Fernando Graça é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Neste momento de minha vida, não tenho qualquer rotina que não seja a da prostração, a da moleza, tampouco matinal, já que tenho ido dormir tarde e acordado tarde. Acho um horror, romper a manhã, os movimentos cotidianos dos outros lá fora e você noutro ritmo e nível, mesmo que a madrugada tenha sido boa. Hábito péssimo, porque escrever grandes obras exige uma disciplina prussiana. Falo sobretudo da prosa, que exige insistência e costura. Não assim com a poesia, que se resolve com o fogo criativo da inspiração e, a partir dela, sobre ela, ou mesmo depois que ela já passou, se trabalha melhor.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gostaria de ter rituais… Trabalho melhor de manhã, no fervor da manhã, e pela madrugada, quando o silêncio é ideal. O lento entardecer é sempre mortífero, lasso. Sei que tenho o ritual clássico da leitura, aquele que o crítico George Steiner reivindica no seu ensaio “O Leitor Incomum”, o do quadro O Filósofo Lendo, de Chardin: com caneta à mão, porque se lê a sublinhar e anotando, em diálogo com o livro, numa postura absolutamente ativa, não passiva. Só não preciso necessariamente de uma roupa como aquela do quadro, com pompa e circunstância! A verdadeira leitura se faz com escrita. Quem lê bem escreve bem. Quem escreve bem lê bem. Impossível admitir o contrário. Já o ritual da escrita, para mim, tem de ter aquele charme que ninguém melhor do que Thomas Mann soube descrever do escritor de A Morte em Veneza: com a força reunida do sono, acordar bem cedo, estimulado por grandes planos, jato de água fria no peito e nas costas, depois entregar-se ao trabalho no manuscrito iluminado por velas acesas em altos castiçais de prata, sacrificar-se à arte em duas ou três horas de forte consciência. Depois, ir passear ou descansar. Acho isso tão bonito. O comprometimento com a escrita, a seriedade com a vocação, mas também física, corporal, como tem um atleta ou um artista cênico ou da dança. Mas não tenho rituais. Nem castiçais. Para eu chegar a tal mise-en-scène, é preciso um grande esforço da minha parte, o que acaba produzindo boas consequências. Tenho grandes manias, isso, sim, provavelmente neuróticas. Ter clinomania, passar muito tempo deitado, com quatro, cinco livros fundamentais abertos, no chão ou consigo na cama, escrevendo e estudando, com um sem número de ideias e fluxos para um leque de projetos, sobretudo relendo e reescrevendo, é um ritual? Não é incomum me encontrar assim.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Parece que a Hilda Hilst e tantos outros tinham meta, tal número de páginas por dia. “Escrever 10 páginas diárias do meu livro!” Sinceramente, não tenho, mas escrevo todos os dias. Escrevo todos os dias alguma coisa, seja o que for: crônicas ou comentários sociais e políticos. Mas, por incrível que pareça, e isso é muito positivo, são longos parágrafos ou textos grandes, que dão 10, 15 ou mais páginas. Ensaios… Que grande e necessário exercício! Esses materiais, tidos como menores, talvez por serem espontâneos, mas que são urgentes em termos imediatos, dependendo do momento pessoal e coletivo, preparam ou aperfeiçoam os maiores, aqueles mais conceituais e que ficarão para sempre. As redes sociais viciantes e os celulares constantemente na palma de nossas mãos ajudaram bastante nisso. Nunca se escreveu tanto, diariamente, quase a todo momento! O problema é que a maior parte das pessoas pensa que sabe escrever ou, por terem a possibilidade de escrever a todo momento, acha que escreve. E o pior: acha que sabe sobre tudo. Mas escrever é raro, assim como pensar. Nestes momentos, o papel do escritor continua valendo, contra os estúpidos e boçaloides, numa defesa da inteligência e da sabedoria que, pode apostar, me farão escrever todos os dias. Escrever é desterritorializar, dizia o Deleuze. Escrever é também resistir, lutar, atacar e defender. Por isso, é muito difícil estabelecer metas, e eu sou desregrado em relação a isso, sou movido a paixões ou indignações. No entanto, acredito que, se você se obriga a escrever as obras maiores, de filosofia e literatura, os projetos mais consistentes, a verdadeira “feijoada”, e fiz isso muitas vezes, uma hora você encontra caminhos e engata num bom rumo. Sou, como todo jovem do século 21, atacado por todos os lados com informações e desejos, então os escritos “menores” têm também sua importância, como respostas e signos de resistência.