Fernando Costa Mattos é professor de filosofia na Universidade Federal do ABC (UFABC).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
De um tempo para cá, por recomendação médica, procuro caminhar uma hora todos os dias, o que faço, em geral, pela manhã. Costumo acordar cedo, consultar as últimas informações no celular – e-mails, whatsapp, facebook, últimas notícias, etc – e, em seguida, saio para caminhar. Quando volto, abro o computador e começo a trabalhar, respondendo aos e-mails pendentes, repassando as tarefas do dia, etc. O que faço na sequência depende do dia: se vou à universidade, é o horário em que costumo sair de casa; se não vou, começo a trabalhar nas atividades intelectuais, inclusive, se for o caso, na elaboração de algum texto.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando estou envolvido no processo de escrita – seja de algum projeto, artigo ou livro -, esse primeiro momento do trabalho intelectual, a que me referia na primeira resposta, tende a ser mais dispersivo: repasso o que fiz no dia anterior, penso nos próximos passos, consulto minhas anotações, começo a colocar palavras no “papel” (leia-se “na tela”!). Em geral, é depois do almoço que começo a render mais, produzindo de maneira crescente até o final da tarde. Por vezes, uma cervejinha ali pelas 18:00 ajuda a intensificar a produção até por volta das 19:00, 19:30.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como eu disse na primeira resposta, isso depende do dia. Nos dias em que vou à universidade – três a quatro vezes por semana – não escrevo (a não ser, é claro, eventuais documentos do dia-a-dia, pequenos textos, e-mails, etc). Assim, não mantenho uma meta diária de páginas. Mesmo em períodos de maior dedicação à escrita (quando redigia a tese de doutorado, por exemplo), nunca trabalhei com metas diárias, pois há dias que são naturalmente mais produtivos, ao passo que em outros que não consigo escrever uma linha! Mas costumo trabalhar com metas semanais ou mensais, a depender dos objetivos e dos prazos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Essa é uma ótima pergunta! No meu caso, a passagem da pesquisa para a escrita não é nem um pouco fácil. Creio que, quando se trata do texto escrito, na versão que será objeto de leitura (como sou econômico nas revisões, a primeira versão tende a ser pouco modificada até a versão final), o grau de exigência é muito maior do que aquele adotado nos processos preparatórios – leitura, anotação, mesmo comentários textuais menos pretensiosos, etc. Começar o texto é certamente o mais difícil, pois é o momento em que definimos o “tom” que ele terá. Assim, costumo demorar bem mais no começo, por vezes “enrolando” bastante antes de escrever as primeiras linhas e os primeiros parágrafos. Uma vez iniciado o texto, porém, e conquistada alguma confiança em relação ao caminho a ser seguido, ele começa a brotar com maior facilidade. Mas é um processo difícil! Não é à toa que muitas vezes se utiliza a imagem do parto em analogia com o nascimento de um texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Outra pergunta interessante! Essas são, de fato, dificuldades que me parecem inerentes ao processo de criação textual. Como eu disse na resposta anterior, a procrastinação tende a ser maior no começo de um texto, mas, em projetos mais longos, pode reaparecer em momentos de dúvida, como na passagem de um capítulo a outro. Na verdade, creio que ela está diretamente ligada aos dois outros fatores mencionados na pergunta: em grande parte, é o medo de não corresponder às expectativas que nos faz ter tanto receio do escrever; e a ansiedade – em ter o resultado pronto, por exemplo – nos faz intercalar angustiadamente entre o impulso de escrever o que quer que seja, para avançar logo, e a auto-exigência quanto ao rigor e à qualidade do trabalho. É claro que não há uma receita para enfrentar essas dificuldades: cada um deve encontrar o seu jeito de fazê-lo. Mas os recursos com que podemos eventualmente contar, sobretudo em momentos mais críticos, parecem-me bastante variados, desde uma terapia para trabalhar as emoções aí envolvidas até soluções mais pragmáticas e pontuais, como aumentar a dose do café ou tomar uns goles de uísque para abrandar o superego! Na fase final de meu mestrado, confesso ter recorrido a este último expediente em alguns momentos, tamanha era a minha angústia com a aproximação do prazo final e uma boa parte do trabalho ainda por fazer.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como indiquei em resposta anterior, não costumo fazer muitas revisões – o que, aliás, reforça o problema das travas que acabamos de discutir. Em geral, faço uma única revisão. Como, modéstia à parte, acredito escrever bem, sobretudo no que diz respeito à correção gramatical e ortográfica, isso não costuma ser um problema. Quanto à leitura por outras pessoas, reconheço ter um débito grande, em termos de formação – como filósofo e como escritor -, para com o Grupo de Filosofia Alemã, da USP, coordenado pelo Prof. Ricardo Terra: tínhamos ali o hábito de submeter os textos ao grupo antes de qualquer passo posterior (exames de qualificação, defesas, publicação de artigos, etc), e, como as discussões eram bastante respeitosas e construtivas, isso sempre foi bastante enriquecedor para mim. Mas é preciso enfatizar o caráter amistoso dessas discussões. Em grupos onde o clima da discussão não seja tão respeitoso e, sobretudo, construtivo, críticas muito duras podem por a perder o trabalho de escrita, inibindo por completo a criatividade.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Embora seja um crítico da técnica, como um modo de ser e pensar que caracteriza a modernidade, eu diria que, paradoxalmente, tenho uma ótima relação com a tecnologia! Desde quando comecei a escrever diretamente no computador, em meados dos anos 1990, nunca mais escrevi um texto à mão – a não ser, é claro, em eventuais provas de concurso, como a que tive de fazer para ingressar na UFABC (terminando com a mão exaurida e trêmula devido à falta de hábito!). A princípio, eu ainda fazia fichamentos, notas de leitura e primeiros rascunhos à mão, mas, depois que me habituei aos notebooks, no final dos anos 2010, passei a não apenas escrever, mas fazer todas essas notas e rascunhos diretamente no computador. Atualmente, até as leituras tenho preferido fazer no computador: quando participo de bancas de defesa, por exemplo, peço que me enviem somente o PDF. O aluno economiza a impressão e eu economizo espaço em casa!
