Fernando Alves Medeiros é escritor, engenheiro eletrônico e metroviário, autor de “Itinerário para Puma Punku” (Urutau, 2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia como muitos brasileiros. Acordo, tomo café, me arrumo e corro para o trabalho. Não necessariamente nesta ordem. Já aconteceu de correr para o trabalho e ir acordando no caminho: o corpo desperto, mas a mente ainda em processo de “inicialização”.
Como o meu trabalho não tem nada a ver com literatura, afinal, é da minha formação em Exatas que eu pago as minhas contas, posso dizer que sou verdadeiramente escritor fora do horário comercial. Mas para melhor responder a sua pergunta, acho que uma atividade recorrente nas minhas manhãs que, diga-se lá, pode ser encarada como rotina é ir ao trabalho de ônibus, ouvindo música em meus fones de ouvido.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Olha, como vivo atarefado, não consigo ter um “ritual”, uma coisa repetitiva, com certo sentido mágico, que ajude a abrir as “portas” da criação literária. E nem é com orgulho que falo isso. Acho que todo mundo já ouviu falar do escritor disciplinado, com horários fixos, uma xícara de café, um radinho tocando uma música relaxante, um vasinho de flores numa mesa cheia de papeizinhos coloridos anotados, e o cara ali, trabalhando horas a fio, na luta corpo-a-corpo, épica, com a palavra.
É muito bonito, não há dúvida, mas… quem pode se dar a esse luxo? Estou tão distante disso… A minha escrita infelizmente não pode escolher muito, então ela vai acontecendo por parcelas e por espasmos, nos minutinhos livres do horário de almoço, ou numa noite de insônia, ou num final de semana, ou nas férias…
Em suma, a minha escrita está espremida sempre entre os compromissos de minha rotina. Não há constância. A intensidade da minha produção varia, mas é pautada e diretamente proporcional, digamos, à necessidade daquilo que preciso dizer. Confuso? Explico-me. Há ideias à noite que me obrigam a sair da cama; há outras que podem esperar pelo dia seguinte. Sem contar que tenho muita “matéria bruta” gerada nesses preciosos momentos em que consigo escrever: os rascunhos desordenados, fragmentos, ideias, notas…
É verdade que consigo ter alguma “regularidade” quando estou revisando, trabalhando em cima de um texto mais ou menos consistente, do que quando estou criando “do zero”. Escrever o primeiro rascunho ou tratamento sempre é a parte mais penosa de todo o processo. E por isso mesmo a mais demorada. Porque já nasce precária, mas você tem de fechar os olhos, atropelar seu perfeccionismo e seguir adiante, aproveitar o “fio de veia e sentimento” do texto, como disse certa vez o escritor português Eça de Queirós, e perseverar.
Resumindo, não tenho rituais nem horários fixos. Escrevo quando posso e quando tenho algo para dizer. Talvez, a única coisa que poderia ser colocada como “ritual” seria meu hábito de escrever sempre à mão, em folhas limpas, sem pauta, geralmente o verso de uma folha já impressa que uso como rascunho.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo pouco, bem menos do que gostaria. Gostaria de ter a disciplina dos grandes escritores, principalmente os de produção caudalosa, como Victor Hugo, Jorge Amado, Érico Veríssimo, Stephen King. Por outro lado, não quero sofrer do mal de um Roberto Carlos, um Mazzaropi, um Paulo Coelho ou um Dan Brown, se diluindo à medida que encarnaram a obrigação de lançar algo a toque de caixa, sempre.
Paradoxalmente, sou uma pessoa que vive integralmente a literatura, pelo menos no aspecto mental: há ideias e projetos que acordam comigo, atravessam o dia e voltam comigo para a cama. Para você ter ideia, há projetos que me acompanham desde o ensino médio. Mas o lado braçal da escrita (essa coisa de simplesmente sentar na cadeira e escrever) acontece lateralmente. Acho que não está difícil de entender. A minha escrivaninha, geralmente, é um amontoado de pontas soltas, pedaços, aguardando o momento para se integrarem a um todo. Devo ter uns dez projetos literários em andamento. Desses dez, uns três razoavelmente adiantados.
