Fernando Impagliazzo é professor, poeta e doutorando em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autor de Prova das Nove (2014) e de Promíscuo (no prelo).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina matinal das mais interessantes não. Geralmente, quando me dou conta, já estou dentro de sala de aula com uma penca de alunos e suas demandas. Não tenho muito uma rotina de começar o dia por um café e alguma reflexão filosófica ou profunda sobre a existência humana. Talvez isto tenha me salvado de ser um chato em questão de literatura. Sair pra rua, ver gente, estar em contato com meus alunos, me salvou de ficar encastelado dentro da academia e suas discussões, então minha manhã tem sido esse começo, quase sempre imperceptível a minha sensibilidade. É estranho o quanto as pessoas não percebem que há poesia e muita salvação nessa repetição. Meus alunos são uma urgência na minha vida. Sempre fui um sujeito extremamente ansioso, que se exauria de pensar, sobretudo ao fim do dia e no começo da manhã. Era e sou capaz de ficar na cama pensando: “o que será que o dia me reserva?” e morrer de medo de algum efetivamente de muito ruim acontecer. Então, essa rotina matinal acaba sendo como uma meditação, olhar as coisas nelas mesmas, encher o quadro (que também é uma forma de escrita) e debater orações subordinadas e aquele bando de nome que a gramática supõe com meus alunos é uma forma de acalmar meus pensamentos já de manhã, amansá-los para expressá-los no branco do papel. Isso acaba dando qualidade ao meu texto. Depois das aulas, sempre chego a casa com algum versinho solto na cabeça. Pensar o mundo, experimentá-lo a partir da materialidade das coisas, de um planejamento de aula tem me ajudado, bastante. Às vezes, o poeta fica muito inerte nas suas questões e não consegue vencer o branco do papel. É como aquele verso do Cabral: “Eu me refugio/nesta praia pura/onde nada existe/em que a noite pouse.”. O quadro da sala de aula tem sido um pouco disso, mais do que um cafezinho intelectualizado pela manhã.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Simplesmente não há horário em que eu trabalhe melhor e não há rituais. Meu ritual é o encontro com o mundo. Quase sempre permeado por surpresa ou medo. Sou o meu próprio escravo mental nesse sentido. Adoro colher frases, olhar pessoas no olho, esticar uma viagem de ônibus pra olhar o mundo lá fora. Como disse acima, sou extremamente ansioso, e essa ansiedade acaba me gerando um pensamento tão obsessivo que não preciso anotar em cadernos físicos: vivo pros meus caderninhos mentais. Às vezes, alguns pensamentos soam extremamente paranoicos ou non-sense. Outras, são meras composições, ready-mades do que ouvi na rua.
Para citar um exemplo, certa vez, no metrô aqui do Rio, ouvi aquela indicação: “Próxima estação estácio”. Logo em seguida, a frase em inglês: “Next stop Estácio”. O poder daquela fricativa foi tomando conta de mim de uma forma que eu já tinha um poema quilométrico inteiro escrito quando cheguei na estação do Catete. Noutra, estava no banheiro do TV Bar, uma boate aqui do Rio, com meu namorado e fui tomado por outro poema. Parei no meio da boate pra anotar, antes que o álcool me acalmasse a ponto de esquecê-los. Este é um ponto: estar atento e forte aos versos. Isso às vezes me gera problemas de concentração.
Óbvio que não costumo utilizar a máxima de Mário de Andrade que diz ter escrito Macunaíma nuns poucos dias, deitado numa rede. Não tenho pretensão de achar que obra alguma se escreva assim. Não, eu acabo anotando tudo na cabeça, e aos poucos, vou finalizando. Sou extremamente musical. Repito versos meus que estão sendo escritos no ônibus. E se eu perdê-lo, perco os versos também. É bom “matutar”, conviver com os pensamentos a esse nível. É como levar um abraço deles quando eles, finalmente, saem pra passear e tomam autonomia. É um alívio.
