Fernando Horta é doutorado em Relações Internacionais na Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho rotina sim, mas quanto ao que devo fazer e não a horário. Normalmente começo me informando sobre o mundo e as coisas através de uma ou duas horas de leitura vindas de diversas fontes, desde jornais nacionais e estrangeiros, até manifestações de pessoas que eu sigo ou que eu acho interessantes. Só depois me apresento ao mundo, vamos dizer assim.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sou noturno. Preciso de silêncio, preciso saber que as coisas e rotinas normais estão resolvidas e que eu posso centrar minhas energias em algo construtivo e não apenas em ficar repetindo atividades comuns como ir ao supermercado, atender gente na porta, no telefone e etc. Eu não tenho nenhum ritual específico, apesar de que quando eu preciso me FORÇAR a escrever eu começo por ler algo a respeito do que quero escrever e ir digitando o que aparecer na cabeça. Normalmente, entretanto, este esforço gera textos médios e que, se bem trabalhados, podem ter alguma serventia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo um pouco todos os dias. Mas não me coloco meta. Quando a coisa engrena, posso passar seis horas sentado escrevendo. Uma técnica que uso é variar o assunto. Muitas vezes há que se escrever algo (tese, dissertação, capítulo e etc.) por questão profissional, mas no momento não sai. Então eu escrevo algo sobre futebol, uma crônica pessoal, memória, relato ou qualquer outra coisa para “destravar” o processo imaginativo. Normalmente funciona.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu tenho uma característica muito louca de nunca conseguir “desligar”. Então quando estou fazendo atividades rotineiras, como tomar banho, academia ou algo que me exija uma série de esforços coordenados e repetitivos, meu cérebro começa a resgatar argumentos, ideias e sentidos e combiná-los à esmo. Neste momento eu vou filtrando o que me parece importante, o que me parece que tenha “futuro” (que possa ser desenvolvido adiante) e etc. Estranhamente como se fossem duas pessoas trabalhando em conjunto. E confesso que muitas vezes eu preciso tomar nota porque a “pessoa” que cria, faz isto muito rápido. Com relação à pesquisa, eu sempre mantenho um indicativo claro do que estou fazendo. Algo como um memo para mim mesmo dizendo “agora é preciso explicar o conceito de estrutura em Marx”. Faço isto porque é muito fácil começar escrevendo sobre frutas, falar sobre o limão e terminar contando como foi interessante no réveillon do ano xxxx encher a cara com caipirinha. Assim, através de controles de sentido e de relevância é possível dar um foco ao processo criativo. Funciona em 60% dos casos. O que, para mim, é muito.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Travas de escrita eu comentei acima. Me forço a escrever sobre outros temas ou vou realizar atividades repetitivas e que não me exigem esforço mental. Sobre a procrastinação eu sempre deixo para tratar dela depois. Brincadeiras à parte, a procrastinação tem que se tornar o “ócio criativo”… eu combato ela dando vazão – à qualquer hora – aos impulsos criativos. Isto significa dizer acordar quatro da manhã com uma ideia e sentar no computador escrevendo até as dez da manhã… o processo de escrever raramente consegue ser escravizado pelos comportamentos de sociedade que temos. É parte desta rebeldia de sentido que encontramos a criatividade no meu entendimento.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende do tipo de texto. Eu confesso que fico nos extremos aqui. Quando são textos de pouca expressão (postagens, e-mails, histórias, etc.) eu escrevo e publico muitas vezes sem ler duas vezes. Depois o pessoal vai me avisando dos erros gramaticais que existem. É interessante porque traz uma questão essencial que aproxima o leitor que é a ruptura com a perfeição da linguagem. Há uma ideia de que escrever requer o domínio formal da língua. E isto não é verdade. Assim, quando eu escrevo e surgem inúmeros erros, isto ajuda a trabalhar a questão da autoria, da autenticidade e romper com estereótipos meio machadianos de que quem escreve o faz a partir de um domínio completo formal da linguagem. Além disto, auxilia muito na questão da relação com o leitor. Muitos acham erros e avisam, criticam, questionam e isto inverte a condição de receptor que o leitor normalmente se coloca. É impossível alguém ver escrito que “algo tinha haver” e não “a ver” e passar batido sem avisar ao escritor. Tenho também amigos bem cri-cris que criticam vírgulas, crases e expressões. Eu, quando escrevo neste modo mais descompromissado, não me preocupo com estas coisas. A ideia é que o todo seja inteligível, e faça sentido. Apenas isto.