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Essa é uma pergunta difícil de responder! Nietzsche diria que “eu” não tenho muita importância nisso: as ideias vêm sabe-se lá de onde, e vêm porque elas querem, não porque eu queira! Mas, brincadeiras à parte, eu diria que as ideias tendem a ser, em quantidade, diretamente proporcionais à quantidade de leituras: quanto mais lemos, mais ideias temos. Pelo menos comigo funciona assim. E é claro que a qualidade das leituras também conta: é preciso ler aquilo que guarda alguma sintonia com o caminho de pensamento (para falar agora com Heidegger!) que estamos tentando desenvolver, ou, por outra, escolher as leituras corretas para a pesquisa do momento. Mas eu não creio que as leituras sejam a única resposta para essa pergunta: também as vivências que carregamos conosco, bem como a abertura para vivências novas – uma atitude, digamos, de permanente atenção ao mundo que nos cerca -, são fundamentais para dar um material próprio, pessoal mesmo, à reflexão que estamos desenvolvendo no escrever. E aqui entram os hábitos a que a pergunta se refere, mas que é difícil enumerar em exemplos: trata-se mais de um estado de ânimo que é preciso cultivar, entre leituras que nos inspiram, convívios que nos fazem bem, caminhadas (Rousseau já nos mostrava como as promenades podem ser prolíficas para o intelecto!), etc. Mas eu indicaria, em termos mais concretos, uma atividade que, no meu caso, tem especial importância para manter minha vida intelectual ativa e criativa: a atividade docente. Embora no passado – quando fiz o mestrado e o doutorado, por exemplo – não sentisse essa necessidade, já que não desempenhava a atividade como hoje, eu agora o percebo muito nitidamente: se fico muito tempo longe da sala de aula, as ideias parecem ir embora. Creio que isso tem a ver com a importância do diálogo para o pensamento filosófico, algo tantas vezes enfatizado na história da filosofia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Embora eu tenha falado das dificuldades do processo de escrita sem situá-lo no tempo, é certo que essas dificuldades eram maiores lá atrás, quando, iniciando meu percurso no ambiente da história da filosofia, sentia ainda uma grande insegurança. O tempo passou, adquiri certa maturidade, e isso se reflete, naturalmente, num grau menor de dificuldade com o escrever. Grau menor que não significa, é claro, o desaparecimento do problema: procrastinação, expectativas elevadas e ansiedade são elementos constitutivos do processo de escrita! Mas eles deixam de ser tão brutais com o passar do tempo. Quanto à segunda questão aqui proposta, sobre o que eu diria a mim mesmo se pudesse voltar ao passado, me conduz a duas considerações diferentes. Primeiramente, eu recomendaria simplesmente um grau menor de exigência, pois isso tornaria o percurso mais fácil. Mas não sei se uma recomendação como essa faz sentido, pois a insegurança inicial é parte da experiência: se hoje ela é menor, é porque um dia foi maior! A segunda recomendação, se é que eu a faria, tem mais a ver com a natureza da pesquisa em filosofia: na formação uspiana que recebi, valoriza-se sobremaneira a chamada história da filosofia, sendo privilegiado o comentário dos clássicos em detrimento das ideias próprias, por assim dizer, que o estudante traz consigo. Considero que rompi um tanto com essa perspectiva no doutorado, ao fazer uma tese “a partir de Nietzsche”, e não “sobre Nietzsche”, mas eu ainda assim recomendaria – não tanto ao meu “eu” antigo, mas aos que hoje são estudantes de filosofia – um pouco mais de liberdade no processo de escrita. Até porque não creio que a noção de “pesquisa” seja apta a descrever o que fazemos em filosofia: até fazemos pesquisa (no sentido de que recortamos um determinado tema e percorremos uma certa bibliografia para tratá-lo), mas a finalidade da pesquisa se coloca num plano distinto daquele da pesquisa científica. Desenvolvemos uma reflexão filosófica na qual a escrita não é tão somente um meio ou uma forma, mas parte integrante do processo mesmo do refletir. Deste ponto de vista, eu diria que somos mais próximos dos escritores, da literatura, do que dos pesquisadores e da ciência em geral.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou trabalhando atualmente num projeto de médio a longo prazo que consiste justamente em escrever, com maior grau de liberdade, um livro intitulado Caminhos de um brasileiro na filosofia alemã, o qual me permitiria fazer uma espécie de balanço dos meus caminhos de pensamento dos últimos vinte anos, passando pelos três autores que marcam esse caminho: Kant, Nietzsche e Heidegger. Como ainda estou bem no começo, creio que ele cabe bem como resposta à primeira parte da pergunta. Quanto à segunda, sobre o livro inexistente que eu gostaria de ver escrito, confesso ter certa dificuldade de imaginá-lo. Mas um campo que seria interessante ver desbravado, em livros e fora deles, seria o das relações entre filosofia e literatura no Brasil do século XXI. Fica a sugestão.