Há um tanto de suor depois que eles saem. Pego os poemas pela mão até ficarem grandinhos. Coisa de, não muito mais dias que a execução mental. Acho que nunca escrevi um poema que me saísse nessa repetição obsessiva por meses. Escrever tem sido, quase sempre, um artesanato de alguns poucos dias. Um encontro de Carnaval. Escrevo sempre no ritmo do meu corpo, que é quase uma escola de samba.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo um pouco todos os dias, mesmo que por esquecimento de outros poemas. Mesmo quando não tenho assunto. Alguns poemas me saem estranhíssimos porque são só exercícios de fofoca comigo mesmo. Por ser professor e acabar tendo que planejar as aulas, eu me planejo pra, pelo menos, escrever um pouco por dia. Isso não quer ser dizer necessariamente papel e caneta ou tela de celular. Anoto mentalmente, no fim do dia, ainda estou com aquele verso na cabeça, reescrito. E assim vou. Me utilizo também do esquecimento. Alguns versos meus se perdem no ar e eu lembro, se não mais nada deles, uma parte ínfima. É aí que entra a caneta e o papel. Às vezes, estou em outro momento de escrita. Às vezes, estou sentado num bar e, na tentativa de culpá-los ao momento original, percebo que imprimi algo daquele esforço singular de “fabricar o elefante”, “compor o monstro”. Esquecer alguns poemas é maravilhoso e tem dado bons frutos. Espero que eu nunca, algum dia, tenha Alzheimer de verdade.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Geralmente, costumo compilar conversando comigo mesmo. A pesquisa é árdua, me imprime sintomas no corpo. Quando não me sai um poema de forma nenhuma, sinto tudo no corpo: coração batendo forte, angústia. Mas isso acaba não sendo diferente do que alguém sentiria normalmente, né? Então é essa eterna montanha russa: em um momento, estou bem; no outro frustradíssimo porque descobri algo e não consigo por no papel. E, como meu processo todo é pela repetição mental, eu me atrapalho todo. Compilar tendo brigado com um familiar ou com problemas na cabeça é difícil, por exemplo. Algumas pessoas conseguem desanuviar. Acho sensacional. Talvez por isso, eu seja poeta: essa obsessão.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho medo de travas. Elas são minhas amigas. Travar faz parte do percurso. Um carro só engarrafa porque tem outros na sua frente, assim como um verso, um livro só me engasga porque pede pra que seja repensado, restabelecido mais tarde. Quanto aos prazos, só tive prazos com as editoras e não, não gosto deles associado a obras tão pessoais como livros de poesia. Ainda que eu precise deles, nesse mundo de demandas, até pra conseguir escrever. Quando um poema meu trava, eu tomo um ar. Dou uma volta. Esqueço por um tempo. Mas quando temos uma instituição ou uma editora por trás daquele projeto, sei que tendo a ser bem procrastinador na ação. Por dentro, estou a mil. Por fora, não ajo. Ônus de ansiedade. Confesso que sou uma criança birrenta em matéria de prazos. Me travo todo. Tenho medo da exposição. Um amigo meu até hoje me cobra meu próximo livro, tendo lido alguns trechos aqui e ali. Eu tendo a responder categoricamente: “já tenho prazos demais pra viver.”. É isso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quase nunca reviso textos que sei que saíram por influência exterior. Quando percebo que algo me tomou de tal forma que aquele verso não sairia de outra maneira. Na contração, há poemas que me saem já convidados à reescrita, versos que já não me ficaram muito bons na cabeça, feitos nos lapsos de esquecimentos. Aí é necessário atenção redobrada e algum esforço de revisão. Costumo mostrar meus poemas para alguns pares de poesia. Não muitos. E mesmo quando posto meus poemas em redes sociais, acho difícil que alguém leia meus poemas que a necessária atenção: tudo é tão descartável hoje em dia.