Fernanda Teixeira Ribeiro é neurocientista, editora e escritora, mestre e doutoranda em Neurociências do Desenvolvimento na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Com um café puro. Se não tenho compromisso pela manhã, começo lavando a louça e arrumando a casa pra ir me ambientando. Sou muito vulnerável a me dispersar, então raramente ligo a televisão e busco parcimônia com as redes sociais. Ainda de manhã sento diante da escrivaninha, que uso só para escrever, e trabalho no que for mais urgente: preparação de aula, projeto de pesquisa, reportagem ou artigo científico. Dou uma pausa e mais para a noite, viro a chavinha: trabalho com escrita de ficção. Eu costumo flutuar entre períodos de maior rendimento na produção de ciência dura e de dedicação exclusiva à literatura. Não acham que são aptidões que se excluem nem que obrigatoriamente devam conversar, mas com certeza uma se alimenta da outra. Essa costuma ser minha rotina quando estou escrevendo, muda apenas nos períodos bem definidos em que estou desenvolvendo pesquisa no laboratório.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Depende. Se o trabalho é analisar dados brutos e fazer pesquisa teórica para fundamentar hipóteses, rendo melhor pela manhã, quando o cérebro está “zerado” depois de dormir. Ao contrário da maioria dos meus colegas cientistas, acredito, minha parte preferida é escrever a discussão da tese, relacionar meus achados e hipóteses com o que já foi publicado, tentar levantar algo novo. Geralmente começo a escrever, seja tese ou artigo pelos resultados. Escrevo meus resultados com todo cuidado, demorando muito nessa parte – quem trabalha com as ciências duras sabe o quanto é exaustivo descrever um resultado. Você o faz dezenas de vezes (não é exagero), seja porque precisou mudar o método de análise estatística, seja porque não está claro o bastante. Assim, meu “ritual” é rever meus dados todas as vezes em que abro a tese. Mas depois que essa parte está bem fechada – e demora meses -, eu posso dizer que eu já tenho uns 60% de caminho andado. A discussão, como eu já mencionei, fica mais natural na medida em que o resultado está robusto e bem assimilado. Aí fica um trabalho mais fluido de buscar nas bases de dados trabalhos que dialogam com o meu. Essa parte é muito gratificante. Como eu disse, eu trabalho de forma invertida: começo pelos resultados e a discussão, o método, termino com a introdução. Parece bobo, mas vejo muita gente se perder porque esquece do objetivo da própria tese, não consegue estabelecer uma conversa entre hipótese e os resultados que tem nas mãos. Acho um encanto trabalhar com dados concretos – muitas vezes você encontra o oposto do que teorizava e é desafiado a buscar entender.
Agora, quando trabalho com escrita de ficção, funciono de forma diferente. Trabalho muito melhor à noite e de madrugada e demoro semanas num capítulo, às vezes pensando, não escrevendo. Estruturo meus capítulos em torno de uma cena central, aí vou enriquecendo o texto e melhorando a cada nova leitura. É um processo muito demorado e não me pressiono a terminar o romance. Às vezes eu faço comparações entre escrita científica e literatura: ambas têm necessariamente de dialogar com o que já existe. Tanto ciência como literatura conversam com a bagagem humana de conhecimento já acumulada, o que é produzido de novo parte do pensamento (e sentimento) articulado por gerações e no tempo presente. Uma hipótese científica, aquele impulso inicial, tem sua dose de observação e sensibilidade, claro – mas não se desenvolve sem leitura, releitura e estudo. E a literatura não é assim?
