Filomeno Moraes é professor de Direito Constitucional cum Ciência Política.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O meu dia começa cedo, normalmente um pouco depois das quatro horas da manhã. Acordo juntamente com os pássaros: um trinado, um pio, um lamento. Lá pelas seis, os bem-te-vis estão em revoada ruidosa, proclamando, contra qualquer pessimismo, que há vida bela na face da terra. Leio os jornais impressos e olho os virtuais. Nestes o que me interessa, imprimo para ler. Em regra, começo em seguida a trabalhar nos intermináveis escritos. Digo intermináveis por dois motivos, o de que há sempre tarefas a executar e o de que o ato de escrever para mim é interminável.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para escrever, a manhã é o período mais produtivo. Com muito café muito quente, muito forte e muito amargo. Em outros tempos, já fui noctívago, mas o nascimento dos filhos virou de ponta-cabeça o meu sono. Agora, tendo a dormir mais cedo e acordar muito cedo. Também sou como aquele Riobaldo, do Grande sertão: veredas, que dizia: “Melhor, para a ideia se bem abrir, é viajando em trem-de-ferro. Pudesse, vivia para cima e para baixo, dentro dele”. A minha produção escrita em aeroportos, aviões e quartos de hotel, quando viajava frequentemente, foi intensamente fértil. Agora, nestes tempos pestilentos, é no escritório doméstico mesmo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
De uns poucos tempos para cá, escrevo diariamente – de segunda a sexta-feira – em torno de duas a três horas. Quando os prazos oprimem, escrevo concentradamente. Mas preciso de tempo para amadurecer os escritos. Por isso, cada vez mais, gosto de escrever pequenos artigos, um escrever beneditino, que, “no aconchego do claustro, no silêncio e no sossego”, se “trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua”, como dizia Olavo Bilac.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
De modo geral, tenho um certo background de pesquisa, adquirido de modo remoto ou recente, referente aos assuntos sobre os quais tenho de escrever ou sobre os quais gostaria de escrever, que é no âmbito do que chamo “o Direito Constitucional cum Ciência Política” (teoria e história constitucionais, e instituições políticas). Parafraseando Maquiavel, a minha missão é falar sobre o Estado, logo estudo com muito gosto a matéria no cotidiano, mesma que não haja um objetivo imediato. Além do mais, tenho curiosidades laterais variadas, a saber, literatura, mitologia greco-romana, biografias e autobiografias de escritores e de políticos. Também leio o que vejo, sobretudo nos cadernos culturais dos jornais, acerca do Machado de Assis, Joaquim Nabuco e Padre Antônio Vieira. E habitualmente leio Eça de Queiroz, no sentido de reforçar a ironia com que enfrento diversos despotismos da vida.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Já fui um especialista em procrastinação, mas consegui me impor certa disciplina. Quanto ao medo de não corresponder às expectativas diminuiu sensivelmente com o passar dos anos. Tenho a consciência de que, ao fim e ao cabo, se escreve menos para os outros e mais para si mesmo. Quanto a projetos longos, temo-os. Afinal, como dizia um economista inglês, a longo prazo todos nós estaremos mortos. Quando há bloqueios, não insisto, busco temporariamente um derivativo na leitura de ficção e assisto a filmes e séries, estas principalmente de cunho histórico. Venturosamente, tenho a sensação de que, agora, as travas, bloqueios e procrastinações estão involuindo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O mais que puder, às vezes, até o momento fatal da entrega. O computador ajuda muito. Também sou muito zeloso com o idioma vernáculo, de modo que consulto recorrentemente um ou mais dicionários. Em alguma medida, tenho o espírito daquele senador do conto O velho Senado, do Machado de Assis. O parlamentar, filósofo e filólogo, embora muito presente às sessões, nunca falava, mas ouvia atentamente os oradores e recorria a um Dicionário de Moraes guardado ao pé da cadeira, quando se pronunciava uma palavra inadequada ou imprópria. Quanto aos artigos mais longos, havendo tempo, busco alguém para lê-los em primeira mão, em busca de comentários críticos. Uma confidência: de modo geral não há tempo, pois funciono sob a pressão dos prazos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quase sempre escrevo no computador. Aliás, o computador foi a minha salvação, antes os bloqueios eram terríveis e me travavam a escrita. Bendito computador! Mas também faço uso de bloquinhos de anotações, guardanapos de papel e anotações no celular, em viagens e durante conferências e seminários.