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Novamente, estou pensando na diferença dos gêneros nos quais me debruço… Escrever um poema não é a mesma coisa que escrever um ensaio, escrever um romance ou um conto não é a mesma coisa que escrever um livro de filosofia, e nada disso é igual a escrever para teatro ou cinema, tampouco a escrita de um trabalho acadêmico. As obras de ficção, permeadas de perceptos, e as obras filosóficas, que são guiadas por problemas, questões e pelo trato e criação de conceitos, demandam centenas, milhares de anotações, gestação, motivação, sofrimento e alegrias. Terminar em determinado ponto hoje e começar a partir dele amanhã – essa costura é que é o grande desafio, a ser conquistado apesar das questões práticas do dia a dia. Viver a vida, fazer a obra – grande lema. Os meus poemas são instantâneos, guiados pela inspiração. Os comentários e ensaios também, produzidos a partir dos estudos que vou fazendo. Tenho a impressão que temos grandes pensamentos que dão os gatilhos necessários e, ao mesmo tempo, continuamos estudando no meio do processo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como será que Marx, o maior fã e o maior crítico do capital, urdiu sua obra seminal varando madrugadas no Museu Britânico, não sem prováveis dores nas nádegas? Ah, eu me deixo arrastar por esses limbos todos, que me levam à margem do ato central de escrever… Projetos longos? Não só na extensão literal. Eu diria projetos grandiosos, de achar que não serei capaz, que são grandes demais para mim, não em sentido de inferioridade, mas no sentido da potência potente demais, como diria Espinosa ou Deleuze, e da intensidade que eles carregam, como uma cachoeira ou um choque elétrico ou o tamanho do universo, sentir que uma vida só é muito pouco para escrever grandes obras filosóficas e de romance, etc. Sobretudo em relação à procrastinação, uma procrastinação que, em termos práticos, até pode ser inútil, mas se deve ao meu vício por política, por me informar de assuntos políticos e ser engajado neste momento de urgência e agito político, o que me leva a escrever textos elaborados no blog ou em meus perfis nas redes sociais, e por pesquisar sobre assuntos que não têm necessariamente a ver com os meus projetos atuais. Portanto, viciado de celular na mão, estou lendo e escrevendo. Não perco tempo com bobagens. Agora, o medo das expectativas, isso vem depois que a coisa já está pronta. Se o caso é um trabalho, um paper acadêmico ou um artigo importante, tenho segurança dos meus argumentos e referências. Acontece bastante com meus poemas, porém. Sou mais seguro na prosa. Pierce viu bem que a prosa tem um caráter semioticamente lógico, em termos estruturais, ou seja, acaba levando a conclusões, a não ser que eu escreva uma prosa muito experimental, derivado de Joyce. Mas criar versos é assumir riscos. Mesmo se eu faço poemas sem versos, seja poesia visual, e todo poema, com ou sem rima, métrica e versos, tem de ter ritmo, senão não há poesia, está ali algo de muito, muito arriscado… Dificilmente se engana com poemas ruins. Sobretudo alguém como eu, não engano nem convenço fácil, pois estou ligado a excelentes estudiosos de poesia, leitores dos grandes poetas e até poetas muito inteligentes. Depois que deixo um poema meu em público na praça, sobretudo em meios digitais, ou publicado numa revista, tenho uma enorme dificuldade em ir relê-lo. Escrevi atiçado pela inspiração, achando que aquilo fosse a coisa mais perfeita