Flávia Andrade é psicóloga e poeta, autora de “A cidade do tempo cão e outros poemas de fissuras” (Patuá).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Normalmente estou envolvida com todas as minhas atividades de trabalho que não são diretamente relacionadas com a poesia/literatura. Atuo no dia a dia como psicóloga e docente, o que atravessa a minha escrita, diretamente. Mas meus primeiros momentos do dia são sempre corridos, apressados. Abro meu email rapidamente e me envolvo na rotina profissional. Aos finais de semana ou quando estou de férias há mais tempo para me dedicar pela manhã às atividades literárias. Nessas ocasiões, verifico a página Mulheres na poesia, a qual sou curadora, logo pela manhã. Publico novas postagens, atualizo o que for necessário atualizar e verifico coisas novas. Tenho conhecido muitas mulheres poetas maravilhosas e potentes por conta da página. E todo esse movimento agitado, de muitas atividades de áreas diferentes, e, a meu ver, complementares, alimenta minha trajetória, minha personalidade e, sem dúvida, minha forma de escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu normalmente escrevo em todos os momentos nos quais vem um insight, uma ideia, mesmo que seja um rabisco a ser desenvolvido posteriormente. As mais variadas circunstâncias podem trazer o insight a ser transformado em poesia, eu procuro me manter atenta. Mas o horário em que geralmente eu mais escrevo é à noite. Nos fins de semana, quando me organizo para a dedicação à escrita geralmente passo várias horas escrevendo, de tarde para a noite. Isso se aplica tanto a poesia quanto a textos acadêmicos, técnicos. Não costumo ruminar muito tempo aquilo que escrevo. Minha escrita é, na maior parte dos casos, direta, objetiva e eu vou do início ao fim de uma só vez. Quando comecei a me dedicar a escrever poemas eles eram, muitas vezes, quase catárticos. Escrevia quando em tristeza, quando em angústia, ou quando em revolta e nessas ocasiões a escrita saía quase tremida, de dedos tremidos. Sem dúvida isso foi importante por um tempo e fez parte de um processo que está a me construir como poeta. Mas atualmente não tem sido assim. Meus poemas têm sido escritos após certo período de reflexão, após algum tempo de questionamentos em torno de determinado assunto, ou após devaneios cotidianos. O que segue parecido é a objetividade. Não costumo revisitar muitas vezes o mesmo texto, os mesmos poemas. Eles saem de uma vez. É quase uma escrita crua. E eu gosto que seja assim. Gosto de pensar e de afirmar que a escrita me é. E se eu elaborar demais perde a autenticidade.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias, mas mantenho meus rascunhos atentos e as anotações que forem surgindo naturalmente. Meus dias são, como eu disse a pouco, muito corridos, o que por um lado impossibilita uma meta diária de escrita e por outro, aduba as ideias, produz certa acuidade de sentidos, a sensibilidade tão importante para escrever poemas.
Existe também outro ponto importante: para mim, parece haver uma dinâmica cíclica. Há períodos de muita fertilidade e períodos de calmaria, de pouca escrita ou nenhuma escrita. Eu, parafraseando a Clarice, poderia afirmar que também não sei escrever por encomenda. Pode acontecer e já aconteceu, mas não é o meu estilo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
São processos complementares, tanto nos textos poéticos quanto nos textos acadêmicos. Eu escrevo desde muito guria, não costumo ter momentos de trava porque eu geralmente me proponho a escrever sempre sobre aquilo que realmente me afeta de alguma forma. Nesses casos, não há silêncio, há algo a dizer em geral. Não separo quem sou dos meus poemas, eles fazem parte da minha trajetória e como não escrevo sob encomenda, a não ser que eu realmente queira, é geralmente algo que me afeta, me atravessa e que escreverei sobre. Meus poemas são quase todos escritos direto, numa “paulada” só. Mas há alguns poucos que são escritos a partir de notas. Geralmente aquilo que chamo de notas já é quase a totalidade do corpo do poema. Além disso, sou uma leitora voraz, estou sempre lendo mais de dois livros ao mesmo tempo, dos mais variados assuntos: Filosofia, Literatura, Psicanálise, Poesia, Dramaturgia etc. Há temas caros e complementares a diversas dessas áreas e caros também à minha trajetória então escrever a respeito é uma complementaridade. Mas é importante eu dizer que nunca quero e não quererei que meus poemas tenham, propositalmente, um viés intelectualizado demais.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando a escrita trava eu procuro fazer outra coisa, não insisto. Se a escrita travou significa que não há certa conexão necessária e até certo relaxamento necessário para que a escrita seja um processo natural. Se a escrita travou em textos técnicos, falta provavelmente, amadurecer a ideia, falta pesquisa. Mas pode ser também ansiedade, então eu vou fazer outra coisa: ouvir música, tomar uma cerveja, ver um filme o mais bobo possível, conversar com alguém. A escrita precisa vir natural, não forçada. E meus poemas geralmente vem, é difícil travar. Mas eventualmente, quando acontece, eu trato da mesma forma, não insisto, não brigo com o texto, não fico parada diante da tela em branco. Fecho tudo e faço outras coisas. Retorno à escrita depois da mente relaxada e na hora da disposição, daquela inspiração. Preciso escrever quando estou com o pique para escrever. A escrita exige libido, exige tesão, desejo, vontade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Mostro sempre meus textos para meus amigos, sempre. Acho necessários os outros olhares, principalmente para os poemas, que devem ganhar o mundo. Mas nem sempre eu acato às sugestões, como eu disse, para mim é essencial manter certo nível de espontaneidade nos poemas.