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Pra mim, a melhor tecnologia acaba sendo mental mesmo. Minha “memória” RAM é bem falha. Para alguns historiadores e escritores de prosa, sobretudo, isso seria um problema. Mas pra mim é quase um benção não estar diante do computador. Tudo, na internet, é feito para ver e ser visto. Isto é um benefício por um lado: tenho um blog no qual publico quase tudo o que eu escrevo. Por outro lado, tudo fica tão disperso que quase ninguém hoje se lê. Quem vai ler um poema entre uma notícia de assassinato e um meme? É injusto. O ideal seria trazermos, cada vez mais, esse material para a poesia. Uma poesia que exploda na sua timeline.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias podem vir de qualquer lugar: um filme que vi, um livro que li, uma aula que dei. Varia muito. É curioso como as minhas melhores idéias vem da rua, do hustle and bustle of the big cities. Algo um pouco Frank O’Hara de: preciso escrever um poema pra não endurecer. E é isto que eu faço, mesmo que minha mente tenha fixado a alguma paranóia. Vou lá e medito sobre o objeto. Há um poema da Ana Cristina César, conhecido por nove entre dez poetas de calçada que fala muito sobre isso: “Olho muito tempo o corpo de um poema. Até perder de vista o que não é corpo.” Meu método tem sido sempre olhar estes corpos à vertigem. Isto pra mim é o melhor método de estar em diálogo com o mundo: admirá-lo por todos os lados. Minhas palavras sopram ocas, às vezes, caóticas. São inúteis. Isso dito por um poeta pode soar irônico. Não. Antes de escrever, sempre pondero o olhar, ajeito a matiz. Por isso, em alguns momentos, eu possa parecer, pessoalmente, muito travado, observador ou introspectivo. Desconfie: geralmente estou trabalhando meus pensamentos obsessivos, conversando com eles. Costumo pensar na audição como uma antena que captura tudo e o olhar como o afinador desse som. Queria ser como um relâmpago que afina a imagem a partir do som. Nesse sentido, a imagem parece uma conseqüência. Pra mim não é, nunca foi. Se ouço alguém falar na rua, por exemplo, vou desconfiar sempre dos meus ouvidos, antes que meus olhos alcancem aquela pessoa. Não há relação de causa e consequência na minha poesia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Que pergunta difícil! Eu diria a mim mesmo que a poesia não tem esse lugar de torre de marfim. Ou melhor, a poesia é um lugar para se habitar internamente, mesmo que ela venha a ser algo externamente. A poesia sempre foi minha sintonia fina e eu faço questão de abraçá-la não com pieguismo ou revanchismo, mas com prazer. Tudo o que se faz de um certo limite pra frente é extra. Visibilidade, fama, prestígio, o que quer que seja é matéria extra. Já vi colegas arrancarem os cabelos com a tal da crítica e com o tal do mercado. Conheço pessoas que praticamente se vendem por aí. Eu fico na minha. Sei das prováveis injustiças que acontecem, do quanto a crítica pretere certos autores a outros, mas não há solução. Aos olhos de alguém, tudo sempre vai ser um exercício de crítica maniqueísta e todos estão, invariavelmente se oprimindo. Nessa base, sou bem drummondiano, os muros estão surdos, surdíssimos. O que nos resta é fechar nossos olhos e ouvir a nossa inaudita voz, calar as aflições do mercado, sua mão invisível não vai nos salvar, nem atenuar. Mesmo que oprimindo a poesia desde sempre, há algo de bom que o capitalismo nos trouxe: a possibilidade de salvar livros antigos, de catalogá-los, de nos visibilizarmos. E essa mão, eu vou sempre defender. Não precisamos esperar ansioso que um projeto dê ou não dê certo. Enfim, são apenas duas opções. E somos todos tão insignificantes: de Rimbaud a Augusto de Campos. Todos. Chorei frustrado após o lançamento do meu último livro, Prova das nove. Conheço bem a metáfora da fogueira poética, na qual, tantos autores incineraram sua obra. O que não falta é a idéia de que a biblioteca seja algo inútil, algo dispensável por motivos de muxoxo intelectual. É isso que o capitalismo quer: nos descartar. Acho besta. Acho cafona. Afetação de poeta que só posa pra câmera. A gente deveria se ver ao espelho, se acalmar, reconhecer nossa insignificância e se orgulhar do nosso percurso. Digo isto porque, ainda hoje é um caminho difícil pra mim.