e bela do mundo, reescrevi de maneira mais fria e técnica, não sei com que olhos vou revê-la. É uma sensação de vergonha, talvez pior do que estar nu, pois não tenho problemas com o nu, sempre essencial e atrativo. Mas é essa a sensação. Acho que Derrida dizia exatamente isso, em relação à prosa. Também, mas a poesia é mil vezes mais, provavelmente porque é o nu da própria alma. Pior é o “medo” de mim mesmo, do meu olhar estilista e perfeccionista, porque sempre vou achar algo a ser retirado, alterado ou acrescentado, ad eternum! Só num caso que não: numa poesia que, mesmo em versos livres, tenha ritmo e estrutura muito esculturais, divinos, a ponto de, se mexer, estragar. Aí, é uma grata surpresa. Agora, a prosa é infinita, pode se bifurcar de uma forma diabólica, neurótica, em gigantes proporções… No resto, é como dizia o bom e velho argentino e universal Borges, ninguém escreve um livro, isso é impossível: nós lançamos livros para nos livrarmos deles. Livro livra.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não sei quantas vezes reviso meus textos. Tive um ex-namorado que, pintor, me confessava que ele sempre sentia a hora de parar, que o quadro já estava bom. É assim também com os textos na página. E dificilmente mostro textos meus antes para as pessoas. Quando esbarro em algum tema cujo fulano é mais especializado, para ele me ajudar, pode acontecer. Isso, no entanto, é muito incomum, porque gosto de adentrar em terrenos conhecidos e achar os caminhos por conta própria, através da minha formação e do estudo. Ou quando escrevo algo especialmente para a pessoa. No geral, é justamente o oposto, elas me enviam seus trabalhos acadêmicos, poemas, ficções. Para eu revisar ou, o que é muito bom, em caráter íntimo ou como presente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como eu ando, no geral, próximo do meu computador e do meu celular, anoto geralmente em ambos. Sou mais viciado em celular do que devia ou queria. Passar momentos offline, reconectar com valores reais é tão bom… E, na verdade, o que não falta no meu quarto, escrivaninha, estantes de livros são blocos de notas (quase todos já preenchidos) e papéis de anotações soltos… Difícil, hoje em dia, escrever a mão – acompanha a velocidade do pensamento? Escrever muito com os dedos, porém, dói.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ler, mas principalmente reler. Não existe ato de escrever sem o ato complementar da leitura. Sobretudo isto: não necessariamente ir devorando tudo, mas ler menos, obras formativas, e com precisão. Uma grandiosa música pode desencadear algum fio narrativo e soltar a imaginação. Agora, as ideias… Elas surgem não só das minhas leituras, como também do inconsciente (inclusive coletivo, se quiser) e do meu repertório intelectual, artístico e existencial, do que fui me alimentando e vivenciando.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu apenas abençoaria. Sei que adquiri maturidade. Adquiri um estilo? Além dos meus temas caros e recorrentes (o homoerótico, a revolução que transforme o Brasil, a visão poética em contraste com o cotidiano prático, a sondagem e o estudo dos grandes conceitos filosóficos), além disso tudo adquiri um estilo? Gostaria que alguém especializado me dissesse. Acho que sim: a multiplicidade de técnicas de escrita e, às vezes, a concisão, às vezes, a prolixidade ou o fluxo. O estilista não é um conservador da sintaxe. Eu não sou. E sou capaz de reescrever uma página ou uma linha dez vezes, o que também é típico dos estilistas. É preciso que eu publique os livros atuais que tenho em mente, para que isso se confirme. Textos meus publicados em blogs, sites, antologias e coletâneas e em revistas e jornais são esboços do por vir. Sou múltiplo demais nos gêneros. Mas não é preciso dizer nada para o nosso passado, quando se tem vocação, a não ser: “Continue…” É preciso dizer muito para nosso presente, lembrar das dicas nas cartas de Rilke, como, por exemplo, cobrar e exigir a si