Já no outro oposto, quando é um texto que exija responsabilidade (parte de um livro, tese ou parecer) aí eu escrevo e fico olhando para ele. Horas a fio. E me convencendo o quão ruim está. Depois eu troco tudo, inverto, faço de novo e continuo achando ruim. A grande sacada que aprendi comigo mesmo é não jogar fora o que eu acho ruim. Porque quando o prazo vai apertando a minha autocrítica começa a ceder espaço para uma visão mediana utilitária. “Está ruim, mas dá para melhorar neste e neste sentido”… até chegar a algo como “Está uma bosta, mas é a sua bosta!” Aí o sentido de protagonismo criativo acaba silenciando a autocrítica perversa. E você tem que entregar o texto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu nem sei mais escrever à mão. É sério. Outro dia participei de uma seleção em que precisei escrever oito laudas à mão. Foi um martírio. Um desespero. Eu ia me lembrando de como escrever… e olhava o texto e dizia “mas eu nunca escrevi o ‘h’ desta forma”… e os garranchos iam se acumulando, junto com a dor no dedo e da posição que eu estava. Foi terrível. Até isto me leva a pensar em me forçar a escrever mais à mão. Para não passar por aquela sensação ruim de novo. Escrevo direto no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm de um trabalho incessante feito como “processo secundário” do meu cérebro juntando tudo o que vejo, sinto e leio (inputs) com tudo o que sei, acredito, gosto ou não gosto. Numa doideira completamente inexplicável. Estou andando na rua e vejo um acidente de carro ao lado do vendedor de bananas e meu cérebro começa a fazer associações entre as coisas. Jocosas, engraçadas, horríveis, sem nexo ou de qualquer tipo. Isto sem parar, e eu vou selecionando o que é socialmente aceito, o que pode ser cientificamente desenvolvido, o que pode ser literariamente usado, vou refinando, criticando, fazendo o mesmo processo de novo… enfim. É um constante método ensaio e erro que eu levei muito tempo para conseguir fazer funcionar porque ele depende intrinsicamente da capacidade de julgamento racional. Então quando eu era mais novo e com menos conhecimento sobre o mundo, as coisas, pessoas e sobre mim mesmo, saía cada bobagem de apavorar. Faltava o parâmetro pelo qual você classifica uma ideia como factível, socialmente possível, moralmente apta, inútil, criminosa e etc. Quando eu consegui desenvolver este parâmetro a coisa começou a fluir. Se bem que ainda hoje saem absurdos e bobagens de todo o tipo.
O bom é trabalhar com “alter egos”. Fernando Pessoa mostrou isto. Há determinadas ideias e textos bons, muito bons que você pensou e você criou, mas que não podem ser socialmente liberados. Há espaços sociais de aceitação de ideias, de sentidos, de julgamentos e, a partir de determinada posição, a sociedade espera de você determinadas coisas e não outras. Isto impõem uma restrição externa que cerceia, no fundo, a imaginação. O historiador Eric Hobsbawm passou por isto. Marxista, inglês, professor universitário e tudo mais, escreveu um livro chamado “A história social do jazz”. Escreveu com pseudônimo, afinal isto não é tema para marxista. Não é tema para “gente séria”. Só anos depois ele foi aceitar a paternidade do livro. Assim, sempre que uma ideia boa aparece há que se pensar na boca de quem esta ideia seria melhor representada e, de repente, criar um alter ego para ideias recorrentes.