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de organizar um livro de narrativas sobre o HIV. Sou soropositivo desde 2009. Já tentei montar entre amigos, algumas estórias me surpreenderam muito. Há o lugar comum de que só o soropositivo sofra diante da sua própria doença: erro primário. Recebi mais relatos angustiantes de pessoas soronegativas e casais sorodiscordantes do que aquela velha narrativa do soropositivo. O HIV acaba traçando o retrato de muitos microopressões que sofremos e isso é muito importante reconstituí-las. Ter HIV acabou me lançando a olhar mais o discurso daquele que me oprime e observar, não com ojeriza, mas com sincera preocupação o quanto esse discurso é fruto também dessa massa de indivíduos oprimidos. Não falo isso no sentido de abraçar o opressor, mas pararmos de tanto reducionismo nas nossas militâncias. Nossos corpos não conseguem respirar porque são feitos dessa argamassa de imposições. Além disso, estou escrevendo um livro de poesias, o Promíscuo, a ser lançado em 2019/2020, que toca nesse silenciamento diário de uma sombra das minorias.
Ainda sobre meu recente livro, ele versa sobre alguns temas afins mistura promíscua: uma delas é o mapa astral que é, senão, a mistura de aspectos, planetas, casas e signos. Ler um mapa acaba sendo se misturar a alguém, interpretar a vida dessa pessoa não só a luz do determinismo, mas de potencialidades. Nas minhas pesquisas para o Promíscuo, topei com muita coisa de misticismo (Hermes Trimegisto, Swedenborg, Dion Fortune etc) nunca encontrei um livro de poesia que falasse dos doze arquétipos de uma forma consciente e não determinista. Uma poesia que nos desse prazer através das suas imagens, mas que também educasse para a vida. E estou certo de que, nesse caminho, estamos sempre em completa reconsideração dos fatos da vida. Todos nós somos luz e sombra de uma mesma energia. Talvez um dia, eu escreva um livro assim, um livro-jornada. Talvez um dia, eu escreva um livro de poesia assim. Talvez a miscelânea entre corpo e alma que Promíscuo propõe seja uma semente dele. Ainda é bem ousado pra mim.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
É raro que eu planeje qualquer coisa em matéria de poesia. Todos os meus projetos saem completamente da minha experiência biográfica. Lembro que, no lançamento do meu livro de estréia, Prova das nove, fiquei um tanto decepcionado com meus versos, logo após o lançamento. Muito pela experiência de não ter me visto naqueles versos e poesia, pra mim é à rigor como um espelho auditivo. Por isso, há algumas ressalvas quanto a esse “deixar fluir”. A partir do meu primeiro trabalho, peguei e me disse: “tudo bem, eu era um poeta menos empenhado com meu trabalho”. Hoje, não sei se por força de ser mais maduro, não no sentido poético apenas, mas no sentido biográfico, os versos foram ficando melhores. Digo, naturalmente melhores. Se há um planejamento, ele me parece um pouco desordenado, fluido. Cada dia, tenho me olhado melhor nesse espelho. Quem é que não se ajeita ao espelho antes de sair de casa ou ao passar por um carro com vidro fumê? Arte também pressupõe um pouco de vaidade, obviamente. “Todo o compositor (brasileiro) é um complexado”, já diria Tom Zé. Com o poeta não é diferente. Fala sério, parece sério, mas no fundo, é tudo complexo. Há de nos planejarmos nos nossos complexos, deixarmos fluir, não nos levarmos tanto a sério, tudo tem a sua medida certa. Malandragem, dá um tempo.