Fernando Ramos é escritor, cineasta, artista plástico e compositor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O meu dia geralmente começa de noite. Sou um animal noturno. Costumo ir dormir entre cinco e nove horas da manhã e acordo quando o Sol já está quase se pondo. Ou já se pôs. Tenho uma personalidade nervosa e a noite e, especialmente, a madrugada, acalmam meus nervos. Preciso de silêncio e solidão para ouvir melhor minhas vozes interiores. Mas, por vezes, acabo subvertendo esse ciclo e vou dormindo e acordando nos horários mais inusitados, girando ao redor das horas até que, um dia, novamente, enquadro-me nas horas habituais do ser notívago. Acho que todos os humanos possuem certas rotinas matinais ou pós-acordar. No meu caso, eu acordo, tomo um dorflex, um pantoprazol e um acetilcisteína (para as costas, para a úlcera no esôfago e para os pulmões tabagistas, respectivamente). Então, pego uma garrafa de água, um copo de água de côco, o maço de cigarros, o isqueiro, uma pastilha para a garganta e um baseado de maconha que já deixei preparado antes de dormir. E também o celular e, por vezes, papel e caneta. Munido de todos esses itens e não antes de checar se há papel higiênico no suporte, eu sento magistralmente em meu trono e fico por lá durante bastante tempo, cerca de quarenta minutos a uma hora. Enquanto isso, eu vou tragando o baseado lentamente e pensando na vida, bebendo para me hidratar e mirando as cores do dia por entre as frestas da pequena janela do banheiro. Nesse processo, posso fazer coisas diversas: escuto música, leio poemas, canto, componho, leio notícias, passeio pelas páginas do Facebook, e também posso escrever. Um poema, uma letra de música. No bloco de notas ou direto no e-mail do celular, enviando para mim mesmo. Por vezes, já posto na rede social, por outras, deixo guardado. E também já fiz algumas pinturas digitais usando o celular. Enfim, faço tudo isso sentado no vaso até que a minha perna direita – e nunca a esquerda, acredite – fica completamente amortecida e anestesiada, então eu me lembro que devo me levantar. Esse processo é doloroso. O sangue demora bastante a voltar para as articulações da perna direita e preciso me segurar nos suportes de toalhas ou no registro de água para não cair ao chão. Quando consigo firmar a perna direita, limpo-me e entro no chuveiro. Isolo completamente o banheiro e ligo a água quente, que agora vai servir também como sauna, na qual meu sistema respiratório elimina boa parte dos danos. Enquanto tomo banho, ou escuto música ou canto músicas minhas e de outros compositores ou cantarolo melodias improvisadas ou não faço nada, só tomo banho. Depois disso, minha rotina vai depender do meu horário. Se estou acordando ao fim da tarde, logo depois do banho minha namorada chega do trabalho, jantamos, vemos um ou dois filmes, conversamos, transamos e ela vai dormir. Aí eu fico sozinho de madrugada, quando eu posso escrever, pintar, compor, filmar ou editar. Ou, muitas vezes, apenas assistir outros filmes, pesquisar novos diretores. Mas, quando estou no horário diurno e acordando pela manhã, depois do banho, estou sozinho no apartamento. Nesse caso, gosto de jejuar por algumas horas, de quatro a seis horas geralmente. Nesse jejum eu acredito que a criação artística seja propiciada. Pois o corpo tem fome, mas você nega a ele o alimento físico para dá-lo outro alimento: a arte. O corpo deve estar esfomeado e sedento para criar melhor. Pois a arte é também uma forma de saciar essas demandas. Quando estamos muito saciados e satisfeitos, podemos nos questionar sobre a necessidade real que temos de criar algo naquele momento, que já está completo por si. Pois bem. Como eu me divido entre a literatura, o cinema, as artes plásticas e a música, a cada dia minha rotina de trabalho será diferente. Mas, em quaisquer casos, seja de madrugada sem jejuar ou durante o dia e jejuando, eu quero sempre aproveitar esse tempo para a criação. Mas nunca me forço a criar nada. Apenas sigo um impulso. Nos dias que não sinto essa fagulha do criar dentro de mim, eu me limito a ver filmes, ler, talvez pesquisar algum tema do meu interesse. E, quando acordo com essa fagulha, vou criar. Eu só me obrigo a escrever em horários e rotinas determinadas, independente da inspiração, quando estou escrevendo roteiros de cinema. Nesse caso, trabalho com muitas notas, pesquisas, argumentos e descrições dos personagens, seus passados, seus hábitos e pensamentos. Quando já estou seguro de estar com os dois pés fincados nessas vidas, nessas estórias, eu começo a escrever as sequências e passo muitos meses, às vezes um ano, trabalhando neles.