Fernando Vugman é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Comecei a escrever ainda menino e agora, aos 60, acumulo um longo percurso de rotinas variadas. Adolescente, devorava textos, desde os clássicos na biblioteca dos meus pais, até HQs, que colecionava avidamente. Nessa época, carregava comigo, sempre, um lápis e algum papel. Assim que algo me chamava a atenção, anotava uma frase, às vezes apenas palavras-chave, para desenvolver numa história, mais tarde. Escrevia minhas histórias em um caderno com espiral. A maioria das minhas tentativas não era concluída, mas o simples exercício de olhar para o mundo como fonte de narrativas se mostraria fundamental no meu futuro como escritor. Do mesmo modo, ler muito, de tudo, é essencial para criar na mente um repertório de estilos, um vocabulário extenso. Foi como leitor ávido, desde criança, que percebi que a um escritor é permitido desrespeitar a gramática em favor da narrativa, desde que consciente, com clareza do ganho formal ou semântico que se está buscando. É muito importante dominar a gramática e a norma culta, mas estas nunca devem ser entendidas como obstáculo e enclausuramento.
No tempo da faculdade, morando em república, participei do jornal do Centro Acadêmico, o que me deu a prática do texto político e urgente, mas também, como responsável pela seção cultural, exercitei a prática do texto apenas compromissado com minha necessidade pessoal de escrever. Alguns anos mais tarde, já formado em biologia médica, desempregado, gastava as madrugadas escrevendo à caneta, esboços e mais esboços de contos e narrativas breves. Foi quando produzi meu primeiro volume de textos, na forma de projeto para um livro. Cerca de vinte e cinco anos depois, durante seis meses, retrabalhei cada pequena história, acrescentei outras, e finalizei meu primeiro livro: A casa sem fim. Ao longo de todo o processo na escritura desse livro, duas coisas foram definidoras da minha forma de escrever atual: tratar um tema central a partir de vários olhares e escrever cada narrativa num estilo diferente; ora um conto é organizado pela preocupação com o ritmo narrativo, ora com a construção de uma imagem visual, ora uma tentativa de transmitir uma única ideia, etc.
Mais tarde, vivi a rotina do escrever acadêmico (mestrado e doutorado em letras/inglês). Leitura obrigatória de incontáveis páginas de textos teóricos e de ficção. A disciplina é fundamental. A curiosidade, também. Escrevemos trabalhos pedidos, como exercício do jargão e do formato acadêmico, mas também como aprendizado para abordar questões teóricas por escrito. Apesar dos constrangimentos formais do texto acadêmico, existe uma gama de possibilidades estilísticas dentro desse formato. Deve-se buscar um estilo que permita uma leitura agradável, mesmo para o não especialista, o que inclui evitar ao máximo o jargão específico e construções complicadas. Para a redação da dissertação ou da tese, apaixonar-se pela sua questão, pelo seu tema/objeto é essencial. Acredito essencial que a investigação do objeto seja também uma investigação de si mesmo, embora isso faça mais sentido nas Humanidades.
Passados trinta anos na Academia, desliguei-me para poder colocar a escrita no centro da minha vida. Meu terceiro livro autoral, A invenção do monstro: do golem ao zumbi, foi produzido ao longo de um ano de intensa rotina: levantar cedo, logo me colocar diante do computador e trabalhar durante horas, até o fim da tarde ou ao anoitecer, com intervalos breves, mas necessários para recuperar algum distanciamento da própria escritura. Às vezes, para conseguir avançar, precisava interromper a escritura para voltar às fontes primárias e secundárias. Isso ajuda a recuperar o fio da meada. Enquanto escrevia o livro, criei a Página do Monstro, no Facebook; o desafio de publicar dois textos semanais serviu para praticar a concisão, para conseguir oferecer um horizonte de informações em apenas três parágrafos, de forma atraente para o leitor desse tipo de plataforma. As postagens semanais, que continuam sedo publicadas, usam o quadro teórico que montei em A invenção do monstro, para a análise de outras narrativas de ficção, de filmes, quadros, esculturas, HQs, etc. Isso me permite testar minhas próprias teses a partir de novos ângulos, ampliando seu alcance e definindo-as com mais precisão.