mesmo, jamais as circunstâncias externas ou o mundo exterior a falta de inspiração, mas exigir de si mesmo a escrita. Sobre os meus primeiros textos… Logo que fui alfabetizado, entre o prézinho e o primeiro ano do primário, já comecei a escrever por conta própria, com profundo prazer, quase sensual. Sempre em escolas públicas, onde as professoras estimulavam a escrita e a redação, e eu era acima da média, querido por elas, eu escrevia para agradar e impactar as pessoas, professoras, familiares, e hoje isso cresceu. Eu pedia um caderno a mais para minha mãe, ou ela mesma comprava, para que eu escrevesse em casa, além do caderno de lições da escola. Ainda guardo esses cadernos. E, revendo aquilo, e mesmo minhas primeiras redações, histórias, mesmo as do ensino médio, não é preciso aconselhar nada, fui me aprimorando com a teoria e com a prática.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Seria o meu romance Terra e Flutuação: Brasil(ia), quase uma tapeçaria de um protagonista que, a cada capítulo, encarna um tipo díspar de “brasileiro” (o revolucionário, o artista, o estadista de esquerda, o politiqueiro de direita, o rico, o pobre, o jovem militar, o jovem trans) à sombra de uma ideia, um calendoscópio histórico, político, socioeconômico numa estrutura borgeana, dum esquema de romance achado num dos seus contos. Ainda não existe um romance como esse na literatura brasileira. E eu já o iniciei. Aliás, no comecinho dele há duas frases contrastantes que têm tudo a ver com esse nosso papo: a frase de Paul Valéry, “otimistas escrevem mal”, é logo seguida pela de Maurice Blanchot, “pessimistas não escrevem.” Diante do Brasil atual e de sempre, tais constatações importam. O meu livro Filosofia Brasileira, que, primeiro, resgata nossos conceitos-chaves de uma área que nunca esteve nos holofotes do Brasil, país de grandes sociólogos e de grandes historiadores, e de poucos grandes filósofos, muitos professores de filosofia grandiosos, para depois apontar a criação de uma nova filosofia, da imanência, do corpo, ainda está para ser iniciado. Não vejo a hora de publicar meu livro O Que é Ser de Esquerda?“, conceituação vital no momento atual do Brasil, onde a cisão entre esquerda e direita se intensificou, de uma forma que é preciso conscientizar as pessoas a respeito das causas e consequências de ambas. Lutar pela transformação social, pela defesa dos direitos da vida, da terra, da renda mínima, da moradia e do desenvolvimento econômico sustentável com igualdade de oportunidades, educação livre e pública de qualidade com valorização do professor, justiça e inclusão social. Não só isso. É preciso, e tal é a razão desse livro, conceituar o que é ser de esquerda, e, além das causas e das sugestões para os problemas, nessa conceituação do que é ser de esquerda eu parto da cosmovisão de percepção de mundo que Deleuze explica no “Abecedário” e da questão dos devires, que são sempre minoritários. Tirando esse último livro, os outros dois podem ser ainda títulos provisórios e variações. Há outros projetos, teatrais e cinematográficos, que passam pela escrita experimental a ser criada corporalmente e imageticamente, há outros livros, inclusive um chamado Poesiagora, mas os três mencionados são certamente para 2019. Penso que minha escrita mudará para sempre, junto com o próprio processo, quando eu chegar na arte quântica: poesia quântica, literatura quântica, teatro e cinema quânticos. Não apenas em nível literal ou teórico, como o cubismo ou o borgeanismo, mas alinhado à engenharia e tecnologia da ciência e física quânticas. Há ensaios e estudos acadêmicos para variados temas também. Para cada um deles, um estilo, estudo e abordagem diferente, o que só revela a riqueza do ato de escrever.