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sinto que trabalho melhor de madrugada. Ou durante as manhãs, quando estou acordando cedo. Mas, em 70% do tempo, estou notívago. Quase sempre, escrevo a lápis no papel. Gosto mais de escrever assim. O computador é mais uma ferramenta de revisão e edição do livro, do poema, do conto, do roteiro. Minha mão direita tem a intuição muito mais aguçada para escrever na folha-de-papel-em-branco do que minhas duas mãos juntas no computador. Não tenho um ritual para escrever. Quando baixa o impulso da escrita, eu paro tudo e, imediatamente, escrevo. Embora, como disse antes, por vezes eu escreva no banheiro e, dentro do possível, eu busque um lugar calmo e solitário, posso escrever e escrevo nos lugares mais diversos. Dentro do ônibus. Dentro de uma sala de aula, no transcorrer da aula, sentado num banco de praça ou apoiado num canteiro qualquer da rua. Já escrevi poemas usando os postes como mesa vertical. O único lugar em que você não vai nunca me ver escrevendo é num notebook na mesa do Starbucks. De resto, sou eu mesmo escrevendo ali.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nem todos os dias, nem em períodos concentrados. Eu escrevo em tempos esparsos. A não ser quando escrevo roteiros, nos quais escrevo quase todos os dias até acabá-los. Aí tenho metas. Quatro a cinco páginas por dia. Geralmente, cada página do roteiro equivale a um minuto de filme. Portanto, um roteiro de longa tem cerca de 90 a 120 páginas, ou seja, você pode terminá-lo em 3 semanas, uma vez que já tenha feito o trabalho de pesquisa, descrição dos personagens, argumento completo, esboço inicial dos diálogos. Só que isso é apenas o primeiro tratamento. Depois vem o segundo, terceiro, quarto e por aí vai. A cada tratamento, você revisa e melhora o roteiro até considera-lo pronto. Mas, para os dois livros que já escrevi, Egonia – 9 mm de Prosa, romance filosófico que foi publicado recentemente pela Editora Patuá, e Aos Tímpanos da Zacroquéia, livro de poemas sacrílegos e políticos ainda inédito, não estipulei nenhum ritual de escrita nem metas. Eles nasceram quando ficaram prontos. Todas as obras de arte possuem um ciclo de gestação particular. Acredito que colocar metas rigorosas possa sabotar o alcance da máxima potencialidade da obra. Por exemplo, Egonia é um romance que escrevi durante vinte anos. Nele tem um ou dois fragmentos escritos quando eu tinha 14. Outros escritos aos 16. Aos 20. Aos 25. Aos 33. Eu segui registrando a voz desse personagem Dioniso Bento, que considero um semi-heterônimo meu, uma projeção parcial do meu interior, um alguém secreto que pode escrever o que ele quiser e que pode dialogar comigo e com a folha-de-papel-em-branco para dizer o que não é dito, enxergar o que está na cara mas, mesmo assim, nunca se vê. Para me fazer escutar o som inaudito dos pardais da criação soprando palavras, sons e imagens ao meu ouvido esquerdo. Pois bem. Colecionei os pensamentos, confissões, sensações, angústias e desejos desse personagem-autor por vinte anos e o romance teve muitos títulos e versões-piloto antes de amadurecer de vez, conforme está publicado. Acho que, nos dias de hoje, tudo é tão instantâneo e fugaz, quase ninguém tem a paciência de tocar um projeto artístico que vai consumir um quarto da sua vida. Mas a maturação do tempo é a maior aliada do artista. Para realizarmos grandes obras de arte, temos de largar alqueires da nossa vida aos pés de tais obras. E sei que nos falta muito o impacto dessas criações. Não devemos focar na quantidade apenas. Mas na qualidade. Raduan Nassar escreveu apenas dois livros, mas sempre será lembrado por eles. Quantos autores, mesmo com dezenas de obras publicadas, não estão fadados ao esquecimento