Como já disse, eu escrevo sempre à mão. E a isso incluem-se as constantes reescritas. Já aconteceu de escrever até ficar com o pulso dolorido, os dedos inchados, mas isso tem ocorrido cada vez menos. Ou acontecer de escrever até rolar o primeiro impasse, ou quando a minha “vida prática” me interrompe, o que tem sido muito comum.
A escrita para mim é uma atividade paradoxal e caprichosa. Às vezes é preciso ter uma força muito grande para não sucumbir às distrações. Ora, hoje temos mais distrações que no tempo do Balzac! Toda hora você é chamado para adiar o trabalho da escrita. E toda vez que você escreve, passa pela sua cabeça a ideia de que você poderia estar fazendo outra coisa muito mais interessante naquele exato instante. Ver um filme, arranjar treta nas redes sociais…
Por outro lado, a escrita se impõe em determinada altura, exigindo espaço onde antes não havia, porque chegou o momento do qual não se pode adiar mais. E isso costuma ser muito proveitoso.
Há uma canção que gosto muito, do Jorge Ben, “As rosas eram todas amarelas”, do maravilhoso disco de 1972, em que ele cita vários livros do Dostoievski, “o poeta da mitologia contemporânea”. Nessa canção incrível, há esse trecho sensacional: “Renunciando em ser poeta, dizia: ‘Basta eu saber que poderei viver sem escrever, / mas com o direito de fazer quando quiser’. / Porque ele sabia, mas esperava a hora de escrever…”
Acho que é isso. Mas não trabalho com metas. Lembra da frase célebre da Dilma Rousseff? (risos). Pois é, não faço promessas que não poderei cumprir. Na atual conjuntura de minha vida, não posso viver isolado ou trabalhar integralmente com a literatura. É uma pena. O gigante Luiz Antonio de Assis Brasil, escritor gaúcho e verdadeiro guru de uma geração de escritores, falou recentemente numa entrevista que hoje não há mais espaço para “escritores de final de semana”. É uma afirmação tão peremptória, quase uma condenação. E muito verdadeira, infelizmente.
A vocação do escritor não deixa de ser algo excludente. Num momento tão competitivo, o escritor tem que se profissionalizar, saber o que quer, estudar, ter dedicação exclusiva. Mas num país tão desigual como o nosso, quem pode se dar a esse luxo? É um dilema que só os bem-nascidos talvez não conheçam. Enquanto você, sei lá, está na fábrica apertando parafusos, o sujeito de sobrenome portentoso está no escritório estudando as técnicas narrativas e procedimentos literários utilizados em Anna Karenina. Desde o início sabíamos que a literatura é uma questão de classe social. Enquanto, vamos supor, o lugar mais longe que você visitou foi Taubaté, quando passava suas férias na casa da tia, o novo livro daquele poeta famosinho traz na biografia “estudou história da arte em Marselha, com mestrado em Madri”. Alguém deve ter dito que poeta bom é quem ostenta cosmopolitismo no currículo, vai saber.
Enfim. Acho que todo escritor tem, como disse Ricardo Piglia naquele livrinho maravilhoso “O laboratório do escritor”, a fantasia da “ilha deserta” ou da “torre de marfim”: o lugar isolado, perfeito, com a janela mostrando um cenário inspirador para escrever. As águas do Rio Ródano, por exemplo. Mas a minha casa fica perto de uma escola, passa em frente uma linha de ônibus. Pensa: gritaria de crianças, ronco de motores…
Mas sou um otimista. O filósofo espanhol Ortega y Gasset tem aquela frase célebre, que diz “eu sou eu e minha circunstância”. A gente tem que lutar com as armas que a gente possui. Ir em frente, insistir, mesmo sem as condições ideais para escrever.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é muito espontâneo. Basicamente, alguma ideia surge de algum lugar, pego um papel e escrevo. E reescrevo. Até cansar. Não era o George Lucas que dizia que ninguém termina uma obra, mas a abandona? Pois é.