Enfim, a rotina de um escritor, acadêmico, ou de ficção, deverá se conformar a demandas externas. Adaptar-se às condições da vida é inescapável. O que nunca pode faltar é a ânsia de encadear letras, palavras e frases para dizer algo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Conforme disse acima, não se pode ignorar as condições externas. Dito isto, trabalho melhor de manhã. Meu ritual é simples: desjejum e, antes de começar, leituras leves não relacionadas ao que devo escrever. Conforme as horas avançam, acho importante fazer pequenas pausas para movimentar o corpo e desviar a atenção para fora do próprio texto. Muitas vezes, durante essas pausas, encontramos solução para algum bloqueio. Nessa hora, devemos voltar ao texto imediatamente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
É muito importante escrever todos os dias. Na Academia, somos premidos por prazos, o que praticamente nos obriga a escrever diariamente. Independente disso, escrever todos os dias mantém nosso cérebro engajado, de modo que fica mais fácil retomar a escritura quando necessário, ou possível. Entretanto, uma meta, em termos de quantidade de páginas produzidas, é menos importante. A produtividade resulta da disciplina e do exercício diário de escrever. Isso faz com que sua mente esteja trabalhando o texto o tempo todo, mesmo em um plano mental mais profundo, enquanto se dedica a outras obrigações ou atividades.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No caso do texto acadêmico, primeiro, naturalmente, é preciso determinar o objeto/tema. A partir daí, começa-se a pesquisa, que deve incluir textos e fontes mais estritamente relacionados ao seu objeto, mas também uma pesquisa mais ampla. É preciso ler muito mais do que o que se vai realmente incluir no seu ensaio, tese, etc. Isso é importante, primeiro, para evitar que o seu texto seja dogmático, ou construído a partir de alguma perspectiva muito específica, ou restrita. Nas ciências, particularmente nas Humanidades, as verdades são sempre provisórias e as afirmações estão fadadas, eventualmente, a serem desmentidas. É importante ter isso em mente, para que não se perca a humildade. Particularmente no mestrado, é comum nos apaixonarmos por determinados autores, pela forma como iluminam nossos horizontes, ainda limitados. Essas paixões devem servir de estímulo à investigação dessa(s) fonte(s), mas sempre tendo em mente que o aprofundamento das pesquisas deve levar à consciência da própria ignorância, num processo que deve se manter sempre dinâmico, proporcionando uma perspectiva flexível e, sim, instável do seu objeto/tema. Um pesquisador deve ser movido pela dúvida, e não pelo conforto de eventuais certezas. O ponto de partida deve ser sempre a dúvida, o desconforto diante do mundo.
Antes de iniciar a pesquisa, devemos olhar para o mundo. Olhar perto e longe, e identificar o que incomoda, o que desafia, o que provoca a curiosidade, o que não se encaixa. Esse deve ser o chão sobre o qual a pesquisa deve se iniciar. Com esse procedimento, à medida que construímos uma base de dados sólida sobre nosso objeto, vamos consolidando um contexto mais amplo, um pano de fundo que permite fazer associações menos óbvias. Quanto à compilação de dados, qualquer que seja o método, é preciso que cada pedaço de informação esteja sempre à mão.
Pode ser produtivo fazer anotações soltas de ideias/perguntas que brotam da pesquisa inicial. Neste caso, não é preciso calcular nem prever onde esses retalhos de rascunho irão se encaixar. Parte dessas anotações pode jamais ser utilizada no seu trabalho final, mas o próprio processo posterior de separação do que será e do que não será utilizado é enriquecedor e auxilia na definição do seu “recorte”. Colhido material suficiente para começar a escrever, é útil fazer um sumário provisório. Certamente ele será modificado ao longo do processo de redação, mas servirá como mapa e permitirá decidir com maior discernimento, como e por que o rumo inicial deve ser modificado. Também pode ser útil escrever uma Introdução; as próprias dificuldades e lacunas que possam aparecer na redação dessa Introdução ajudarão a entender melhor o percurso que se tem à frente. Embora ela provavelmente venha a ser bastante modificada mais tarde, ou mesmo descartada, é a chance de tentar visualizar o seu projeto como um todo numa fase ainda muito inicial. Feito tudo isso, deve-se começar a escrever o começo, por mais desafiador que seja, sempre recorrendo ao material pesquisado e às anotações, como forma de avançar.
