Fernando Dourado Filho é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Desde o 11 de setembro, começo o dia com a leitura das manchetes pelo celular. Não consigo esquecer que tinha saído tranquilamente de casa naquela manhã em que os aviões se espatifaram contra as Torres Gêmeas, em Nova York, e achava que tudo ia muito bem obrigado mundo afora. A meio do caminho do escritório, vi que algo de muito grave estava acontecendo – dei então meia volta na avenida Rebouças e regressei para Higienópolis -, e intuí com acerto de que o sucedido teria consequências pesadas na organização da vida das pessoas dali em diante, e aqui já não falo só dos aeroportos. Foi o que terminou acontecendo, não é? Passei então a reforçar a neurose de consultar um portal por precaução logo ao despertar. Faço-o furtivamente, para não ferir suscetibilidades nem perturbar o sono alheio. É uma forma de me certificar de que nenhum tsunami está varrendo o Pacífico ou que a cidade onde estou não está sitiada, com balaços cruzando os ares ao virar da esquina. Isso feito, tomo um longo banho e passo a um lauto café da manhã, desta feita com os jornais impressos – e aí com as notícias mais “velhas”. Então, dou uma boa caminhada até meu estúdio de trabalho. É assim no geral, onde quer que eu esteja no mundo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pode ser a qualquer hora. Não tenho nenhum ritual, e consigo ser indiferente aos sons que vêm de fora (salvo o chamado do cara das pamonhas de Piracicaba que este sim me enlouquece). Imponho-me muita pressão e ajusto a inspiração de acordo com as premências. Como colaboro com vários veículos, escrevo uns tantos parágrafos e, a certa altura, vejo com cara de quem está aquele texto: revista de negócios, revista literária, artigo de jornal, blog ou crônica? Tenho uma produção imensa, o que não quer dizer que seja de qualidade o tempo todo, muito pelo contrário. Mas devo admitir que tenho uma compulsão por escrever similar àquela que leva alguns a fazer ginástica, pedalar por quilômetros sob sol a pino ou fazer sexo. É claro que gosto de escrever nas madrugadas de São Paulo e no amanhecer do Recife. No primeiro caso, saio mais cedo dos bares, tomo um banho e me ajusto ao módulo ler/escrever. No segundo, tenho um pretexto e tanto para não caminhar na praia, programa que me entedia. Na Europa especialmente, escrevo a qualquer hora, salvo no verão que é quando tenho que esperar a noite. Tenho horror ao calor. Não é à-toa que, apesar de nordestino, nasci na cidade mais fria de meu Estado, a encantadora Garanhuns.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho quaisquer metas para a escrita em si. O mais próximo que posso chegar disso é quando digo que não perco prazos. Logo estou sempre sob pressão auto-imposta. E, como já disse, todo dia eu preciso escrever nem que seja um parágrafo, ainda que mais não seja do que para fazer uma postagem em uma ou duas redes sociais. Assim as pessoas sabem que não morri durante a noite anterior. Não sei o que é um dia sem escrever há mais de dez anos. Na verdade, desde os primórdios do Colégio de Aplicação, descobri um certo prazer em escrever e ver o efeito que o texto provocava nas pessoas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não trabalho muito com pesquisa. Aliás, quase nunca. Minha matéria prima deriva de uma vida intensa e riquíssima, que a maioria das pessoas pensa que é salpicada de elementos ficcionais. Adoro essa fama de fanfarrão, de exagerado que tenho junto a intelectuais. Tempo desses soube de um amigo que entrou em depressão ao saber que tudo aquilo que ouvia de mim era a expressão da mais pura verdade, e que quando minto em conversas sociais, é para diminuir meu papel, e nunca para aumentá-lo. (Já não basta pesar 140 quilos?) Esta é a vida que tive, que tenho e que espero continuar levando. Portanto quando ocorre de pesquisar, é só para fazer mera checagem de datas e de dados biográficos para tornar verossímil o que escrevo – que aí sim, pode ser pura mentira ficcional. Então tudo corre em faixas paralelas, pesquisa e criação, com rápidas consultas ao Google. Jamais teria paciência para fazer pesquisas em separado. Se um dia precisasse, talvez encomendasse. A menos que se trate de visitar um determinado lugar em viagens para me imantar dos ares locais. Aí sim, faço a pesquisa com prazer. O resto (ou tudo o mais) é só sentimento, percepção, interpretação de uma leitura que faço do mundo e que, desejavelmente, vai se renovando à medida que envelheço.