Esse meu método funciona bem para poesias e para a prosa curta, os dois gêneros que eu mais tenho me dedicado ultimamente. Para mim, os começos até que são fáceis. Quer dizer, quando a ideia já tomou forma aqui comigo antes. Sou um escritor muito intuitivo. Escrevo sempre partindo do meu arsenal, da minha bagagem. Eu observo muito, então fatalmente falo de mim, das coisas ao meu redor, da minha relação com elas. Mas me preocupo sobremaneira em não fazer da minha obra um mero diário egocêntrico, sabe? Não quero fazer uma obra contemplativa do próprio umbigo. Quero tocar nas pessoas, de alguma forma.
Eu também utilizo histórias de amigos, conversas escutadas indiscretamente dentro do trem ou do ônibus, dilemas, tragédias, memórias, experiências, sonhos, viagens. Essas coisas são recursos naturais altamente renováveis.
Muitas das vezes, a vida brinda você com situações emblemáticas: basta se limitar a escrever do jeito como elas são, que você já terá uma obra interessantíssima. É claro que sempre é bom fazer uma “transcriação”, como dizia Haroldo de Campos, dar um toque de invenção. “Sobre a nudez forte da Verdade, o manto diáfano da Fantasia”, como disse certa vez o mestre Eça de Queirós, entende?
Por fim, quando há pesquisa, ela ocorre paralela e subordinada à escrita. Enquanto vou escrevendo o “esqueleto”, procuro livros, artigos, vou atrás de informações. Há temas que me perseguem, então, sinto que sempre as minhas pesquisas fazem giros concêntricos em torno dos mesmos eixos. Meus poemas, ensaios e contos refletem isso também. E para quem escreve, creio, tudo é, em algum grau, uma pesquisa. A rigor, não vejo muita diferença nem separação. O caderno de notas é a coletânea de fichas de leitura que o escritor faz quando e enquanto lê o mundo. Uma conversa, uma frase, uma notícia, um filme, um best-seller do momento, uma viagem, um curso, uma estampa de camiseta. Até aquele sucessinho chiclete que não para de tocar na rádio tem o seu valor.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para responder à essa pergunta, sinto que terei que fazer uma enorme reflexão. Porque esta pergunta envolve muitas questões sobre as quais eu tenho refletido ultimamente.
O importante é não forçar o texto. É preciso deixá-lo respirar, descansar no fundo de seus arquivos. Dar tempo ao tempo. Vê-lo com a mente mais arejada, com novos olhos. Quantas vezes você começa um texto e nem faz ideia de como terminar? Às vezes, afastar-se também é estratégia.
Certa vez, escrevi dois poemas que ficaram guardados na gaveta. Quando preparava meu segundo livro de poesia, “Itinerário para Puma Punku” (publicado neste ano pela Editora Urutau), eu percebi que eles poderiam ser encarados como metades de um mesmo poema. Isolados, eles diziam pouco. Juntos, formaram uma coisa nova, maior, inesperada. Completaram-se.
A procrastinação é um problema para mim. Estou há meses escrevendo um conto, que já se tornou numa novela. Vou escrevendo sem muito freios ou encanações. O texto vai fluindo quase que na escrita automática dos surrealistas. É claro que vou deixando um rastro absurdo de incongruências. E faz um tempo que tenho um monstro na minha mesa de trabalho e nem faço ideia de como domesticá-lo. No mais, acho que o importante é produzir a “matéria bruta” para ser (re) trabalhada ao longo do tempo.
Sobre a expectativa, tento não me preocupar muito. Penso que, se você se deixar levar por esse tipo de preocupação, não irá escrever. Ou escreverá obras sem cara própria. A preocupação com a expectativa sempre estará lá, sempre existirá, estará rondando você feito um leão faminto.