No caso da ficção, afora a liberdade de escolha muito mais ampla de temas, permanece a necessidade de olhar o mundo despindo-se de ideias pré-concebidas, de certezas, disposto a se surpreender com perspectivas alheias. Ficção se escreve porque há um impulso incontível, uma urgência. Neste sentido, escrevemos para nós mesmos. Mas também é preciso ser lido, é preciso imaginar o seu futuro leitor; textos “na gaveta” são pouco mais do que pensamentos solitários.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas são inevitáveis para quem escreve. Na Academia, com toda a pressão atual pela produtividade, a procrastinação tem limites. Chega o momento de encarar a página branca “na marra”. Ajuda reler o que já se escreveu e as anotações, o fichamento. No limite, escreva, descarte, recomece, descarte e recome até encontrar/retomar o fio da meada. Na hora do bloqueio, também pode ser necessário perguntar a si mesmo se o interesse, a “paixão” pelo seu tema não morreu. Neste caso, insistir pode ser fatal, prolongando uma agonia absolutamente improdutiva. Por isso é tão importante, na hora de escolher seu tema/objeto, ter certeza de que aquilo te move.
Na ficção, devemos escrever enquanto isso for uma necessidade profunda e pessoal. Há autores, que depois de publicar um grande livro, descobrem que não têm mais nada a dizer, calam-se e seguem com a vida de outra maneira. O desafio de escrever ficção somente se justifica quando se manifesta como uma necessidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Em geral, no texto acadêmico, faço revisões parciais enquanto estou escrevendo. Além de ajudar a perceber pequenos erros e problemas, permite avaliar se o texto está avançando na direção desejada, se está coerente. Terminado o primeiro rascunho, reviso quantas vezes achar necessário, até concluir que as ideias estão todas colocadas. Feito isso, faço uma ou duas revisões especificamente formais, sem me preocupar com o “conteúdo”. No texto de ficção, embora o processo seja parecido, é algo mais complexo e subjetivo. A decisão sobre o momento de considerar um texto concluído é sempre arbitrária: há um momento em que precisamos dizer que o texto está pronto, mesmo sabendo que a cada nova leitura perceberemos possibilidades de melhora e correção.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre uso o computador, desde o primeiro rascunho. Muitas vezes, abro um arquivo no Word apenas com um fragmento de ideia, um título, um tema. De tempos em tempos, abro esses arquivos e vejo se estou pronto para desenvolver algum deles.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias são consequência da minha necessidade de escrever. Essa necessidade, que me acompanha desde que aprendi as primeiras letras, define meu olhar sobre o mundo e as pessoas. Como uma segunda natureza, estou sempre imaginando como poderia narrar um acontecimento, a mim relatado, ou por mim testemunhado. O ponto de partida é sempre uma busca interna, uma premência de compreender a mim mesmo, que me leva a tentar a dar sentido ao contexto em que existo. Para mim, não se trata de um conjunto de hábitos que ajude a “ter uma ideia”. Se trata de uma postura diante do mundo e da vida, de um olhar sempre insatisfeito.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que conquistei ao longo dos anos foi a consolidação de um estilo próprio e, ao mesmo tempo, domínio suficiente da escrita para variar em torno desse estilo. Diria ao jovem eu que menos é mais, que devemos tentar dizer o máximo com o menor número possível de palavras. E avisaria que tudo o que escrevemos, ficção ou ensaio, é ou deveria ser um discurso de si mesmo, que nasce da necessidade de compreender e expressar o “eu no mundo”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de voltar à ficção. Tenho na gaveta uma novela e um livro de crônicas. Mas não sei qual novo texto irá me convocar, quando voltar a escrever. Gostaria de ler um livro de ficção científica que propusesse uma utopia ainda não imaginada.
De todo do, quero encerrar dizendo que respondi às perguntas com certa liberdade, preocupado em passar um pouco da minha experiência, com o desejo de que possa ser útil para aqueles cujo dedo coça, exigindo que se escreva, mas que quando se põem a escrever, sentem que o dedo dói.