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Geralmente os projetos surgem associados. Neste mês de novembro e dezembro (2019), tudo aconteceu de forma bem intensa na minha vida. São meses que geralmente a produção fica mais intensa. Tantas vezes me perguntei o porquê de não me afastar do objeto da minha investigação artística e escrevem sempre ao calor do momento. Hoje estou mais tranquilo em relação a isso. Estou (re)montando o meu próximo livro de poesia, Promíscuo; comecei a esboçar uma estória que deve sair em HQ, em par com um amigo ilustrador; estou iniciando um projeto em homenagem a minha avó que faleceu no início do ano. Meu processo é feito de uma urgência que, sem clichês aqui, é quase um comprimido que eu tomo diariamente. Acho que invariavelmente, eu morro se ficar sem escrever ou, pelo menos, bisbilhotar vidas que não são minhas. Escrever e bisbilhotar a vida para todos os lados é me sintonizar no mundo.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Minha experiência de escritor começou muito cedo e gosto de contar uma estória que minha mãe fala sobre mim. Ela gosta de expressar a minha experiência de ansioso recontando estórias de quando íamos em algum lugar, ou num parquinho aqui perto de casa. Eu sempre ficava eufórico, ansioso. Ia fazendo perguntas a ela, tais como: “Mas quantas gangorras tem lá?”. E, se eu chegasse ao parquinho, e não tivessem lá as duas gangorras que ela contou, eu fechava a cara. Por mim lado, eu era uma criança bem ranzinza. Por outro, acho que consegui remontar essa criança, num adulto que escreve e que monta o parquinho do jeito que quiser, com o tanto de gangorras que eu quero que exista. Nesse sentido, escrever é como mimetizar Deus e eu não lembro o primeiro momento em que eu comecei a escrever ou a criar cenas. Tudo foi acontecendo aos poucos e evoluindo, de modo que ainda hoje, me vem vozes completas de personagens. Às vezes, respondo amigos no whatsapp ou por áudio dessa forma: “ôh, Judite, estou no bagageiro da Kombi. Quando chegar, coloque o peito na geladeira.”. E rimos bastante. Quando isso vai pro papel, potencializa, porque eu sou de obrigado a conviver e harmonizar, ou, como na pergunta acima, planejar essas vozes. Criar essas vozes e educá-las a conviver é uma maneira de acalmar minha ansiedade e controlar o sempre descontrolável aqui.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Meu estilo acaba sendo não um estilo, mas um planejamento, uma gestão de vozes. Explico: sempre que me vem uma voz, eu a observo e penso: algum autor ou pessoa que eu conheça já construiu essa voz dessa forma? Como atualizá-la? Como conviver com ela? Roubo muito em viagens de metrô e de ônibus. Pontuo a importância do encontro com Manuel Bandeira, Murilo Mendes, além de Frank O’ Hara, Ismar Tirelli Neto, Angélica Freitas, Mas também isso ressoa a partir modo como a minha avó falava, de um comentário do meu avô sobre o Domingão do Faustão. Não há critérios. No bê-a-bá, a gente é alfabetizado, colonizado ouvindo vozes. Por que deveríamos silenciá-las em prol de uma única? Nosso próprio sistema educacional é pautado nesse silenciamento. Seria pretensão demais, “complexo de compositor” demais, pedir que tivéssemos uma só voz, um só estilo. Arrogância de autor. Vivemos em outros tempos e somos hoje bombardeados de vozes como nunca fomos. A minha voz é sempre a conjunção dessas várias e, não acho que, ao final da vida, eu vá chegar a ter uma só voz. Meu maior sonho é perceber que eu convivi o melhor que pude com cada uma delas, ouvi e dei margem a elas, sem silenciá-las. Isto que, para mim, faz um poeta. Ir ao contrário do que hoje é exatamente o discurso padrão que mais tem se visto, ainda mais na conjuntura política do país: silenciar o outro.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Dos mais fundamentais que tenho lido, destaco o Texto Junkie do Paul. B. Preciado; o “Lunch Poems” do Frank O’Hara que pra mim tem muito a ver com meu exercício de ouvir; e uma HQ, que é extremamente sensível à questão LGBTQIA+: “O Marido do meu Irmão”, do Gengoroh Tagame.