Todo escritor quer ser lido, mas às vezes é bom se perguntar: por quem? Um cara que quer ser um contador de histórias de amor “água com açúcar” poderá ser discriminado pela galera que curte histórias que tratam de assuntos delicados com aquele realismo cru. E, no afã de tentar agradar essa gente, faz algo fraco, sem sal.
É preciso ter muita maturidade para olhar bem nos olhos de algum amigo que você considera para caralho e se certificar que ele pode não ser o seu público, o seu leitor.
Veja só a minha história: sou engenheiro e poeta. Fazer poesia no meu círculo já soa como um tiro no meio da orquestra. E para quem é de fora também, há muita gente que acha que números e letras sejam antípodas, grandezas inversamente proporcionais. Essa turma esquece com frequência que houve tantos escritores que tinham formação em Exatas, vou lembrar alguns: Dostoievski, Gustavo Corção, Euclides da Cunha, Nicanor Parra, Ernesto Sabato, Robert Musil… Ou achar que, por causa da sua formação, você já tem um “nicho” predeterminado. “Ah, bem que você poderia fazer ficção científica” é uma frase que já ouvi bastante. Estou me lembrando agora da cantora Carmen Silva (1945-2016). Li em algum lugar que ela, em seu começo de carreira, lutava para se firmar como cantora romântica, mas ouvia constantemente das gravadoras que ela deveria cantar samba, simplesmente porque era negra.
Acho que para mergulhar na escrita, é necessário ter nos olhos alguma fagulha de loucura. Porque, se você parar para pensar, não escreve. Escrever, por si só, já é um puta ato de rebeldia. Ainda mais num país que se lê pouco, como o Brasil. Aliás, entre os poetas há um dito quase proverbial: se todos os poetas se lessem, no mínimo, já existiria um mercado autossuficiente de poesia.
Quando eu tinha dezoito anos, fui com um amigo a uma editora pequena aqui em São Paulo, com um manuscrito de poesia debaixo do braço. A editora nos recebeu para um café e perguntou à queima-roupa: “Quantos livros de poesia você compra por ano?” Respondi ingenuamente que não comprava, pois lia de bibliotecas. A editora olhou nos meus olhos e perguntou: “Se nem você compra livros de novos poetas, por que acha que alguém se interessaria pelo seu?”.
Isso nos leva a outras questões. Tem sido bastante comum topar com pessoas que só leem os clássicos da literatura universal. São exigentes, sofisticadas, pedantes até, de longe assumem um estereótipo. Acham que “autor bom é autor morto”. E morto há muito tempo, de preferência. Por consequência, esculhambam a literatura contemporânea. E, curiosamente, algumas dessas pessoas ganham a vida ministrando oficinas de escrita, veja só. Preparam alunos para algo que nem elas mesmas acreditam! Como um personagem saído daquela galeria de malucos do “Bartleby & Companhia”, romance maravilhoso do Enrique Vila-Matas, esses caras endeusam tanto a Literatura que acabam achando que tudo já foi dito — e melhor. Logo, para quê escrever?
Ler é sempre melhor, concordo. Porque não há riscos. Você tem um dinheiro na carteira, vai comprar o quê? Uma edição popular d’A Divina Comédia ou o novo livro do Ricardo Domeneck? Ou o meu? Mas veja, eu sou defensor de que se leia os clássicos. Mas defendo que, se alguém quer ser um escritor contemporâneo, o mínimo que se espera é que ele leia, compre os livros de literatura contemporânea. Prestigie os colegas. Acredite no artista nacional. No novo. Desculpe, mas me soa falso o cara que é poeta e andar com um Drummond debaixo do braço. Se nem ele se arrisca ler os seus contemporâneos, que erram e tentam acertar, por que alguém o leria, não é mesmo?