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Planejo o esqueleto e fluo bastante, feito sangue. Gosto de listas de capítulos, sumários, anotações da estrutura geral. Mas sou muito desorganizado. Os textos filosóficos demandam maior estruturação e lógica. Sinto que escreverei toda minha obra num jato e morrerei no dia seguinte. Enquanto isso, vou a curtindo lentamente em fragmentos e na cabeça. É muito difícil ser escritor diante do fluxo de capitais e das redes antissociais te afetando o tempo todo, de todos os lados… Demanda uma resistência impressionante. Mas, geralmente, quando é ficção, tenho o começo e o fim. O começo e o fim no sentido de início e desfecho do enredo ou narrativa, o começo e o fim no sentido de frase e estilo. Pode mudar com o processo, porém já me surgem os dois lados, faltando a ponte. O difícil é sempre o meio. De tudo. Até de uma revolução: o que interessa não é quando ela vai vir, como a maioria pensa, tampouco as suas consequências, que já são um outro momento, são o futuro da História, mas o devir-revolucionário, o meio. Vou contar algo interessante para entenderem como funciona minha vida de intelectual e artista. É transitar entre a loucura e a sensatez. Esses dias, caminhando pela praia de Santos, minha cidade natal, passaram por mim dois rapazes, e consegui ouvir, captar uma frase que um disse ao outro: “Ainda falam de mim como se fosse há 10 anos”. Ele usou no gerúndio, “há 10 anos atrás”, mas basta retirá-lo. Imediatamente, essa frase soou como música nos meus ouvidos e agora me encontro obcecado em colocá-la num poema ou num romance, logo de cara. Pode até mesmo ser o título de um livro. É uma frase que pede uma costura, que já dá margem a muita imaginação. Faz supor que não se é o mesmo, então como se é agora?! E como era há 10 anos?! E quem é que fala de mim?! Ou dele?! Já há um personagem ou uma personagem, implícito-explícito, contido nesta frase dramática e muito poética, sonoramente poética, carregada de eco e de reticências… Não vou revelar, mas é possível que hoje eu tenha encontrado onde vou botar essa frase linda, de Fênix. Não vou revelar, é segredo, sou supersticioso neste aspecto, faz parte da gestação, mas saberão. Eu sou tomado por ideias ou perceptos assim. Fico dias nutrindo-as dentro de mim e saboreando-as na minha boca antes de escrever ou criar. São perceptos que inundam minha vida prática. É preciso abandonar tudo e ficar desleixado com a vida, disciplinado na literatura, no trabalho, na arte. Isto é uma doença, mas também uma cura. Paixão só é paixão quando há loucura. Tenho medo de despejar já no papel, de começar imediatamente e perder a atmosfera necessária depois. E há outros problemas envolvidos… Muitos outros projetos e ideias. Deixarei de lado o que estou escrevendo? O romance Obra em Obras: o Brasil, um título roubado de Décio Pignatari, tem um começo impactante, de impacto ao leitor, que me veio depois de ler um conto de O. Henry traduzido por Fernando Pessoa, e cada capítulo traz uma técnica literária diferente, um estilo diferente. O Mais Profundo é a Pele: Homossexualidade e Comunismo, não sei ainda se roteiro para um filme ou romance ou ambos, ou, quem sabe, para um livro dos meus contos, pois já tenho a trama toda na cabeça, essa frase linda sobre a profundidade da pele vem de um texto cômico de Valéry. É preciso catar do chão a flecha que alguém atirou no ar e lançá-la em outra direção…
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Justamente por eu não organizar nada é que tenho vários projetos ao mesmo tempo.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Foi lendo pela primeira vez, crescendo entre os livros que me inspiravam, espantavam e formavam, que eu contei para minha mãe, aos 10 anos de idade ou menos, que eu seria escritor. Descobri na escola. Só estudei em escolas públicas. Sempre era elogiado pelas professoras por causa das minhas redações, já as primeiras, quando fui sendo alfabetizado. O cinema também teve muita importância. Eu assistia filmes e voltava afoito para o prédio de infância para inventar brincadeiras com meus amigos a partir deles. Já era puro teatro.