Sobre se manter criativo eu acho que depende muito do que você come. Obviamente não comer no sentido físico, mas as coisas que você se oferece diariamente. Seguir pessoas inteligentes, pessoas críticas, pessoas que te surpreendam, que pensem diferente de você, que sejam de outro grupo social, étnico, local e etc. E ler. Eu sou branco, de classe média, heterossexual, acadêmico, nascido nos estados do sul e tudo mais neste padrãozinho “guri de apartamento” que tu possa imaginar. Então eu tenho certos ganchos com outras realidades, me forço a ir, sentir, ver, ler, compreender aquilo que eu não sou, ou que não me atrai. É preciso manter a mente aberta. Outro dia, numa discussão em redes sociais, uma pessoa com o perfil completamente oposto a mim, que eu sigo, entrou numa discussão e eu a mencionei. Quando o fiz, ela imediatamente veio me perguntar se eu a havia citado porque ela era negra, mulher, e desfilou ali todo o rosário de diferenças entre eu e ela. Mas ela me acusava de ver estas características como algo negativo, e por isto – supostamente – eu a havia citado na discussão. Segundo ela, eu o tinha feito porque ela não teria como responder meus “argumentos acadêmicos”. Ela estava vendo a citação como uma covardia. Eu respondi que a havia citado porque queria ouvir a opinião dela. Que era para mim extremamente importante na discussão. Depois ela veio me pedir desculpas, mas não imaginava que eu a seguia por realmente querer saber o que ela pensava. Isto é parte da imagem que fazemos de nós mesmos e do sentido que damos à nossa existência. Somos ensinados a pensar que pertencemos a determinados círculos, nichos e setores, e que somos estranhos a outros. Quando alguém deliberadamente quebra isto, parece algo de outro mundo. Mas é essencialmente a diversidade e a constância que fazem parte do processo de criação. E quando você se propõe a um papel social de crítico dos tempos, dos discursos e das sociedades, é importante que você esteja aberto a todas as informações que puder receber destes tempos, discursos e sociedades. Ninguém que é preso em si mesmo consegue oferecer algo construtivo para muitas pessoas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Como eu disse, eu aprendi a me criticar. Aprendi a pegar mais leve comigo mesmo, mas aprendi a compreender os padrões dos diversos grupos sociais com os quais você interage. Uma piada escatológica pode ser maravilhosa numa mesa de bar e terrível num encontro acadêmico. Só que aos 22, 25, 28 anos eu não tinha isto claro. (Sim, me perdoem, eu como muitos fui só amadurecer depois dos trinta e muitos). Algumas pessoas chamam de autocensura, mas prefiro o termo “encaminhamento imaginativo”… determinadas coisas, ideias, discursos, requerem determinados ambientes, pessoas, níveis de relacionamento. Tenho um amigo inteligentíssimo que é publicitário. Redator. Há alguns anos (décadas) eu comecei a fazer uma série de comentários e contar histórias sobre ele numa reunião onde supostamente nem todas as pessoas tinham os mesmos laços de compromisso, vivência, respeito e etc. E eu fiquei profundamente chateado quando ele me chamou num canto e me perguntou se eu não tinha “finesse e elegância”. Não tinha mesmo e ainda não tenho. Mas aqueles textos, narrativas e etc. eram verdadeiras e tinham sentido e eu já as havia contado na companhia deste amigo para outras pessoas. O que afinal o tinha incomodado tanto? Foi daí que percebi que precisava refinar meus parâmetros de crítica social e viabilidade de narrativas. Muito poucas ideias (narrativas) são certas ou erradas per se. Elas dependem, sempre, dos contextos sociais, psicológicos, históricos em que são inseridas. Mas um adolescente de quinze anos não tem conhecimento disto ainda. Com vinte, vinte e dois começamos a compreender vagamente os extremos destes processos. Então, por exemplo, cumprimentar alegremente uma pessoa e perguntar “e aí, tudo bem?”… parece sempre bom. Mas não quando se está num elevador de um hospital saindo de uma UTI. No final dos trinta, este sentido de oportunidade parece ir se afigurando melhor.
Se eu pudesse me dar um conselho lá no início, eu diria “ouve mais e fala menos”. É complicado, porque o processo imaginativo requer uma postura propositiva, ativa e de exposição. Mas é preciso desenvolver os parâmetros de referência. Podem me criticar por este “utilitarismo imaginativo”… mas penso que é o que nos permite compreender um caminho e realizar coisas. Criação sem sentido costuma levar a uma grande quantidade de esforço sem recompensa e gera frustração, violência e muitas vezes até o abandono da escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu penso em política. Eu estou terminando um doutorado na área de história e ciência política e acumulei um certo conhecimento sobre isto. Me permite ler, compreender, escrever. Mas tenho muito pouca ação real sobre as coisas. Muitas vezes é como se você estivesse preso no seu conhecimento, gritando sem que ninguém realmente ouça. É frustrante. Penso, e talvez esteja muito errado, mas hoje penso que na política há a possibilidade de realmente fazer as coisas se transformarem.
Com relação a um livro que ainda não existe, olha… Eu gostaria muito de ler algo como “Como lidar com a saudade, a culpa e a frustração comendo alface, brócolis e peito de frango grelhado”. Acho que a nossa sociedade como um todo vem caminhando muito no sentido de avanços tecnológicos e estamos parados em termos psicológicos e sociais. Se você comparar com o século XIX, por exemplo, ninguém imaginaria um celular. Uma casa sendo “impressa” em oito horas. Falar com alguém simultaneamente que está no Japão. Mas ao mesmo tempo, nossos pensamentos, nossa moral, nossos parâmetros sociais e de comportamento pouco se alteraram (em comparação com o mundo das coisas). Precisamos de mais música e menos física. Precisamos de mais escrita e interpretação e menos gramática. Precisamos de mais poesia… Nos falta utopia. Nos falta algo em que acreditar. Penso que estamos nos tornando cada vez menos humanos. E isto me assusta.