Flávia Bolaffi é escritora, autora de “Martina em Movimento” (Quelônio, 2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Depende do momento. Quando estou conectada na escrita, escrevendo todos os dias, tomo café e logo sento para escrever. Não posso me arrumar, trocar de roupa, conversar com ninguém. Preciso me manter isolada do mundo, para que ele não me carregue. O ideal é que seja logo cedo, antes da casa acordar e dos ruídos começarem. Quando consigo isso por alguns dias seguidos é muito bom: fico simplesmente feliz e realizada o resto do dia. Mas quando não estou conectada, quando estou fugindo, acabo dispersando antes de começar a escrever. Se abro uma mídia social, e-mail que seja, aí já estou na lida e a escrita fica para o dia seguinte.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo basicamente de manhã, de tarde só trabalho quando é a revisão de uma parte já consolidada. De noite eu leio, não consigo escrever depois de um dia fazendo coisas, exposta ao nosso caos diário, tenho a sensação de que meu texto ficaria poluído.
Quando sento para escrever, dou uma lida e revisada rápida no que escrevi no dia anterior e continuo. Se não é continuação, se é algo novo, fico uns minutos olhando para a tela e para o teclado, segurando a cabeça, como se o mundo estivesse acabado. Preciso acionar algo dentro de mim para começar e isso acontece apenas pelo o pensamento. Em algum momento vem uma ideiazinha e eu começo a escrever, aí começa a fluir.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tenho dois módulos: o de escrever e o de não escrever. Quando estou escrevendo bem, é todo dia, ou melhor, quando escrevo bem é por que estou escrevendo tosos os dias. Se paro, desanda tudo até eu conseguir retomar. Não é fácil e é bastante desgastante esse escreve-não-escreve. Fico me cobrando, e pior, perco a sintonia com o que estou escrevendo e se penso no texto, acho tudo péssimo. Quando escrevo todos os dias, até o que está ruim eu gosto.
Minha meta, ou meu limite, é a exaustão. Em geral são três a cinco páginas, depois disso estou extenuada e meu corpo pede para parar. Às vezes teimo um pouco e continuo, às vezes paro ao primeiro toque.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não faço roteiro ou projeto, nunca sei o que vou escrever. Funciono no estilo a escrita puxa a escrita ou a escrita se faz escrevendo. Quando começo, tenho só uma vaga ideia de algo essencial do romance, mas tudo sai aos poucos, na medida em que avanço. É bastante desesperador, mas ao mesmo tempo há momentos em que flui muito bem e as coisas começam a fazer sentido. De tempos em tempos, motivada por algum fator externo como leitura, aula, palestra, eu ganho um novo entendimento do texto e remodelo ou rearranjo o sentido, o rumo da historia e da estrutura. Às vezes até o léxico muda por conta desses rearranjos.
Não tenho notas escritas. As raras que faço, nunca releio e nunca uso.
Para o que venho escrevendo, não fiz pesquisa muito vasta, pelo menos não de dados e não prévias. As dúvidas e questões aparecem no momento da escrita e aí consulto na hora, se for algo mais complexo, deixo uma nota para pesquisar depois. Parece que minha pesquisa é primeiramente interna, remodelando o material sedimentado a vida toda, aí quando surge algo mais firme, eu estudo, pesquiso e mexo no texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que vou responder essa depois… rsrs. No momento estou bem em meio à crise do primeiro livro publicado. Foi em junho e desde então estou caçando os fantasmas, do sucesso e do fracasso. Tento avançar no segundo projeto, mas vai indo devagar. Minha pior ansiedade não é o projeto longo, mas sim conseguir ter o primeiro desenho do livro, antes dessa fase, tudo é mais difícil.