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Hilda Hilst ou Clarice Lispector e Guimarães Rosa ou Jorge Luis Borges são como minha mãe e meu pai para eu escrever a obra de ficção. Ainda não descobri Proust. Kafka permanece, inclusive os diários. A amarga ironia e o despojamento de Machado de Assis… Isto não quer dizer que são minhas maiores influências, apenas que são os pais exigentes, formativos. Mudaram tudo para mim, imediatamente depois dos livros infanto-juvenis da escola. Há alguns anos, descobri depois a escrita belíssima, trabalhada de Thomas Mann. Como buscar a simplicidade de um Espinosa, lido por eruditos e facilmente assimilado por um operário ou homem do campo? Na filosofia política, tenho sido gramsciano… O estilo de um Nietzsche, voraz, libertador, metafórico, aforístico, poético, sobretudo quando ele não é achista equivocado, profundamente ressentido e escravista, quase, estou dizendo quase, nazifascista, embora hoje em dia, após eu chegar em Marx, ele me deixe muito mal, muito mal, não gosto nem de citá-lo, talvez eu resolva isso daqui uns anos com um artigo cavado ou um livro, mas sinto uma certa dor no peito e sem coragem de abrir seus livros novamente, pois meus cabelos ficam em pé diante de alguns absurdos que Lukács já denunciava como irracionais… Além do mais, ele ficou biruta e devemos desconfiar dos birutas, daqueles que perdem a sanidade para sempre. O esquizofrênico Artaud sabia aproveitar a sua esquizofrenia terrível em um estilo formidável, seminal. Deleuze foi um grande estilista em Filosofia. Sua escrita me deixa aos pulos, entusiasmado! Como Blanchot. Este sabia o que é escrever. Mas já tenho um estilo? Ainda encontro dificuldades para o estilo, porque me ligo àqueles rebeldes que acham um estilo e passam logo para outro. É diferente da postura de um João Cabral, um dos maiores senão o maior poeta brasileiro e do continente, pela coesão e rigor. Outra influência. Às vezes, parece que ele escreveu sua obra toda em um só dia. Tem um estilo próprio, fixo: um ritmo que é só dele, a perlaboração obcecada em torno do objeto, a temática social e mesmo os poemas eróticos, de amor, dos quais pouco se fala, mas como nenhum outro escreveu, e que me fazem babar, e as indefectíveis rimas toantes, tomadas da poesia espanhola… Mas por que prefiro ser a metamorfose, o demônio de mil técnicas, o “demon pantechnicon”, para usar a expressão de Wyndham Lewis sobre Pound, e que se até enquadraria mais ou menos, selecionando bem, no anticapitalista e multifacetado Drummond? Amo E. E. Cummings. É visível sua influência em alguns dos meus poemas. Neste ponto, Joyce, mesmo Beckett e suas peças, cada peça uma inovação, como o primeiro dramaturgo modernista do país, Oswald de Andrade, ou Heiner Müller, o dramaturgo da Alemanha Oriental, de estilo dito pós-moderno e revolucionário… É buscar o limite. Após Finnegans Wake e Um Lance de Lados, o que posso fazer? Os dois autores morreram neste beco sem saída, mas estou vivo e tenho que pular o muro ou derrubá-lo. Não quero voltar atrás. Talvez logo eu encontre um estilo meu, mais fixo. Meus livros, meus textos, cada um tem uma técnica, um estilo, embora haja muito de mim mesmo se perpetuando nas brechas, entrelinhas… Neste momento, busco um estilo de invenção, inovação, com violência e sensibilidade. Só sei de uma coisa. E isto é Deleuze. Para ser um estilista, é preciso romper com a linguística, que nos estabelece um sistema em equilíbrio, revolucionar a própria língua criando a partir dela o que há de estrangeiro nela, com as suas variações e desequilíbrios próximos da fala ou da música ou mesmo das artes plásticas, sem deixar de ser literatura, porque nenhum grande poeta, nenhum estilista é um conservador da sintaxe e sua ordem.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Grande Sertão: Veredas, pela beleza, qualquer um do Augusto de Campos, pela inovação (o maior poeta vivo do mundo contemporâneo e, quase nonagenário, também o digitalmente, visualmente mais jovem), e o Manifesto Comunista, pela beleza, inovação e necessidade.