futuro? Se até o final de minha vida eu puder entregar ao mundo meia dúzia de livros, meia dúzia de filmes, meia dúzia de séries de pinturas e meia dúzia de discos, já me dou por satisfeito. Se puder, farei mais do que isso. Mas não me angustia a contabilidade das obras. O importante é o quanto elas vão impactar as pessoas e artistas ao redor, fazendo sua parte no coro universal da cultura, entrando nesse jogo de obras e conceitos e escolas e pensamentos, nesse emaranhado referencial que impulsiona a evolução humana para mais além. Se Nietzsche houvesse escrito apenas Assim Falava Zaratustra, já teria sido de uma importância enorme para a nossa cultura. O mesmo de Pessoa, se houvesse escrito apenas o Livro do Desassossego. Aliás, ele levou também vinte anos para fazê-lo, mas, infelizmente, morreu antes de terminar. Por isso levou-se décadas para organizar, decifrar e editar esse livro de acordo com as intenções originais do autor, que largou os manuscritos relativamente desordenados e rasurados dentro de um velho baú. Enfim, é a obra quem guia o artista e não o contrário.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Falando apenas de prosa e poesia, excluindo roteiros ou ensaios de cinema, minha escrita é um jorro espontâneo e improvisado de palavras, ritmos e sons. Não exerço quase nenhum controle sobre esse processo. Freud chamava esse método de escrita de livre associação. De repente, uma ideia, um pensamento, uma palavra ou uma frase saltam em minha mente. Cai uma ficha. Eu sinto uma ebulição de palavras fervendo no cérebro. Corro para pegar papel e lápis e começo a dar vazão escrevendo muito rápido num fluxo contínuo e sem a mediação da razão. Naturalmente, temas e mensagens brotam ao meio dessa selva de palavras. Posso ser guiado pelas mãos da raiva, do desejo, da angústia, da loucura, da indignação, do sonho, do amor. Um sentimento ou sensação costumam guiar-me. Pode ser também um som, um ritmo. O impulso pode surgir do impacto de ver um quadro, um filme. De ouvir uma música. Ou pode nascer das grutas de mim mesmo. O importante nesse método é não pensar, simplesmente transbordar em imagens, palavras, rimas, sensações. Sem querer, revelamos nosso subconsciente ao escrevermos assim. E nosso subconsciente é o banquete mais rico para a literatura. Escrevendo dessa forma, podemos escrever melhor do que sabemos escrever de fato. Acessamos um território virgem no qual toda a nossa bagagem, todas as nossas experiências estão desfilando ao mesmo tempo. Assim, podemos atingir 100% do nosso potencial de criação. Nunca chegaremos lá usando apenas os recursos da razão, tão fria e limitada. E nem é necessário, pois, até mesmo a razão mora no subconsciente. Todo caos tem sua lógica interna, nunca imposta, apenas trazida à tona. O grupo dos surrealistas liderados por Breton, Salvador Dalí e Buñuel usava o mesmo método para criar filmes como O Cão Andaluz e A Idade do Ouro. Chamavam isso de automatismo psíquico. Claro, o cinema surrealista é filho da psicanálise freudiana. Eu escrevo da mesma forma que Jackson Pollock pintava. Action Painting. Eu também pinto e componho dessa forma. Acredito na necessidade da efervescência do clímax da criação para o impacto e originalidade da obra. Claro que, depois, chega o momento de organizar, revisar e melhorar o livro. Nessa hora, o trabalho é mesmo burocrático e exige regras e metas, muito trabalho diário. Nessa etapa, por vezes passo doze a dezesseis horas num mesmo dia trabalhando no livro. Noutras vezes, trabalho de duas a seis horas, mas todos os dias. Mas a escrita em si do material ainda bruto é feita de forma selvagem, libertária, desregrada, fragmentada, improvisada, impulsiva e imprevisível. Creio que essa metodologia seja um dos melhores caminhos para os escritores que almejem mais do que apenas contar uma estória. Para aqueles que pretendem marcar uma época, mudar a nossa forma de enxergar o mundo e a vida, renovar os costumes e fundar novas possibilidades existenciais, sei que esse meu action writing, automatismo psíquico, método da livre associação é um dos melhores meios de se chegar lá. Mas, para tanto, não se pode ter pressa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É