Fernando Araújo Del Lama é doutorando em filosofia na Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia, normalmente, não começa pela manhã – exceto quando tenho algum compromisso que exija que eu acorde mais cedo. Costumo acordar entre 12h e 14h, vou à cozinha, como alguma coisa mais leve (raramente almoço) e preparo um café, brinco com minha filha de 2 anos, acesso meus e-mails, vejo as notificações no celular e as notícias na internet, dentre outros afazeres corriqueiros. Às vezes, faço uma triagem com os textos ou preparo algum material, mas nada que exija minha concentração.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Definitivamente, pela madrugada. Quando minha filha e minha esposa dormem, quando o celular cessa com as notificações, eu consigo me recolher e passar um tempo comigo mesmo. São muitas as distrações durante o dia, o que inviabiliza minha plena concentração. Normalmente, jantamos entre 19h e 20h, minha filha toma banho às 21h e vai dormir em seguida – e é a partir desse horário que as coisas começam a se acalmar. Sento-me ao computador e costumo trabalhar até 4h ou 5h. Há um belo texto de Walter Benjamin, autor que já me acompanha há dez anos, intitulado “A técnica do escritor em treze teses” – texto, aliás, completamente alinhado ao espírito deste projeto –, no qual o autor defende alguns preceitos fundamentais para a boa escrita: a terceira tese, por exemplo, sustenta o afastamento da mediocridade do cotidiano, com seu meio sossego e seus ruídos insípidos, e a décima tese recomenda que não se dê uma obra por acabada sem ter mergulhado nela uma última vez, desde a noite até o amanhecer. Não tenho nenhum ritual específico, mas costumo acompanhar as madrugadas de estudo com uma caneca de chá – quando não tenho prazo imediato – ou de café – quando o prazo está mais apertado e preciso estender o trabalho um pouco mais.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta fixa – x páginas ou x horas por dia, por exemplo. Para mim, é muito difícil estabelecer algum tipo de meta espontânea. Enquanto pesquisador, minha escrita é fundamentalmente voltada à produção de artigos, traduções, monografias, dentre outras atividades acadêmicas. Assim, eu costumo utilizar os prazos de relatórios de pesquisa ou chamadas de artigos, por exemplo, como metas de curto e médio prazo – pois a liberdade em demasia, a meu ver, pode prejudicar os resultados exigidos pela academia. Para cumpri-las, procuro escrever aos poucos, de modo a utilizar bem todo o tempo que possuo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É 10% inspiração e 90% transpiração. O mais difícil, a meu ver, é iniciar a escrita de um texto – passar da inércia ao movimento. Por isso, após planejar o texto em seções e tópicos, trabalho em cada uma delas aos poucos: transcrevo uma citação importante para a estrutura do argumento, faço um comentário a respeito dela, e assim, a partir de seu âmago, vou “engordando” e dando forma ao texto. Uma coisa que não faço, porém, é estabelecer uma divisão rígida entre a etapa de pesquisa e a etapa da escrita. No meu processo de trabalho, é preciso, obviamente, começar pela primeira e pôr o último ponto final na segunda. No entanto, a todo momento eu volto aos livros e artigos lidos durante a etapa de pesquisa, sobretudo em momentos que a escrita parece não fluir, de modo a buscar novos caminhos interpretativos ou algo que teria me passado desapercebido na primeira leitura.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Esse é um problema sério. Honestamente, ainda não descobri como lidar. O fato de eu trabalhar vagarosamente e procurar pôr o último ponto final nos últimos segundos antes do prazo não são sinais de planejamento consciente – antes fosse! –, mas faço isso porque não há outro modo de trabalhar diante da procrastinação que toma conta de mim. É incrível como toda e qualquer outra coisa parece muito mais interessante e atrativa do que aquilo que precisamos fazer em prol do nosso trabalho: parece impossível assistir a um único episódio de uma série qualquer ou parar de rolar o feed do Facebook, do Twitter ou do Instagram. E isso porque eu, de fato, me sinto bem ao ler, pesquisar, estudar, escrever – é um afago em meu ego quando algo de minha autoria é publicado. Medo de não corresponder às expectativas? Às vezes tenho pesadelos com meu orientador cancelando minha bolsa de pesquisa porque ele teria descoberto que sou uma fraude – a “síndrome do impostor” é um fantasma que me assombra de perto, por assim dizer. Além disso, eu sou muito exigente comigo mesmo: não costumo lidar muito bem com um trabalho aquém do que ele poderia ter sido. Eu sou uma pessoa naturalmente ansiosa. Felizmente, não tenho crises de ansiedade ou algo semelhante. Contudo, penso mais rápido do que sou capaz de acompanhar com a fala, faço planos com muita antecedência e frequentemente acho que não vai haver tempo suficiente para concluir certas coisas. Por exemplo, comecei a preparar os detalhes de um estágio doutoral de pesquisa (sanduíche) com quase um ano de antecedência e já me peguei falando “não vai dar tempo” logo no começo do doutorado, com quase quatro anos de pesquisa pela frente. Evidentemente, prazos muito flexíveis, aliados ao regime de trabalho 24/7 – já que não é possível estabelecer um horário de trabalho e simplesmente “desligar” a cérebro apenas para assuntos a ele conectados – e à procrastinação configuram uma bomba-relógio de angústia, sobretudo para pessoas com propensão à ansiedade. A solução paliativa