E ouve-se muita bobagem cristalizada de conselho. Um escritor até que famoso disse que não cabia mais escrever sonetos hoje, simplesmente porque houve um passado brilhante de sonetistas absurdamente incríveis. Ou seja, tudo o que você fizer, será um arremedo, uma sombra, um vulto pálido. Uma colega escritora acha que a “maioria” da poesia que é publicada no país hoje não pode ser considerada “contemporânea”, sendo, portanto, carente de critério qualitativo. Que poesia contemporânea seja aquela que realmente deva beber das vanguardas, e que leve adiante a quebra dos paradigmas, a invenção formal, a revolução estética. Pergunto se, ao utilizarmos as “Galáxias” (obra-prima do Haroldo de Campos) como régua, qual livro ou poeta subsiste? (risos).
Estou contando esses exemplos porque sempre a gente ouve alguém, de certa autoridade e prestígio, falar como verdade essas coisas que me soam mais como slogans, preconceitos, agenda pessoal. Se na sua estética você não usa a palavra “açambarcar”, ok, vai fundo. Se nenhum personagem seu pode se chamar Pedro ou todas as mulheres se chamam Letícia, vá adiante, pois. Mas achar que a literatura “perde pontos” porque algum escritor não partilha dessas suas restrições, é ridículo. E isso tudo acaba incomodando no processo criativo, imagina para quem está começando? Para quem ainda não desenvolveu, digamos, a sua “autoestima literária”? Trava.
Por um tempo, fiquei travado na escrita porque passei por oficineiros vindos do jornalismo que realizavam verdadeiro bullying se você utilizava advérbios de modo terminados em “–mente” na prosa, ou adjetivos na poesia. Entende o momento que vivemos? Às vezes acho que é como se o escritor contemporâneo precisasse atirar uma pedra todo santo dia nos túmulos de Olavo Bilac e Coelho Neto. Imagina se Guimarães Rosa utilizasse a “concisão implacável” desses “guias de redação e estilo”? “Grande Sertão: Veredas” seria um conto, no máximo uma novelinha curta. “Os Sertões”, então, nem se fala. Hemingway escrevia daquele jeitão seco, minimalista. Imagine você usá-lo como régua para avaliar um Jack Kerouac, por exemplo, um escritor de lirismo caudaloso?
Mas, que fique claro: eu defendo as oficinas de escrita. Aprendi muito, conheci uma bibliografia fascinante. Mas tem que tomar cuidado, separar aquilo que seja um critério objetivo daquilo que é mera idiossincrasia do oficineiro. Uma oficineira esculhambou certa vez Bukowski, achando-o monótono, datado, repetitivo. O mestre dela, também oficineiro, recentemente teceu loas ao grande padroeiro dos escritores bêbados. E aí?
Dei essa volta ao redor do globo, para reconhecer que não posso chegar a uma conclusão. Escrever é curioso, porque você tem que equilibrar duas máximas contraditórias: a de que ninguém é original e a de que todos são únicos, logo, originais. Lidar constantemente com a tensão entre tradição e modernidade. Ter sua voz, mas dialogar com outros escritores. No fundo, acho que o escritor escreve apenas o que gostaria de ler.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nossa, os poemas do “Itinerário para Puma Punku” foram revisados dezenas de vezes. Versos reescritos, suprimidos, ampliados. O livro todo teve mais de dez versões até chegar na gráfica. Falei que a escrita da primeira versão é mais penosa que a revisão. A revisão parte de algo prévio, mas a primeira mão do texto parte do vazio. Na revisão há a angústia de qual é o peso de cada palavra, o que é ambíguo, o que é supérfluo. Vejo que esse processo vai caminhando de modo mais claro, consciente. O lado técnico da escrita floresce na revisão. E revisão é criação também.
Eu tenho uma tendência ruim de querer acrescentar, escrever mais. Acho que foi o Haroldo de Campos, comentando sobre Oswald de Andrade, que disse que a língua portuguesa é prolixa por natureza. É uma verdade.
Sou obcecado por ritmo e pontuação. Pode reparar, meus poemas têm um rigor com pontos, vírgulas, travessões. Talvez pela minha formação em Exatas, eu procuro clareza. E, lutando contra a vontade de acrescentar, faço cortes, mudo palavras, procuro o verbo perfeito.