E eu também sempre reviso. Acho que já procuro, naturalmente, um certo grau de objetividade em tudo que escrevo, mas sempre há espaço para deixar o texto mais objetivo e impactante possível. Gosto do princípio de rarefação da escrita, inclusive nos poemas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto de tecnologia, mas também gosto de manter hábitos mais, digamos, clássicos. Não abro mão dos livros físicos, das anotações nos livros, sempre a lápis. Mas eu sempre escrevo diretamente no computador, não me lembro de nada que eu tenha escrito no papel, nenhum dos meus poemas nasceu em papel. Quando tenho ideias para escrita posso abrir imediatamente bloco de notas, ou qualquer outra tecnologia nesse sentido. E eu tenho uma infinidade de textos que escrevo no corpo do email e envio para mim mesma. É um modo talvez arcaico de assegurar que não perderei nem o texto, nem a ideia, nem o documento, já que estará no email. Depois recupero tudo e coloco em um único arquivo. Meu primeiro livro A cidade do tempo cão e outros poemas de fissuras, foi todo escrito desse modo. Eu escrevia todos os poemas em email e enviava para mim mesma. Todos os poemas saíram desse esquema: toda vez que eu tinha ideias de escrever a respeito da minha relação com a cidade de São Paulo (A qual chamo cidade do tempo cão no livro), eu abria meu email, redigia o poema e me enviava. No fim do processo, quando decidi transformar esses escritos em texto, recuperei tudo, os poemas sobre São Paulo e todos os demais poemas (sobre desejo, angústia, etc) do meu email, incluí em arquivo do Word e elaborei o livro. Agora, trabalhando no segundo livro de poemas, o processo tem sido diferente: tenho maturado um pouco mais os poemas, mas continuo seguindo a minha lógica pessoal de não destrinchar demais, não revisar demais. Quero manter a espontaneidade da escrita. Só que agora escrevo diretamente no Word, ou, quando não é possível, escrevo no email e transcrevo assim que possível para minha pasta de poemas. Assim fica mais fácil organizar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vem da vida, de todas as formas de vida: das alegrias, da trajetória pessoal, do amor, da angústia de estar vivo, da angústia da finitude com a qual trabalho por ser psicóloga, das grandes questões filosóficas que são no fundo, grandes questões da vida. Minhas ideias vem do cotidiano, para o qual procuro manter o olhar de estranhamento. Considero necessário, primordial, manter o olhar de espanto para as coisas do mundo, para o cotidiano. É do espanto que nascem os poemas. A maior parte dos meus poemas nasce de certa angústia, mas muitos também são escritos a partir do amor, do desejo, são poemas que muitas vezes é o corpo quem escreve. Há muitos modos de escrever e de se inspirar, mantendo a sensibilidade aguçada.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Minha escrita se tornou menos catártica e mais refletida. Escrevo desde sempre, escrevo desde adolescente, então muito provavelmente minha escrita mudou e se transformou muitas vezes e vai se transformar constantemente.
Eu diria a mim mesma para manter exatamente a mesma postura, necessária para aquele ponto da minha trajetória. Não mudaria nada. Considero esses caminhos, todo esse trajeto percorrido, fundamental para um devir de poeta, que existe, é real. O poeta não é uma meta, é uma constante ressignificação, assim como o humano.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou a todo vapor com a Mulheres na Poesia que é um espaço para divulgação de mulheres poetas, tanto as já consagradas quanto as contemporâneas. Na página são publicados poemas inéditos e poemas já constantes em livros. Tenho descoberto poetas absurdamente incríveis e muitas delas jamais mostrariam seus poemas se não fosse a página, isso é extremamente potente e gratificante. Estou muito feliz com esse trabalho, com esse projeto. Além dele, quero continuar a trajetória de poeta pelo resto da vida. Estou trabalhando no meu segundo livro de poemas, que pretendo publicar em 2021. Em 2021 também pretendo publicar meu livro técnico, dando continuidade na divulgação da minha dissertação em Filosofia. Para um futuro mais distante, tenho vontade de fazer um documentário e de escrever dramaturgia, sou absolutamente apaixonada por arte e teatro.