muito simples: eu não lido com essas questões. Eu só escrevo quando os canais da escrita estão destravados. Quando não estão, não escrevo. Acho que um grande escritor só deva escrever enquanto tiver algo novo e seu para contar. E esse algo novo, quase sempre, chega num raio e vai embora num sopro de vento. O que me interessa são esses insights. Eu entendo que os momentos de não-criação, esses intervalos supostamente vazios, esse parênteses, esse respiro, sejam essenciais para toda criação. É do ócio que nasce a arte, não do trabalho. Precisamos do vazio, da folha-de-papel-em-branco para projetarmos sobre ela o nosso mundo interior. Eu posso passar meses ou anos sem escrever. Sempre que volto, estou carregado de ideias, conceitos, sentimentos, ritmos e intuições. O trabalho do escritor não é apenas escrever, mas, antes disso, coletar material existencial para tal escrita. E o que recomendo sempre é buscá-lo mais na vida em si do que nos livros, filmes, na pesquisa. No entanto, sou cinéfilo inveterado e assisto de um a quatro filmes todos os dias de minha vida. Muitas inspirações brotam da minha cinefilia. E da música. Minha escrita tem mais influência do cinema, da música e das artes plásticas do que da própria literatura. Mas, de qualquer forma, um grande escritor sempre se beneficia ao viver a vida de forma extrema. Ao menos, durante algum período da sua vida. Lançando-se aos abismos sem paraquedas. Bebendo, fumando, experimentando drogas, perambulando febril pela cidade, varando madrugadas ao sereno, na farra, atolado até o pescoço na esbórnia, transando, amando, rindo, gritando, sonhando. Pois são as experiências limítrofes, geralmente, as mais ricas para a ficção, para a poesia. Para ver as coisas de um jeito diferente, você precisa viver também de um jeito diferente. Prefiro mil vezes ser Rimbaud a ser Borges. Por isso não tenho quaisquer rotinas, metas, horários ou mesmo programação prévia de qual tipo de arte farei em dado mês. O esquema é fazer o que dá na telha e só quando dá na telha. Se fosse para eu ter uma rotina de escritório, teria continuado a trabalhar como advogado, profissão que exerci durante uma década e abandonei parcialmente em 2010 e, de uma vez por todas, em 2013. Foi a decisão mais importante da minha vida. Nunca me arrependi dela, nem por um segundo sequer. Ando quase sempre com pouco dinheiro. Mas, se é mesmo verdade que tempo é dinheiro, não conheço ninguém mais rico do que eu. E nem mais feliz.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Se a revisão se destina ao arquivo final que vai para a editora, reviso muitas vezes. Três, quatro, cinco, por vezes dez vezes. O pente fino é o mais trabalhoso, mas dele nenhum escritor escapa. Se a revisão é apenas para o meu arquivo geral de poemas ou prosas poéticas, para o balaio comum, inda bem antes de saber se tal texto fará parte ou não de tal livro, eu reviso só uma vez. Sou perfeccionista e sofro bastante na etapa final da publicação. Não costumo mostrar a ninguém, mas, quando o faço, é com pessoas muito próximas, que me conhecem profundamente e se importam genuinamente comigo. No entanto, faço isso mais para incrementar as minhas certezas sobre a obra do que para alterar os rumos dela. No fundo, quem sabe mesmo da obra é o artista e ponto final.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre no punho. Computador entra só ao final do processo, para digitar, revisar, ordenar. Não gosto muito de tecnologias. Sou bem mais analógico. Meu primeiro contato com a Internet foi aos quinze anos, já um tanto tardio para os padrões de hoje. Há uns quatro anos apenas que entrei na era dos celulares Touch Screen. E nas redes sociais. Entretanto, os celulares modernos de hoje me ajudaram com a minha arte. Passei a fotografar as pinturas e divulgá-las, fazendo montagens animadas dos portfólios. Passei a fazer fotografias experimentais, videoarte, curtas-metragens, pôsteres, passei a registrar as composições em vídeos e também a fazer pinturas digitais pelo celular. Então, posso dizer que a tecnologia ampliou as ferramentas de criação e divulgação da minha arte. Mas isso não muda quase nada: minha alma continua analógica.