No passado, eu gostava de escrever de um jeito mais formal, cheio de palavras difíceis e fraseado retorcido. Sintomas de quem lia a Bíblia na clássica tradução do Ferreira de Almeida e de quem tinha adorado Euclides da Cunha. Muitas das vezes esse preciosismo acaba vindo à tona, mas prefiro trocar por palavras mais simples e frases mais diretas. Olha, quase escapa agora um “vernáculo escorreito” (risos).
Minha namorada costumava ler mais meus rascunhos. Mas ela vive atarefada com o trabalho e faculdade, então recorro para meu amigo Felipe Lisboa Castro. Ele é quem faz a leitura crítica de boa parte das coisas que escrevo. Já joguei muita coisa no lixo por causa dele. Por outro lado, ele já salvou vários trabalhos. Ele me ajudou imensamente na revisão do Itinerário, me mostrando um conceito geral do livro, excluindo versos ou poemas problemáticos, estabelecendo uma ordem. Aliás, já falei que estou na literatura por causa do grande estímulo que ele me deu. O cara é um grande camarada, tem uma bagagem assombrosa, um olhar crítico aguçado… e uma sinceridade desconcertante. E outra: reunir no bar para a discussão aberta, às vezes tensa de uma obra tua é muito mais interessante que receber um e-mail frio daquele poeta famoso cujo trabalho não lhe diz muita coisa.
O escritor geralmente não tem todas as chaves da própria criação. Há pontos que ele não consegue enxergar, precisa de alguém de fora para mostrá-los.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sempre escrevo à mão, acho que você já está cansado de ouvir isso (risos). É uma maneira de sentir o texto, de dar ritmo, cadência às palavras. E ver as linhas distribuídas na folha com minha letra é outra coisa. Eu tenho uma relação material com a escrita, preciso sempre estar com papel, caneta ou lápis. Algo artesanal, solene, litúrgico mesmo. Na maioria das vezes, eu faço várias versões do mesmo texto à mão. Só depois, passo para o computador. O que não quer dizer que cheguei na versão definitiva. Imprimo depois, e risco, circulo, mudo palavras. Reescrevo à mão novamente. E passa de novo para o computador. É um vai-e-vem. Para chegar às 68 páginas do Itinerário, eu devo ter usado umas 300 folhas. Li em algum lugar que o escritor tem que ser amigo de sua lata de lixo. Obviamente tento não impactar com o meio ambiente, utilizo papéis que já vem com um de seus lados impressos, papeis usados.
Ultimamente tenho lido meus textos em voz alta e gravado no celular, para dar uma noção maior de ritmo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acredito que ler, assistir filmes, conversar, ouvir música. As ideias podem vir de qualquer lugar. Já nasceu um poema meu a partir de uma pichação. Ou de uma fala do vendedor de balas no trem. Eu cresci ouvindo a música romântica dos anos de chumbo, esse momento de efervescência que os nossos estudiosos pouco se dedicam. Aliás, tem muita coisa interessante nas canções. Depois que o Bob Dylan ganhou o Nobel e o Chico Buarque o Prêmio Camões, não é demérito encarar música popular como literatura. Para mim, nunca foi: basta ver as epígrafes de diversos poemas meus.
Já ouviu as canções icônicas d’Os Racionais? São verdadeiros poemas musicados, de uma sofisticação absurda. A Unicamp utilizar o álbum “Sobrevivendo no inferno” (1997) como leitura obrigatória do vestibular só reitera isso que estou lhe falando. A propósito, minha relação com a poesia começou por meio da música do rádio.
Confesso, porém, que há muitas coisas que me incomodam. Muitos amigos escritores não conseguem romper sua bolha de referências, deixam um Brasil inteiro de fora e ficam mascando os mesmos chicletes, na mesma circularidade viciosa. Acho que estou retomando aquela reflexão enorme que fiz quando falava sobre a expectativa.
