Fernando Molica é escritor e jornalista.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Assim que acordo trato de ler jornal. Tenho uma necessidade quase física de fazer isso, não apenas por conta da minha atividade como jornalista, é um hábito que trago da infância. Digo, brincando, que preciso ler jornais para checar se o mundo não acabou enquanto eu dormia. Minha rotina acaba sendo muito pautada pelo meu trabalho principal.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Só consigo escrever ficção pela manhã, depois de ler os jornais, mas antes de me envolver no processo de apuração jornalística. Não dá para criar e desenvolver histórias depois de encarar fatos tão graves como os que se sucedem no nosso país. A semelhança, digamos, formal no processo de trabalho do escritor e do jornalista (ambos contam e escrevem histórias) acaba sendo um desafio adicional. Acho que teria menos problemas se meu trabalho não tivesse uma relação tão direta com a narrativa, com as palavras. Quando comecei a escrever ficção, achava que o fato de ser jornalista ajudaria muito. Ajudou, mas, depois, comecei a achar que atrapalhava um pouco. A lógica do trabalho é completamente diferente, a pegada do texto é outra, a abordagem dos assuntos se dá em outro campo. São situações quase opostas, pela natureza de cada atividade.
Não tenho exatamente um ritual, mas só consigo escrever ficção se não tiver ninguém por perto, procuro fechar a porta do meu escritório, não quero que ninguém olhe por cima dos meus ombros, preciso de um certo desligamento (na medida em que internet e celular nos permitem fazer isso). Também não ouço música enquanto estou escrevendo. Creio que qualquer música determinaria um outro ritmo para o texto. E evito ler ficção quando estou envolvido com um romance, até para evitar plágios. É engraçado ter esses cuidados, afinal, estou acostumado a escrever matérias em locais barulhentos, no meio da rua, dentro de aviões.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Estabeleço uma rotina quando decido me envolver num projeto, um romance ou uma série de contos. Procuro, nesses casos, ser relativamente rígido, mas nem sempre consigo. Costumo escrever com alguma rapidez, o que ajuda a criar, pelo menos, um esqueleto básico de cada texto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depende do livro. O romance ‘O inventário de Julio Reis’ (Record, 2012) foi lastreado numa pesquisa histórica bem razoável. O protagonista existiu, foi um compositor que morreu em 1933, senti a necessidade de pesquisar sobre sua vida, sobre o Rio de Janeiro do fim do século 19 e das primeiras décadas do século 20. Por conta disso, precisei copiar e selecionar muitos documentos, ler muitos jornais, fazer diversas anotações. Meu único livro jornalístico, ‘O homem que morreu três vezes’ (Record, 2003), é fruto de uma pesquisa bastante trabalhosa, que envolveu viagens, ida a arquivos e mais de uma centena de entrevistas. Mas esses dois casos são exceções. De um modo geral, traço umas linhas gerais de cada romance e trato de fazer o desenvolvimento ao longo da escrita. Gosto de pensar com os dedos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não costumo brigar com livros que não avançam, que não apontam para um caminho, para um desenvolvimento. Respeito quando eles empacam, não querem seguir em frente, fazer o quê? É claro que nunca sei se vou conseguir terminar um livro, o processo é cheio de dúvidas, de descaminhos. Mas procuro fazer o óbvio, ir de página em página, de tela em tela. O processo de escrita é também um processo de descobrimento, de construção, de idas e vindas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso uma boa quantidade de vezes, tendo a repetir palavras (escrevo com alguma rapidez), tento ser muito rigoroso nas releituras. E, sim, gosto de mostrar os originais para amigos escritores, tenho até um convênio com alguns poucos – eles leem meus livros, eu leio os deles. Mas não são muitos assim, fico um pouco constrangido de dar trabalho para os colegas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Os rascunhos são feitos à mão, em bloquinhos, de preferência, um pra cada livro. Mas não são muito extensos, procuro registrar nomes de personagens, algumas situações, uma mínima estrutura narrativa. Não gosto de fazer essas anotações em computador, na tela não dá pra ficar rabiscando, puxando setas, mas às vezes é inevitável, até para facilitar o processo de localização de palavras e temas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não há uma regra, cada livro tem uma pegada diferente, nasce de um jeito. A velha história do isso dá samba. Mas o samba vai sendo mudado. Quando me sentei pra escrever ‘Uma selfie com Lenin’ (Record, 2016), pensei em fazer um livro de crônicas de viagem, um roteiro não convencional de cidades que havia visitado meses antes. Tentei ir para um lado, mas o texto me puxou para o outro, para um romance em forma de carta. Quando vi, a história tinha se imposto. Não tenho uma regra para me manter criativo, o que procuro é não deixar me levar pelo pragmatismo do jornalismo, é preciso deixar o olhar atento para a dor que não sai no jornal, para as pequenas grandes dores, para o que quase nunca é visto ou percebido.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho – acho – que meus livros foram ficando mais focados em alguns temas e personagens. Meu primeiro romance, o ‘Notícias do Mirandão’ (Record, 2002), trata de um tema mais amplo, com a visão de diversos personagens. Talvez seja um livro mais generalista, amplo, muito voltado para o desenvolvimento do enredo, havia uma história muito clara a ser contada. Com o tempo, fui diminuindo a amplitude das histórias para me concentrar mais nos personagens, em como eles reagem a determinados estímulos e situações. Isso foi algo natural, não definido previamente (mas, enfim, sou a pior pessoa para opinar sobre meus livros). Sobre a segunda pergunta: não fico relendo os livros publicados, mas assim, de longe, acho que não mudaria nada de substancial. Faria mudanças nos textos, alguns cortes, mas manteria a estrutura.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não tenho nenhum projeto engavetado, terminei um romance, estou organizando um livro de contos, que misturaria inéditos e outros publicados em coletâneas. Algumas ideias de romances acabaram sendo transformadas em contos, acho que foram boas opções. O livro que gostaria de ler? Não sei, gosto de ser surpreendido.