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho nenhum desses sentimentos. Não travo nas quatro rodas nem procrastino. De mais, rebato tudo na hora, sem margem a maiores delongas. Não tenho tempo para postergações. Seria um luxo psíquico a que um homem de 60 não pode mais se dar, se é que ainda tem café no bule. Em meu caso, acho que tenho. Se não respondo em um par de horas – um pedido de entrevista, por exemplo -, não vou responder mais porque comigo a fila anda rápido. Antes não era assim. Nos últimos dez anos, passou a ser. Não conheço freios nem impasses porque nesse terreno sou atleta bem treinado e a última ambição que teria na vida seria de querer cair no gosto do meio acadêmico ou dos círculos de leitura tradicionais, formais, anódinos, muitas vezes xoxos, descafeinados, estéreis e invariavelmente esnobes. De resto, nunca meus escritos me valeram um só real na conta bancária, pelo contrário. Logo se um lado deve a outro, é a literatura que deve a Fernando, não eu a ela. Acho que o meio literário é mofino, mesquinho e composto por pessoas medrosas, não raro provincianas, ciumentas e meio argentárias. Venho de um mundo solar, globalizado avant la lettre, transparente e corajoso. Não tenho vocação para cafuas, conspirações, mexericos e despeitos. Portanto, tenho crédito comigo mesmo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nunca mostro-os. Não tenho, aliás, boa experiência com revisores. Tampouco me agrada alugar a paciência alheia com uma coisa que só faz sentido para mim, num primeiro momento, e para os leitores, depois que for publicada. Poderia pedir a opinião de um ou outro, como já devo ter feito (para logo me arrepender), mas o meio literário é feito de gente muito preciosa e cheia de pruridos. A abordagem “não será que?” me irrita profundamente. Tenho 60 anos, sou assertivo, leio muito e descubro por onde posso avançar ou incursionar à medida que escrevo. E não com conversas específicas sobre minha criação. Não obstante, presto atenção detida ao que os outros dizem no geral e capto muitos elementos que me servem de maravilha. Qualquer café a dois me dá elementos sobrantes para escrever. De resto, sou rigoroso com cada parágrafo e dificilmente avanço para o próximo se estou descontente com o anterior. Infelizmente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Bastante precária. A única coisa que sei do computador é usar o e-mail e o Word e só consegui anexar textos de tempos para cá. Talvez esta tenha sido esta a conquista da década em paralelo à perda do medo de morrer. É tudo direto no computador. Muitas vezes tomo notas em bares, mas rara vez consigo entender as garatujas que eu mesmo escrevi. E quando consigo, vejo que não valeram a pena a tinta da caneta. Certamente foi a bebida, a paisagem, o momento, a comida, a companhia ou a solidão que magnificaram insignificâncias.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Vêm sobretudo de minha vida diária. Viajo há 45 anos, estive em mais de 170 países, falo bem seis línguas, me viro em mais seis e distingo sessenta, inclusive dialetos. Viajei muito a negócios, com responsabilidades corporativas pesadas nas costas, à frente de equipes grandes. Vi a queda do Muro de Berlim, o massacre da praça da Paz Celestial e o desmonte da URSS. Sou filho da Guerra Fria, mas vi de perto seu fim. Apesar de viver em São Paulo há 37 anos, bebi da tradição oral nordestina de minha Garanhuns natal. Mamãe é magnífica contadora de histórias e sempre valorizei o uso de um vocabulário policrômico, cheio de temperos e condimentos embora abomine os edulcorantes. Tenho horror a grunhidos e modismos. Por mim, fuzilaria sem pena quem fala “tá ligado?” Tive amigos de todas as classes sociais, estudei em belas instituições – sendo o Ginásio de Aplicação, do Recife, a mais disruptiva. Precisaria ter nascido um néscio absoluto para não ter a criatividade aflorada. O memorialismo é uma seara que me fascina, mas precisaria de outra vida para contar o que vi e vivi.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
A economia. Estou treinando para ser menos Flaubert, menos gongórico, menos verborrágico, menos exuberante, menos redundante, menos pernambucano, menos generoso, menos espalhafatoso, menos loquaz. Preciso perder cor. Ganhar a opacidade expressiva paulista e o senso de poupança mineiro. O menos que é de regra na maioria das pessoas seria o máximo a que eu poderia almejar no momento. Nem sempre é fácil simplificar o jogo. Não gosto de pragmáticos ou objetivos de forma geral. Mas reconheço que clareza é elegância, integra a educação. Tenho que persegui-la.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um belo romance, nos moldes de Pátria, de Fernando Aramburu, que acabei de ler em Portugal. Um livro painel que cobrisse a vida de duas ou três famílias que me permitisse atravessar os últimos 30 anos da trágica e medíocre história do Brasil, este país-engodo, demagógico, embusteiro, infantil, balofo e celeiro de tanta gente ignorante. Mas isso é difícil. Acho que prefiro fritar pastéis e fazer entregas diárias e semanais a revistas, blogs e jornais a fechar as janelas para o mundo e fazer um bolo de noiva, o que seria um romance com pompa e circunstância. Meu amigo o escritor Martim Vasques disse que o Brasil tem 150.000 pessoas que compram livros (de 210 milhões de pessoas) e só 4 mil leitores de literatura. Um nada, uma excrescência estatística. Se eu fosse mesmo fazer literatura – ou tentar -, penso que não escreveria em português. De preferência, escreveria em inglês, francês ou castelhano, já que não sei mandarim. Para que tanto esforço? Tenho um amigo premiado, 15 livros, 73 anos, 3 safenas, dois netos, dois Jabutis, e que recebeu tempo desses o relatório de vendas da editora dele, talvez a maior do Brasil. Tinha crédito de R$78,00 a receber num determinado mês. Não pagava o Uber e a cerveja. Viva o pastel frito.