Por exemplo, você sempre vê algum poeta usando por epígrafe Drummond ou Orides, mas nunca um Onestaldo de Pennafort, uma Adalgisa Nery. Agora é moda dialogar com a lírica contemporânea portuguesa, com Adília Lopes e Herberto Helder, por exemplo. Sei lá. Poxa, a mina escreve uma hashtag no Instagram, #leiamulheres, com livro da Ana Cristina Cesar. O estímulo tem que ser a FLIP e o livro ser publicado por uma gigante do mercado livreiro? É isso? A Stella Leonardos (1923-2019) terá que passar por processo semelhante para ganhar a hashtag?
Quando eu escutava rádio ou assistia mais TV, eu vivia me perguntando porque há músicas e filmes que sempre se repetem e outros que você precisa garimpar. Sempre me atraiu essa dinâmica caótica de holofotes e silêncios que ronda toda produção cultural.
Há poetas que estão na boca do povo, há poetas que, de repente, todos estão falando, comentando. Os ventos mudam, e questiono se esses ventos são de fato tão espontâneos assim. Sei que a poesia tem algo de nobre, e colocá-la num mesmo caldeirão com rádio e TV soa assim um despropósito. Mas fico pensando se alguns nomes que sempre batem cartão nas revistas literárias e grande imprensa gozam desse prestígio porque, além da qualidade literária, foram habilidosos em mexer as pedras dessa espécie de showbiz da indústria cultural.
Mas, se formos parar para pensar no impacto que nossas letras têm na vida de nossos compatriotas, tudo que falei são meras questiúnculas. Livrarias fechando, abrindo no lugar lojas de sapatos e hamburguerias gourmet, falar de poesia é como falar de rúgbi.
As ideias vêm de qualquer lugar. Se tradições em nossas artes podem ser facilmente comparadas a vários rios, uns mais largos e extensos que outros, há rios secos, ou subterrâneos, ou córregos, uns aterrados, outros canalizados. Uns abrem a torneira porque não necessitam de grande esforço; já outros colocam no copo Acqua Panna para mostrar que têm dinheiro para isso.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Quando comecei a escrever, achava que os textos já nasciam prontos, já em sua versão definitiva. Eu lia “O Primo Basílio”, e achava que o Eça ia escrevendo à medida que eu ia avançando na leitura.
Eu me preocupava tanto com a versão final já no primeiro rascunho, que os trabalhos que eu começava simplesmente não terminavam. Aprendi que o tesão esteja mais em reescrever seus rascunhos do que propriamente escrever; aprendi também que o conteúdo vem antes, a forma vem depois.
Ok, quando você escreve, a forma muitas das vezes já vem surgindo, intuitivamente. Isso acontece comigo. Mas acho que num primeiro tratamento, você tem que dizer aquilo a que se propõe. Depois vem o processo de aparar as arestas, consertar as falhas internas, tornar o texto mais fluido, mais claro, mais consistente. Fazer realmente essa tal literatura. Cortar, cortar, cortar.
Eu diria isso para mim mesmo no passado: primeiro, o conteúdo; depois a forma. Não coloque o carro à frente dos bois.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de começar um romance. Tenho ele na cabeça, basicamente completo, desde o ensino médio. Os personagens, o dilema do personagem principal. O começo, o fim. Várias cenas, vários diálogos, vários momentos. Mas só tenho umas dez páginas escritas toscamente, nem saíram da feição de apontamentos aleatórios. Mas acredito que, para começar esse projeto, preciso adquirir experiência, escrever mais, ler mais, pesquisar mais, observar mais —viver mais. Ele trata de temas delicados, tenta refletir a nossa sociedade. É quase um esforço de interpretação do nosso país. É um projeto de grande envergadura, que exigirá tempo e energia que hoje infelizmente não tenho.
O livro que gostaria de ler e que ainda não existe? Um estudo sério e de farta bibliografia sobre a nossa “cultura bagaceira”, os sucessos popularescos, essa coisa toda. Precisamos estudar o povão. É lá que pulsa a alma nacional.