deambulatório do pensamento e da leitura que fazemos ao longo da pesquisa. Acho que o conjunto das anotações pode revelar aspectos que parecem menores, insignificantes, mas que podem ser pistas para explorar assuntos que antes não tínhamos dado tanta atenção. Isso funciona para a escrita acadêmica, mas também para a escrita de poesia (eu acho). Eu por exemplo, não anoto só trechos de livros (referências bibliográficas) anoto tudo, anoto frases que escuto, trechos de conversas, diálogos de filmes, muitos versos de poemas, imagens…
Acho que acabei falando mais do meu processo de escrita acadêmica, já na escrita de poesia, eu começo com uma imagem (uma máquina de fazer refrescos na lanchonete de uma rodoviária), fico olhando aquele troço se mexendo e começo a pensar o poema ou uma frase (minha ou “roubada”). E a partir dessa imagem começo o poema, vou perseguindo o poema até chegar ao fim. Para mim os poemas precisam ter um fechamento, às vezes fico um dia inteiro com um verso na cabeça, mudando mentalmente a ordem das palavras…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nossa, lido de forma péssima. Fico estressada, tenho dores no corpo – porque junta a dor da escrita (estou falando da dor física, de escrever, doem os braços, os ombros, digito sem respeitar muito as regras de ergonomia) e tem ainda a tensão dos prazos e das inseguranças. Sou um péssimo exemplo neste assunto. Gostaria de lidar de forma mais tranquila com isso, Mas tento sempre me lembrar que é só um texto, é só um texto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes. E mostro para várias pessoas, tenho amigas que já sabem que vou pedir ajuda e fazemos uma troca, também leio os textos dessas amigas. Sou imensamente grata. Quanto mais eu publico, mais sinto necessidade de mostrar e ouvir a opinião das pessoas antes de publicar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Depende. Tenho caderninhos. Nos caderninhos faço as anotações (frases, imagens, trechos de livros, ideias) e nos cadernos começo principalmente os poemas. Mas os textos acadêmicos começo direto no computador e só volto nos cadernos para pegar as anotações. Agora eu estou fazendo uma coisa maravilhosa. Eu criei um grupo de whatzap de uma pessoa só (eu), chamado “Me my self and I”. Quando tenho uma ideia para um texto, gravo uma mensagem de áudio para mim mesma. Tenho áudios de 15 minutos. Às vezes não uso nenhuma palavra desse material, mas já teve casos, que o texto é uma transcrição revisada de um áudio longo que mandei para mim mesma.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
De todos os lugares, principalmente da minha observação de tudo que me cerca, das palavras que as pessoas falam: minhas amigas, meus vizinhos (escuto o que meus vizinhos falam para o bem e para o mal), meu filho, mas também as imagens (filmes, cenas cotidianas, memes de internet, instalações artísticas, desenhos, performances). Eu não acredito muito nisso de não ser criativo. Eu acho que todo mundo é criativo, ou melhor todo muito pode ser, porque criatividade tem a ver com sensibilidade e todos somos seres sensíveis.No entanto, sei muito bem, até porque trabalho com arte-educação e oficinas de escrita que tem gente que teve, ao longo da vida, por uma série de questões (familiares, econômicas, culturais) mais estímulo para trabalhar essa sensibilidade. Infelizmente, muitas pessoas são violentamente impedidas de acessar as potencialidades criadoras e lúdicas da imaginação. E tem outras pessoas que mesmo contra todos os nãos, têm essa abertura para a imaginação super solta/livre/corajosa. Por isso eu acredito tanto no potencial transformador, educativo e político (Paulo Freire na veia e no coração) da literatura e da escrita. Por isso, mesmo sendo escritora e dando aulas de escrita, decidi fazer meu doutorado na área da educação e não na faculdade de Letras (como seria esperado). Além de escritora, eu sou professora e me interessa pensar a escrita como um saber, como algo que produz conhecimento sobre o mundo, sobre as pessoas, algo que as pessoas podem utilizar para produzir conhecimento sobre si mesmas e que esse infinito acervo/patrimônio que é a literatura possa ser cada vez mais compartilhado em espaços pedagógicos-formativos e não apenas nos espaços literários. Isso tem a ver com meu desejo incansável de tornar a escrita e a leitura algo mais democrático, mas acessível.
Na minha experiência como professora, eu observo que todo mundo pode escrever um texto interessante, bonito, divertido, forte, inusitado. Isso não significa que todas essas pessoas vão se tornar escritoras, publicar livros, talvez não. Mas todo mundo pode escrever. Escrever é uma forma de liberar a imaginação.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu fiquei mais corajosa. Eu não tenho mais vergonha de publicar. Antes eu dependia muito de uma validação externa. O que os outros vão pensar, achar, ler, falar? Ninguém nunca sabe de fato o que as pessoas pensam. Sempre vai ter gente que vai gostar e sempre vai ter gente que não vai gostar. Não tem problema. Então estou me libertando da opinião do outro, esse “outro” abstrato. É claro que isso é um lento processo, ainda estou aprendendo a ficar atenta às pegadinhas do ego.
Outra coisa: a escrita é também um trabalho de experimentação. Tem que fazer, refazer, desfazer, repetir. Antigamente, eu queria que o texto surgisse magicamente, quase psicografado, um texto que se auto-escreve. Às vezes, acontecem umas conexões muito loucas que não consigo explicar, umas sortes, mas 90 % do tempo é leitura, experimentação e muita reescrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O próximo texto que vou escrever, é esse texto que comecei sobre o que pode a escrita da mulher, escrito na primeira pessoa (autobiografia), articulando discussões sobre gênero, sexo/sexualidade, ser mulher, ser mãe, escrever e dialogar com todas as outras mulheres que vieram antes de mim e que pensaram sobre esse assunto e com as que estão neste momento escrevendo. Quero escrever minha tese de doutorado, mas que ela não tenha “cara” de tese, que ela se pareça com um diário de notas e pensamentos soltos.
Sobre livros que ainda quero ler? Muitos, tenho uma lista enorme de leitura me aguardando. Quero ler ficção científica escrita por mulheres, que é algo que nunca li.