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que, nesta matéria, sou um borgiano. No poema Mis libros, Jorge Luís Borges diz: “Mis libros (que no saben que yo existo)/son tan parte de mí como este rostro […]/No sin alguna lógica amargura/pienso que las palabras esenciales/que me expresan están en esas hojas/que no saben quién soy, no en las que he escrito”.Quando possível, leio a literatura de ficção relativa à matéria sobre a qual escrevo. Por exemplo, tenho lidos e relidos os livros possíveis sobre o “ditador” latino-americano, como os de Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Augusto Roa Bastos, Miguel Ángel Asturias. E os que tangenciam o processo político brasileiro, como os de Machado de Assis, Lima Barreto, João Ubaldo Ribeiro. Recorrentemente, penso em personagens como o formidável coronel Aureliano Buendía, do Cem anos de solidão, que travou 32 guerras perdidas para colocar os liberais no poder, e viu que, quando lá chegaram, praticavam as mesmas ações dos oligarcas e conservadores; o Sargento Getúlio (João Ubaldo Ribeiro), que, torturando o seu prisioneiro, chamava-o de “udenista comunista”; o homem que sabia javanês (Lima Barreto); o deputado Paulo Santos, do Vila dos Confins (Mário Palmério) etc. etc. etc. Faço leituras de romances, contos, epopeias. Tenho alguns livros a que volto recorrentemente, entre os quais, a Ilíada, a Odisseia, a Divina Comédia, Os Lusíadas, Dom Quixote… E não esqueço alguns oráculos, entre outros, Maquiavel, Max Weber, Norberto Bobbio, Joaquim Nabuco, Victor Nunes Leal, Raymundo Faoro. Além do mais, sou um compulsivo leitor de jornais. Tenho um livro já começado que, provisoriamente, chamo de “memórias de um ledor de jornais”.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A graduação em Direito agregou-me um estilo razoavelmente bacharelesco de escrever, um sério candidato a Rui Barbosa de botequim. Depois, no mestrado em Ciência Política, no antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, recebi uma crítica construtiva e uma orientação salutar do professor Renato Boschi, ajudando-me muito a depurar o estilo. Depois ainda, o escrever para jornais e a leitura dos clássicos da Política, como Maquiavel, Montesquieu, Rousseau e Marx, me ajudaram a tentar dizer o que quero de forma mais simples. A leitura recorrente de Norberto Bobbio também contribuiu consideravelmente. Bobbio é o erudito mais simples que já li, consegue tratar com clareza as mais complexas e profundas questões da filosofia política. Quanto ao passado, à la Ortega y Gasset (“Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”), cada momento foi o degrau de uma grande escada.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Os meus projetos de escrita estão em realização, alguns necessitando de coragem e oportunidade. Tenho uma história das constituintes brasileiras (não é história das constituições, mas das constituintes, as quais, como disse Raymundo Faoro, mesmo limitadas, foram momentos excepcionais de afirmação dos valores civilizatórios no país), inacabada e temporariamente abandonada, mas já bem encaminhada. Pensei – mas desisti por diversos motivos – em escrever a biografia política de Virgílio Távora, que começou a sua vida pública já no plano nacional, secretário-geral da União Democrática Nacional (UDN) e, sendo conservador, foi, todavia, o estadista cearense mais formidável, moderno, desenvolvimentista e politicamente tolerante, e tinha impressionante visão do Brasil como um todo. Em parceria, comecei a escrever um livro sobre a democracia brasileira, que teve de ser cancelado. Como projeto imediato, escrevo um artigo sobre as “formas políticas” adotadas pela Espanha (1978) e Brasil (1988). E junto material para um trabalho sobre o sistema de governo brasileiro, fundamentalmente a aventura (com as suas venturas e desventuras) do presidencialismo. Com tantos livros para ler, não tenho pensado em livros inexistentes. Acho que tem toda a razão aquele indivíduo que afirmou que não se deve ler bons livros, porque o tempo não dá para ler nem os excelentes. Ou, como dizia o Carlos Drummond de Andrade: “Nem sequer li os textos das pirâmides/os textos dos sarcófagos,/estou atrasadíssimo nos gregos,/não conheço os Anais de Assurbanipal”.