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Do meu subconsciente, das minhas vivências, dos meus traumas e medos, das minhas sensações existenciais, da minha visão de mundo. As ideias também podem ser engatilhadas por meio do contato com o cinema, música, literatura e pintura. Obras alheias impactam-me todos os dias. Por meio das obras alheias eu entendo melhor o que eu gosto e o que eu não gosto, o que já foi feito e o que ainda não foi feito, o que eu posso fazer de forma melhor ou diferente, o que eu teria interesse em fazer e o que não. Quanto aos hábitos, devo dizer que o consumo diário de três a quatro cigarros de maconha é essencial ao meu fazer artístico. Meu uso da maconha está intimamente ligado a tudo que crio. Quando fumo essa erva, minhas sinapses têm suas rotas entremeadas e aceleradas, ao mesmo tempo em que anulo consideravelmente os ruídos do mundo exterior, jogando meu espírito para dentro de mim mesmo e propiciando a manutenção do foco e a preservação do fluxo contínuo desse processo. Por isso, considero a maconha uma planta sagrada e sei que ela existe para nos ajudar a subverter o martírio da realidade até que esse se torne o palco da criação de outro mundo. Já usei o álcool e outras substâncias como estímulos de escrita e criação, mas há um bom tempo que uso apenas a maconha para tal fim. Recentemente, arqueólogos encontraram inúmeros vestígios de maconha e cachimbos dela impregnados ao escavarem o quintal da casa de Shakespeare. Preciso dizer mais alguma coisa? Maconha nunca fez mal a ninguém; muito menos aos artistas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seu livro?
Acho que não mudou nada. Claro, quanto mais tempo você passa fazendo uma coisa, melhor você vai ficar nela. Vai ficando cada vez mais fácil e natural. Por exemplo, já fiz cerca de duzentas músicas ou letras. Tenho uma facilidade enorme para escrever letras de música. Literalmente, eu tiro de letra. Mas, essencialmente, meu processo de escrita é exatamente o mesmo de quando comecei a escrever, há vinte anos. Não diria nada a mim mesmo se pudesse voltar no tempo. O silêncio é o melhor conselheiro. E o tempo não volta.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Essa pergunta é a mais difícil para mim. Estou com três roteiros de longas ficcionais prontos para serem filmados, mas inda sem verbas para fazê-los. Tenho outros dois roteiros de curtas que poderei fazer a custo muito baixo; devo realizá-los nos próximos dois anos. Tenho um livro de poemas inda inédito, Aos Tímpanos da Zacroquéia. Tenho cerca de duzentas canções, compostas sozinho ou em parcerias, no máximo 10% desse material foi gravado até agora por parceiros de música. Então, tenho um projeto do meu primeiro disco solo para gravar. Tenho dezenas de pinturas e desenhos, já participei de exposições coletivas, mas ainda preciso saltar em voo solo nas artes plásticas. Dos três roteiros de longas ficcionais, dois deles eu vou transpor para novelas ou romances. E tenho mais uma estória completa para fazer outro romance, estórias curtas para compor um livro de contos, novos poemas para um novo livro de poesia, ensaios de cinema aguardando um livro de ensaios, e por aí vai. Terminei dois filmes recentemente. Meu primeiro filme, o longa documental A Praça Pede Passagem (Awakening City), sobre o papel dos espaços públicos nas grandes cidades, foi exibido em mais de cinquenta festivais internacionais de cinema mundo afora. Em breve, deve estrear nos festivais o meu segundo filme, Impermanence, curta experimental filmado apenas com celular na Índia, Coréia do Sul e Brasil. Mistura fotografia, videoarte, performance, artes plásticas, documentário e ficção. Eu tento não me desesperar diante de tanta coisa por fazer e vou fazendo aos poucos, sem pressa e sempre alternando as quatro artes entre si, de modo a não me cansar de nenhuma delas. As obras de arte que inda não existem e eu gostaria que existissem nesse mundo são aquelas que eu faço e continuarei fazendo, até o dia de minha morte. Assim, contribuirei sempre com algo novo, não quero nunca chover no molhado. Minha vida não tem rotina, muito menos tédio. Eu respiro arte e não possuo outra religião que não essa.