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Seja literatura ou ciência, escrevo totalmente em períodos concentrados. Sou dispersa, lenta e desorganizada 70% do tempo. Mas nos 30% em que consigo direcionar a atenção e a motivação é por horas a fio. Nesse caso, sou capaz de ficar muito tempo sem comer nem dormir e, quando paro, é para logo retomar no dia seguinte. Tenho consciência que não é o comportamento mais saudável, mas assim tem sido. Enfim, fico bem focada por alguns dias seguidos, escrevo muito e depois me afasto por um período longo. Depois retorno para editar. Nos meus textos literários, corto muito do que escrevi na primeira versão. Reescrevo, muitas vezes, percebo a melhora claramente. Estou trabalhando num mesmo romance desde 2015, alternando criação, pausas longas e edição. Prazos externos com certeza me dão um empurrão para trabalhar na área de ciência, mas definir metas individuais de escrita literária não funciona pra mim. As pessoas estranham, eu mesma estranhei, essa minha alternância entre áreas distintas. Mas na realidade isso é até bem comum, só que não atentamos para isso – minha geração foi educada a se autodeclarar, desde cedo, como uma pessoa de humanas, ou biológicas ou exatas. A gente acredita que o conhecimento é compartimentado e, ainda, que para se especializar de verdade é preciso mergulhar na especificidade. Mas olhe para o passado, veja se era assim – um exemplo muito óbvio são os artistas e cientistas renascentistas. É claro que temos um volume absurdo de informação hoje, mas meu ponto é que acho bem discutível isso de áreas que não conversam. Aí como neurocientista (e tem um volume enorme de pesquisa que aponta para isso) eu afirmo que somos muitos mais que acumuladores de conhecimento específico – nosso cérebro se adapta e recria conexões em resposta a experiências novas. Aprendemos com experiência, o tempo todo e as mais diversas: são como linhas de um novelo enorme, dependendo de como elas se entrecruzam podem sair ideias originais, extraordinárias. Ou seja, a parte de mim que disseca cérebros de animais em laboratório conversa com a parte de mim que disseca palavras.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O que chamamos de “procrastinação” pode ser o tempo necessário para formar o nosso novelo de ideias. Insight é real, é uma ideia que parece súbita, mas na verdade é o encaixe das linhas do novelo, coisa de muito tempo, pensamento, vida vivida, vontade acumulada, eu diria. Às vezes acontece numa conversa com um amigo, numa caminhada na natureza – te afirmo como neurocientista: você afrouxa as linhas, elas se reacomodam. Aí vem a ideia, o impulso: busco aproveitá-lo o máximo, por isso, como respondi na questão anterior, me dedico por muitos dias seguidos, aproveitando esse primeiro movimento. É a inspiração, a meu ver. Mas claro que não estou falando de uma escrita impulsiva e automática, de jeito nenhum. Vou escrevendo bem lentamente, trabalhando de fato. Dias a fio de escrita podem resultar em um capítulo, apenas. Mas confesso que afrouxo na autocrítica nessa parte, acho necessário. Vou atuar meu senso crítico, o lado editora, revisora, leitora de mim mesma na edição, que ocorre depois de um tempo. Considero essa etapa mais técnica, mas também criativa (reformo parágrafos, desenvolvo melhor um personagem, corto muito. Corto muito mesmo). Eu conscientemente procuro direcionar a autocrítica e ansiedade para essa etapa. O medo é necessário, sim, para ajudar a extrair o melhor de nós mesmos – a crítica ajuda a distinguir inspiração de automatismo, lugares-comuns. Tomo cuidado ao falar de inspiração, essa força que, de acordo com o senso comum, brota do inconsciente. Na verdade, inspiração, intuição, que seja, precisa de filtro. Escrever é botar ordem no novelo de ideias. Isso leva tempo, ao menos para fazer bem feito. Não fico mais ansiosa. Estou há quatro anos trabalhando num romance e é assim que está sendo. Meu artigo científico mais recente, formulado para uma revista de bom fator de impacto, demorou 3 semanas no processo de escrita (que por sua vez foi baseado em dois anos de pesquisa) e demorou mais de 6 meses em edição, com a colaboração essencial da minha orientadora. Entender que toda contribuição original leva tempo para acontecer é essencial para não desistir. Às vezes as metas podem ter efeito contrário, criar ansiedade, porque tendemos a ser pouco realistas – a vida obriga a interromper às vezes, o desânimo vem mesmo, e tudo bem. Mas são períodos. Quando assimilei que interromper é diferente de parar, melhorou muito minha cobrança com a escrita e a produtividade melhorou.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso dezenas de vezes, tanto texto científico como literário. Mostro apenas quando já considero perto de finalizado e, com a experiência, fui aprendendo para quem mostrar. Busco pedir leitura crítica de pessoas que considero minha “família literária” (ouvi esse termo numa oficina de escrita e achei perfeito): autores com similaridades de referência, afinidades textuais. É como se fossem o público para o qual escrevo, mas apto para fazer críticas mais refinadas. Nós nos lemos e nos ajudamos. Nesse sentido, frequentar oficina de escrita (como o Clipe da Casa das Rosas) foi essencial, fui achando meus pares. E aprendi também a desenvolver um cuidado mínimo de não mostrar primeiras versões, elas raramente estão robustas para uma leitura crítica. Acho que muita gente desanima porque é “gongado” em suas primeiras versões, ou pior, infla o ego porque agradou de primeira – mas, digo por experiência própria, isso raramente se repete (rs).