que encontrei é, justamente, fixar algumas metas de curto e médio prazo. Se não fossem elas, eu escreveria minha tese nas últimas três semanas, provavelmente à base de café, sem dormir adequadamente e com a certeza de que o produto final não me agradaria. E, mesmo com todos esses reveses, entretanto, não me vejo fazendo outra coisa que não o trabalho intelectual – eles parecem ser condições de possibilidade, para falar com Kant, da realização deste último. Acho que jamais me enquadraria na rotina de um trabalho convencional, burocrático, que permitisse esquecer dos problemas ao bater o ponto e sair pela porta do escritório – pelo menos até o dia seguinte…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não reviso muito os meus textos porque não gosto de fazê-lo. Acho a revisão de um texto muito demorada e enfadonha, além de que ela ocorre, justamente, quando mais se quer pôr o ponto final derradeiro e abandoná-lo ao mundo. Em compensação, meu processo de escrita é mais demorado do que o habitual, uma vez que procuro trabalhar à exaustão os parágrafos um a um para não ter que retornar a eles depois – e isso vale para o escrutínio dos mais variados aspectos, como sintaxe, semântica, traduções a partir de fontes originais e até mesmo padronização segundo as normas da ABNT ou as normas específicas de determinada revista. Em resumo, é como se eu inserisse a revisão, de forma um tanto quanto obsessiva, em meio ao processo de escrita. Quando tenho mais segurança em relação ao texto, eu costumo discuti-lo com os demais alunos que integram o grupo de trabalho do meu orientador, o prof. Ricardo Terra, do qual participo desde 2013.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como bom millennial, confesso que sou entusiasta da tecnologia. Só escrevo utilizando o computador, até porque minha desafortunada caligrafia poderia prejudicar a retomada dos rascunhos. Quando me ocorre alguma ideia e estou distante do computador, costumo utilizar o celular – esse nosso companheiro inseparável! – para anotar algumas palavras-chave que me permitam recordar seu conteúdo posteriormente.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu gostaria muito de responder de forma romântica ou poética, mas acho que elas vêm da necessidade: escrevo porque preciso escrever, porque considero escrever minha vocação, porque escrever é o que faço para ser produtivo, de algum modo, para a sociedade, e finalmente, porque recebo uma bolsa para escrever, participar de congressos para a discussão de meus textos e, eventualmente, publicá-los. Isso posto, eu entendo que é meu dever me manter atento, de modo ininterrupto, aos mais sutis detalhes nos quais as ideias podem se refugiar: uma vez que não se tem a mais ínfima noção de onde elas podem brotar, redobro a atenção que despendo, seja na leitura dos clássicos, seja nas coisas mais singelas do meu dia a dia, como os desenhos animados que minha filha assiste, por exemplo. Também não possuo hábitos para me manter criativo, tampouco acho que exista algum tipo de fórmula para lidar com algo tão imprevisível quanto a criatividade. O único cuidado, por assim dizer, que tomo é o de não subestimar as ideias quando elas nos vêm à mente: elas nos tomam de assalto na mesma velocidade com que evanescem em meio a pensamentos outros. E entre confiar cegamente na memória ou procurar registrar, ainda que brevemente, alguns de seus aspectos, eu fico com a segunda opção.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Como toda técnica, a escrita também se aperfeiçoa com a prática. Meus primeiros textos eram muito pretensiosos, queriam resolver uma questão, discutida há anos e por autores muito mais capazes do que eu, em apenas algumas páginas. Além disso, como todo acadêmico iniciante, a busca pelo rigor conceitual dava a tônica desses textos. Com o amadurecimento, passei a atenuar minha perspectiva e prezar pelo equilíbrio entre beleza estilística e rigor conceitual – porque ninguém merece ler um texto logicamente consistente, mas tedioso ao espírito… Acho que, ao longo dos anos, passei a considerar cada vez mais meu texto também como leitor em vez de trata-lo tão somente como um fim em si mesmo, isto é, passei a escrever os textos da forma como eu gosto de lê-los. Olhando retrospectivamente, eu diria ao meu eu do passado para ser perseverante diante das críticas, para não se abalar com elas, para procurar absorvê-las e assimilá-las à sua escrita. Afinal, só a prática aperfeiçoa a escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho algumas ideias de artigos sobre diferentes aspectos da obra de Walter Benjamin, alguns pequenos projetos literários de ficção (contos ou uma novela) e até mesmo um sonho de escrever um livro infantil, cuja protagonista seria inspirada na minha filha. Estou mantendo-os engavetados, por ora, por estar completamente imerso em minha pesquisa de doutorado, também sobre Walter Benjamin, minha prioridade atualmente. Já sobre o livro que eu gostaria de ler e ainda não existe, tanta coisa já foi escrita, em diferentes idiomas, em diferentes épocas e por diferentes autores, que não sei se há um livro que ainda não exista ou se sou eu, do alto da minha ignorância, que não o conheço. Uma vez que as possibilidades são quase infinitas, eu ousaria dizer que os textos que escrevo visam suprir, muito diminutamente, essa lacuna: o que me impulsiona à escrita é a vontade de ler determinado texto; pesquiso sobre o tema e, uma vez que não encontro algo similar nas línguas que conheço, escrevo-o eu mesmo.