Filippi Fernandes é escritor, pesquisador, educador e idealizador da Arca da Palavra.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Inicio meu dia cantilando mantras de minha tradição espiritual da Cabala Ancestral. É importante que eu sinta diariamente o viço da terra, olhando um tempo para o céu, para os pássaros ou para a palma de minhas mãos, a fim de que eu possa assentar o meu corpo e começar o dia inteiriço. Começar a apalpar o corpo é uma forma gentil de começar com a alma.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Na hora em que escolho a frequência correta. Isso independe da hora. Tenho um ritual de preparação, sim. Aliás, sem o ritual, não consigo consolidar a expressão. Ele é fundamental para que o encontro com a frequência correta aconteça. Não há fórmula para alcançá-la. Apenas direciono o meu foco intuitivamente para a frequência e a conexão acontece com um delineamento de imagens.
Aprendi que essas imagens não são tábulas rasas, que estão relacionadas com o universo do sentido que moldaram o ser do escritor. Neste sentido, é preciso que a sintonia cumpra o papel de alinhar o universo de sentido do escritor.
Vejo a criação como algo profundamente integrada à vida. O que faço, então, é traduzir as imagens em palavras e narrativas a partir de um sentido (visão, audição, olfato, paladar, tato).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Já trabalhei profundamente em períodos concentrados quando estive preparando “A colheita dos grãos: odes sonoras”. A minha meta era, creio, a de esgotar a experiência. Mas atualmente vejo a escrita de maneira diferente. Creio que é preciso que seja feito com naturalidade, como uma prática integradora no todo. Exatamente como a meditação, com começo, meio e fim, conforme o fôlego e o assentamento da energia no corpo.
Entendo que não é preciso esgotar a experiência. Na verdade, tenho me interessado mais pela escrita da alma do que pela escrita. Há várias formas de se escrever a expressão, seja pela vocalização de um mantra com variações rítmicas, uso de tambor e outros instrumentos musicais.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como dito na questão no. 2, o processo tem sua ritualística baseado nas frequências e na sintonia entre o dentro e o fora. Acabo de publicar um livro chamado “A colheita dos grãos: odes sonoras” em que passei por um processo de experimentação da escuta, por cerca de 10 anos. Neste livro, adotei estratégias diferenciadas de aproximação com a frequência musical: escutava em looping uma mesma música por cerca de 40 minutos e depois me punha a escrever de memória as sensações e imagens que mais me marcaram; entrava num fluxo de consciência enquanto ia ouvindo a música e depois construía o restante do texto, em silêncio, como quem lapidasse uma escultura; selecionava trechos de uma música, silenciava e escrevia; lia em voz alta algumas palavras-chaves que brotaram pelo estímulo musical, após ouvir uma só vez, e improvisava com o que não ouvia; ouvia a música ao longo de uma semana e ia decantando palavras ao longo dessa semana, até que formasse um sentido claro e definitivo.
Estabeleci também alguns movimentos de aprofundamento, quando me pus a ler um pouco mais sobre a vida do compositor e do momento em que a música foi composta para ter mais clareza sobre o fenômeno musical; pesquisava pinturas e fotografias que pudessem dialogar com a música, obras que correspondessem ao tempo em que o compositor viveu ou com energias parecidas, para que pudesse me demorar sobre elas. Estes movimentos auxiliavam na criação da atmosfera para as palavras e o texto.
Em suma, os processos foram diversificados. Não posso dizer que haja um processo mais adequado do que outro, mas estou certo que a composição de aprofundamento com pinturas e fotografias me renderam belas atmosferas e envolventes viagens, com mergulhos profundos na alma, disso não tenho dúvida alguma, pois até sonhava com algumas…
Tenho um outro livro que pretendo publicar futuramente que tratam das frequências visuais, onde me inspiro em filmes que assisti. Como o trato são com fotogramas, as práticas são outras. E há também um livro sobre comidas que experimentei.
O que vejo em comum é uma busca pelo que é instintivo, sensorial, que é o espaço onde habitam as vivências.
A união do processo de pesquisa com o processo de escrita é muito orgânico. Não conseguiria dissociar um processo do outro, já que só escrevo porque pesquiso. Sigo a intuição para fins de começo, pego a frequência, vou entremeando a costura de palavra em palavra e, no fim do processo, releio e saio esculpindo o grosso do mármore até permanecer a súmula da súmula. Como sei que o texto terminou? Quando sinto o texto sincronizado com a frequência que o propiciou, como uma locomotiva a passar pelos trilhos.
A minha criação precisa saber dialogar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando percebo que há algo que não está fluindo, que aquela frequência está equivocada, pesquiso a frequência correta. Deixo aquela para outro momento. É como se fosse frio e eu estivesse colocando a roupa de verão. Situo a frequência do frio de um lado e a frequência do calor no outro.
Como o rádio sou eu, escuto o silêncio antes que o desejo de escrever possa brotar. Preciso ter paciência e evitar a todo o custo a distração, para que esse desejo de escrever pulsante não desapareça. Mas mesmo quando eu sentia que o desejo estava desaparecendo, eu sabia que ele estava dentro de mim, que basta encontrar aquela frequência específica para fazê-lo acordar outra vez. Temos uma memória mais vasta do que podemos conceber.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Em relação à escrita de “A colheita dos grãos: odes sonoras”, muitas foram as experimentações entre música, texto e imagem. Vez ou outra, passado algum tempo após o término, gostava de reler para que pudesse sentir aquela música ou então, gostava de escutar a música, para sentir aquele texto. Sentia que estavam bem casados, que o matrimônio havia sido estabelecido.
Quando isto acontecia a vivência entre som e palavra havia sido cumprida com sucesso e a cura havia sido feita. Sentia apenas vontade de que algum dia alguém pudesse também comprar a ideia da vivência, como eu fiz. Não de que meu texto fosse a representação real e absoluta do que representa aquela música, e sim pelo tipo de compromisso e matrimônio que as palavras podem assumir perante determinadas obras humanas.
Foi então que passei a me envolver com a produção de uma oficina de escrita contemplativa, coisa que faço hoje em minha empresa pelo @ArcadaPalavra.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Durante muito tempo tive por hábito escrever os textos no meu blog pessoal Devaneios & Ossos que hoje está desatualizado. Escrevia o texto diretamente por lá e o publicava após terminar de escrever. Tenho meus moleskines, mas é inegável que o lugar do fluxo e da conexão foi e continua sendo o teclado de um computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Já respondi nas questões acima. Tenho por hábito a pesquisa de frequências musicais, materiais que possam ajudar na criação da ambientação.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ganhei mais maturidade acerca de quem sou, e em como posso filtrar as inspirações para uma maior fluência da cura, baseado naquilo que me cerca e no que emano para a vida.
Se eu pudesse voltar no tempo, nada diria ao Filippi que iniciou as pesquisas. É natural que possamos nos aperfeiçoar com os erros e com o tempo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Desenvolver novas oficinas de escrita em torno do essencial. Acho essencial reabitarmos valores e lugares esquecidos pela modernidade, que vem quebrando e depauperando a arte. O livro que mais gostaria de ler é o livro da alma. Não acho mais graça em ler livros de autores que falam de seus sentimentos pessoais. Gostaria de conhecer autores que abordam o essencial, que entendam a linguagem afetiva da co-criação, sem monumentalização. Um exemplo: as cartas em vídeo de Shûji Terayama e Shuntarô Tanikawa. Recomendo. Está disponível no youtube.