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No computador, sempre. Costumo anotar à mão apenas ideias pontuais, quando não tenho computador disponível. Acho que a tecnologia traz a facilidade de reescrever, editar de forma “limpinha”. Possibilita também usar recursos como dicionários on-line e contadores de palavras, e melhor, identificadores de cacoetes de linguagem. O problema é a dispersão, claro, as redes a um clique. O cérebro faz isso quando sente pressão: busca se aliviar com recompensas bobas, como rolar o feed das redes sociais. É automático – o texto está desafiando, é longo, muito trabalho, por que não se distrair um pouquinho? E esse pouquinho vira horas. Como já mencionei, sou muito dispersa, tento me disciplinar não entrando nas redes sociais quando estou escrevendo – mesmo pesquisas pontuais, deixo pra fazer depois que desenvolvo o texto. Às vezes você vai pesquisar um lugar ou significado de um nome e termina gastando duas horas numa sequência aleatória de cliques em hiperlinks. A escrita é um desafio ao automatismo, em todos os sentidos: escrever às carreiras raramente é inspiração, é informação acumulada (e pouco original). A lei fundamental do cérebro é poupar esforço. É desafio escrever no mundo de hoje porque o ócio não é mais uma realidade em tempos de Instagram e Netflix. É muita disciplina trabalhar com a mesma ferramenta que proporciona tanta dispersão de tempo, tento manter em mente que a escrita é sempre uma escolha consciente, um direcionamento voluntário das funções cognitivas. Isso literalmente desagrada o cérebro: do ponto de vista da evolução, é pouco adaptativo direcionar tanta energia para uma tarefa de longo prazo, sem certeza de uma grande recompensa. Aí entra o intangível, a tal motivação para escrever e se realizar no processo em si. O prazer que trespassa o desprazer (rs).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
É muito boa essa pergunta, porque não racionalizei isso antes. Presto atenção nas palavras que as pessoas usam, nas entonações, no não dito entre o dito. Meu processo de pensar um texto sempre parte de uma palavra sensorial – vermelho, agridoce, por exemplo, são palavras-embrião de textos recentes meus. Elas aparecem como qualquer outra no texto, na costura, mas foi a partir delas que tudo surgiu. Vermelho originou um texto sobre a rivalidade entre irmãs; agridoce, sobre sentimentos ambíguos da maternidade. Às vezes acontece “vir” a palavra exata num texto. Parece automático, mas só acontece quando estou desenvolvendo uma linha de pensamento, depois de tropeçar muito. Mas é tão certeira a palavra, que tem força própria. É uma sensação única, leva páginas e páginas para acontecer, mas creio que é minha maior motivação para escrever. Então, eu digo que um hábito fundamental para manter minha criatividade é continuar escrevendo, mesmo sem querer, mesmo achando ruim. A ideia vem noesforço. A máxima popular 10% inspiração, 90% transpiração, é evidência neurocientífica (tratei sobre na questão anterior). As primeiras versões são como folhas secas, eu preciso varrer pra chegar na terra fértil. Assimilar isso foi fundamental para que eu persista e não sofra tanto no processo. Um professor de oficina de escrita dizia de um jeito poético que as palavras ficam com pena de quem as busca e às vezes dão uma esmola.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Desenvolvi um cuidado com a palavra e uma crença absoluta na força da palavra. Antes escrevia de forma mais “natural”, ou seja, automática. Cheguei a me frustrar porque as palavras deixaram de vir com tanta facilidade, mas isso ocorre porque agora tenho mais repertório, mais crítica, mais o que dizer. Eu diria que é difícil, incerto e demanda esforço, como tudo que é importante na vida. Que a satisfação está em seguir o caminho, não em chegar a algum lugar. Eu pararia de me torturar com a ideia superficial de que é muito trabalho para pouca ou nenhuma recompensa, porque somos treinados desde sempre a fazer nossas escolhas em função de estabilidade, dinheiro, reconhecimento. Em escrita nada disso conta, a chance de não ter nada disso é muito grande. É uma gratificação que não passa pelas coisas do mundo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O que mais quero é vivenciar e concluir sem pressa o projeto do romance que estou desenvolvendo há quatro anos, ambientado no interior de Minas, onde nasci e cresci. Bebe muito da história da minha família. Já fiquei nervosa, agoniada, agora não tenho mais pressa nenhuma. Meu compromisso, pro bem e pro mal, é só comigo mesma. Vou escrevendo, reescrevendo, editando, dando pausas longas. Intercalo com a minha produção científica, que me satisfaz muito.
Um livro que eu gostaria de ler: queria que aparecesse uma Jane Austen contemporânea, uma autora que fizesse uma literatura afiada de costumes, com protagonistas mulheres, nesse mundo nosso da velocidade e da liquidez. Uma autora capaz de contar o espírito do nosso tempo com personagens muito bem construídos e narrativas sobre o cotidiano.