Atualmente, com o país do jeito em que está, a procrastinação ganha um outro sentido, pois não é só a enrolação, mas é a angústia que vem cada vez que vemos noticias e mídias sociais. Está tudo tão feio e tão intenso, que algumas vezes acho que não tenho o direito de me debruçar sobre a escrita e tocar um projeto individual. Parece que só o espaço coletivo é capaz de nos valer nesse momento, e a escrita é individual. Como eu disse no início sobre poluir a escrita com a sujeira do dia, sinto que tudo o que eu fizer vai estar contaminado por essa sujidade medonha que estamos vivendo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso inúmeras vezes. Todo dia reviso o que escrevi na véspera, de tempos em tempos reviso partes grandes para adequar a algo que mudou lá na frente e, depois de ter escrito tudo, recomeço uma nova escrita. Essa é a parte que mais gosto, reescrever tudo de novo. É nesse momento que a escrita entra em sintonia fina e o trabalho com a linguagem ganha mais força e importância. O meu primeiro romance foi reescrito quatro vezes e, claro, pronto nunca está.
Como fiz curso de formação de escritores, a rotina de submeter os textos aos colegas e professores tornou-se parte do meu processo, não imagino escrever sem ouvir os comentários e ir corrigindo a rota. Mas eu acho que o texto tem que ser mostrado para quem também escreve, para colegas, pois mostrar para “leigos” pode não ajudar muito. O que mais importa no momento de ouvir os comentários, não é o que o personagem fez ou deixou de fazer, ou qual o sentido de tal passagem. Não é a interpretação dos fatos, mas a análise da estrutura e da técnica, quais elementos e qual estrutura são necessários para conseguir tal efeito.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Só escrevo no computador. No meu computador de mesa, um PC, que já está ficando antigo, com Windows 7. Não uso notebook, anoto muito raro no notes do celular, mas nunca releio. Não uso caderno e não escrevo à mão. Há algo do sistema, olhos-tela- dedo-teclado que fazem a linguagem se mover e a escrita começar a sair.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm da leitura de literatura, da observação do mundo e da observação interna. Alguma coisa pontual de teoria literária ou de temas específicos para algum momento de pesquisa. Agora que estou escrevendo auto ficção (ou será memórias?), preciso fazer mergulhos internos, bem profundos e complicados, na busca de lembranças, fatos e sentimentos que sirvam de material para achar o fio da meada do que pretendo fazer. Mas na verdade não acredito em criatividade, ou então não sou criativa. Tenho a impressão de que o que faço é pisar minhas uvas para extrair o sumo: é sempre o mesmo material, mas ao pisar, transformo o que é inominável em linguagem.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que ainda não tenho muitos anos corridos para ter mudado. Eu estudei e aprendi muito nos cursos que fiz e isso se reflete, claro, na escrita. Também passei a ler como escritora, o que faz muita diferença.
O que eu diria para mim mesma é o que eu ainda digo todos os dias, nesse momento que estou no inicio de um novo livro: solta a mão! Eu, apesar de fazer sempre muitas revisões, tenho uma superstição de que eu só posso escrever o que for o exato para contar aquela história, sem tentativa e erro. Mesmo sabendo que depois de uma primeira versão tudo pode ser mudado e melhorado, eu fico achando que a primeira escrita vai se cristalizar, forjando para sempre aquele texto. Eu sei que isso é bobagem, pois já passei por essa experiência e já li em manuais e já conversei com professores e colegas, mas nada me convence de que posso, e tenho, que escrever muita coisa ruim até achar algo que faça sentido para mim.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de fazer uma trilogia, três livros que rondem alguns aspectos da personalidade feminina. Três mulheres que são opostas e similares. Já escrevi o romance “Martina em Movimento” (Quelônio, 2018) que tem uma personagem feminina que é fraca e forte ao mesmo tempo, agora estou na luta para escrever algo que tenha eu mesma transformada em personagem e o terceiro ainda não vislumbro, mas desconfio que, entre a Flávia-personagem e a Martina (personagem do meu primeiro romance), deve ter um elo faltando.
O livro que ainda não existe e que eu queria ler seria um livro de História escrito em 2039 que nos contasse o que aconteceu com o país e com o mundo. Que analisasse os fatos com olhos distanciados e que nos contasse que rumo tomamos. E que, de preferência, falasse dos anos atuais como uma bad trip desumana, mas que felizmente passou logo.