Flávia Cohim é poeta, mestra em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Antes do isolamento social forçado, eu acordava por volta das 5:30 e ia correr ou na academia. Depois voltava, comia, tomava um banho e escrevia livremente por uns 10 minutos. Em geral, tentava organizar justamente o que queria escrever ou fazer ao longo do dia.
Eu sou bem matutina, mas agora tenho acordado entre 8, 8:30. Pra mim é super tarde. Sou bem enérgica de manhã, e logo depois do almoço não tenho força pra muita coisa. Isso impactou. Agora eu acordo, ouço alguma música bem animada – a depender, pop ou um funk pesadão – pra me mexer e botar energia pra rodar. Depois tomo um café bem gostoso. É a refeição que mais amo, então nunca pulo. Nunca nunca. Aí banho e vou cumprindo as tarefas, almoço mais tarde. Então minha mãe acaba sendo alongada.
Mas, basicamente, me mexer, tomar café gostoso – e tem que ter café preto e forte – e banhar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Se eu tiver que ler, manhãs ou fins de tarde/noite. Pra escrita, funciono em qualquer horário. Seja escrever porque eu quero, seja porque tenho que.
Pra escrita acadêmica, eu deixo minha mesa limpinha, poucas distrações visuais, celular longe e uma mega garrafa d’água. Às vezes deixo uns mantras pertos, escrito bem grande. Um que funcionou muito durante o dissertar foi “encaro o processo, é assim que eu faço”, de uma música de Black Alien. Muitos dias eu me preparava pra trabalhar (dissertar + preparar aulas, ou seja, ler e escrever bastante), quando queria ir à praia, dormir um pouco mais, ouvir música. Eu ficava me repetindo que ia arrumar um trampo de chegar, bater ponto, fazer coisas mecânicas e voltar. Mas é o que eu curto e quando flui é massa. O negócio é começar. E vez ou outra lembrar que não importa o que tu tá fazendo, tem que encarar o processo. E aí tu se lembra que na real o processo que é massa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu tenho milhares de cadernos e blocos de nota, então tô constantemente escrevendo.
Quando era a escrita acadêmica, eu não me lembro de colocar exatamente uma meta a não ser escrever todos os dias. A meta era essa: escrever todos os dias, qualquer coisa. Pra destravar.
A gente sempre tem a impressão que não vai conseguir começar, vendo a folha em branco. E a folha sempre vai tá em branco a não ser que seja o momento de revisão. Porque cada vez que tu vai começar a escrever uma coisa nova, ela ainda não tá lá, né? Mesmo que tenha um mundo de página acima, abaixo, sei lá.
Então minha meta era só começar. “Encara o processo”. Aí começava e fluía numa boa. Mas tinha que me lembrar todos os dias.
Com a escrita literária, eu tenho tentado firmar esse compromisso comigo agora. Até porque quero escrever outras coisas além de poemas – mais longas. Sinto que necessito mais comprometimento.
Às vezes eu consigo alguma coisa assim e jogo no blog.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Pra escrita acadêmica eu sempre tinha vários (eu falo no passado porque me dei uma pausa grandiosa agora) cadernos, arquivos do word, ia escrevendo ideias, pensamentos que iam surgindo ao longo do dia, ao longo de leituras, epifanias… Às vezes algumas coisas mais estruturadas. Conforme o texto ia ganhando corpo, eu voltava às anotações e indicava onde elas poderiam entrar. Quando eu voltaria a elas.
Nesses inícios empacados, no pânico da folha em branco certamente eu voltava a essas anotações – mas não só. Isso ajudou um bocado. Porque a gente costuma ter um número de boas – e más – ideias. Uma olhadinha no momento preciso pode ser um empurrãozinho gostoso.
Eu ainda não entendi direito como funciona meu processo criativo em termos artísticos. Pensar sobre isso certamente é interessante – sem ansiedades.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu gosto de prazos. Normalmente os prazos externos, porque senão fico renegociando comigo mesma para sempre. E aprendi que há várias maneiras de procrastinar “ah, não, mas eu PRECISO ler Nietzsche pra começar esse aqui!”, “oxe, claro que eu TENHO que ver esses 12 filmes e ler esses 13 textos/artigos/reportagens”. Ter repertório é maravilhoso, mas também pode ser procrastinação.
Eu tenho um problema no joelho que pode ser causado por corrida, ou ela pode piorá-lo. O joelho trava. Ao mesmo tempo, correr – observando umas regrinhas, o próprio corpo etc e tal – dá uma oleada nas articulações e ajuda com esse problema. Aí quando eu começo a correr, sinto uma dor danada, vou devagar, mas começo, de repente tudo vai se ajeitando e fica confortável. É igual no dia seguinte? É. Mas vai melhorando, fui aprendendo a lidar melhor com a trava e minha expectativa no início da corrida. Inclusive, sem olhar pros lados. Cada qual com sua articulação podre.
Com a escrita é igual. Travou? Começa a escrever: esqueletos, notas, ideias, qualquer coisa. Uma frase. Olha só, uma frase é bem simples, né?
Sobre expectativas: se eu gosto, se eu senti prazer, se me emociono com o trabalho final – pra mim tá ótimo. O que pode soar bom, mas releia um poema depois de uns meses. Ele parece uma porcaria. Mas aí eu reviso, corto, mexo. Ou então escrevo outro. O ciclo dele se cumpriu – pra mim pelo menos.
Pros trabalhos acadêmicos: terminar no prazo e minha mãe, meu primo, meu irmão poderem ler e entender. Pronto, expectativa atendida.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Na escrita acadêmica, até enjoar, saber declamar quase. Isso ajuda nas travas também. Só pensar: ok, escrevi uma frase. Essa frase não foi talhada em pedra. Eu posso mudar. Tive sorte de ter excelentes orientadoras que liam cada vírgula. Também mostrei a amizades e afetos – claro, a gente pede e entende os tempos, cada um/a no seu corre.
Os escritos literários costumam vir como um vômito. É como se eu incorporasse a musa, de repente um jorro no papel. Alguns eu mostro, posto nas redes, coloco no mundo, espero os retornos. Adoro os elogios, mas gosto mesmo das leituras atentas que propõem mudanças, questionam (inclusive, é um trabalho que aaamo fazer. A tal da revisão e edição, né isso? Amo.). Ainda não me rodeei tanto de gentes que façam isso, sei que muita gente nem tem o costume de ler poemas. Mas um dia.
Ah, sim! Vez ou outra, também volto aos arquivos, aos cadernos e vou mexendo nos poemas de novo. Ultimamente como tenho sido ousada e resolvido submeter a umas seleções e tal, mexo com esse propósito.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Depende do dia, do humor, se eu tiver sentindo dores nos pulsos, ou de onde tiver.
Adoro a escrita a mão, as telas me irritam e as letras uniformes, a escrita perfeita. Sentir a caneta ou o lápis riscando o papel é um prazer quase orgásmico. Mas às vezes a rapidez de jorro das palavras, das emoções… se for trabalho certamente no computador, pra preservar minhas articulações.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Gil tem aquela versão de Filhos de Gandhi, ao vivo na USP em 73. 23 minutos em que ele mais papeia e conta história que canta – e quando canta… uau. Eu amo, amo, é brilhante.
No meio da música ele tá contando a história do nascimento do Filhos de Gandhi e fala: aí ôto dia depois que eu tive com Didi, eu tive umas informação, sabe como é… a gente sempre tem umas informação. A gente lê uns livro, a gente conversa com as pessoa, a gente acaba sabendo de umas coisa.”
E tem uma poeta estadunidense, Mary Oliver, que escrevia sobre as cotidianidades, sobre a natureza e o selvagem no ser humano. Tem uma frase dela que eu amo: “Attention is the beginning of devotion” (Atenção é o início da devoção), que me lembra Jorge Ben, “Tem que dançar dançando”.
Então, fazer as coisas fazendo, ali, presente, ouvindo os passarinhos, olhando os tons de azuis diferentes no céu, observando as pessoas vivendo, lendo, conversando, ouvindo história, vendo novela, filme, ouvindo rap, instrumental, funk… todo tipo de música. Eu me alimento de tudo, tudo pode ser fonte abundante.
Esses dias li um livro que catei pra me divertir, de repente tive uma ideia prum artigo científico, vê só.
Noutro, estava refletindo sobre o porquê de um poema não ter sido aceito numa seleção, aí juntou com uma música que amo, e fiquei horas observando uma imagem linda. Pronto! Surgiu a ideia de um conto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria: escreva, menina! Tu ama escrever, senta a bunda e escreve. Me guardei muito por uns tempos. Coloquei muitas dificuldades e cerceei minha expressão. Não só na escrita, mas aqui estou agora escrevendo, fazendo teatro…
Ia falar: escreva, pra sofrer menos, ser menos dramática. A escrita é um instrumento poderosíssimo. Se habilite logo e não tenha vergonha. Se você se ler e amar sua criatura: tá tudo lindo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não faço ideia dos livros que existem, quanto mais dos que não existem. Talvez quisesse ler uma biografia de vida pós morte de próprio punho de algumas pessoas. Bob Marley, Cazuza, Nietzsche…
Eu quero: organizar um livro de poemas, escrever um livro de contos, escrever um romance. Organizar um projeto público de leitura/escrita com jovens – ler muito livro massa, poema, rap. Acredito na arte como potência incrível pra tentar desorganizar umas coisas, porque ela toca em outros lugares que não (só) a cognição. A gente precisa sensibilizar – as pessoas precisam poder (ou ter que) ouvir nossas palavras de medo, de amor, de indignação, de raiva, muita raiva.
Quero atuar num filme. De preferência feito pela minha amiga maravideusa que tá trilhando esse caminho. E em peças.
E certeza quero circular entre as pessoas editoras, mulheres, LGBT, pretas, nordestinas. Lê-las, ouvi-las, ser lida… eventos literários, saraus, coisa e tal. Sonhando acordada.