Fernanda Spinelli é poeta, professora e psicóloga, autora de “Síntese de Passageiro” (2020).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Por conta de compromissos profissionais envolvendo instâncias externas, minhas manhãs (e horários de acordar) variam de acordo com o dia da semana. Não há um padrão fixo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Apesar de já ter escrito poemas pela manhã, tendo a criar ao cair do dia e de noite – é quando me sinto mais desperta e vital e quando a inspiração costuma bater. Não tenho um ritual de preparação, mas, quando era mais jovem eu curtia criar um certo clima no ambiente, conforme sentia a inspiração bater à porta. Costumo ser meio “desligada” dos ambientes físicos onde estou, então desde que o meu smartphone, tablet ou computador estejam disponíveis, ok. Prefiro criar quando não há a possibilidade de ser interrompida e gosto de escrever enquanto ouço alguma música que esteja na linha do fluxo vibracional do poema que estou a criar. A música acaba se integrando no processo de escrita como um elemento químico catalisador.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tendo a escrever em períodos concentrados. Há fases de bastante produção. São fases mais marcadas pela inspiração. Há outros períodos em que sinto que apenas tenho que viver outras coisas da vida, deixar fluir as vivências que vão fomentar novas questões para futuras elaborações e sínteses poéticas futuras. Sinto que escrever todos os dias, por exemplo, seria algo arbitrário à natureza desse meu fluxo e processo. Não tenho metas diárias. Minhas metas são anuais.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sobre pesquisa, não faço pesquisa prévia – nunca sei de antemão “o que” vou escrever, ou qual será o tema. Geralmente o poema novo “avisa” que está chegando, pede passagem. Caso eu não esteja disponível em tal momento, tomo nota ao menos de alguma frase ou jogo de palavra que brotou em mim, quando é possível anotar. Quando estou disponível, entrego-me ao processo que costuma ser denso, muito intenso mentalmente e emocionalmente; tem vezes que é quase um “transe”, que hiperboliza e desenha com luzes neons alguma “figura” em mim, como luzes ativadas em um painel. Geralmente fico exausta após escrever um poema, talvez devido ao teor de intensidade do meu engajamento global no processo. Tenho a sensação de que quando escrevo um poema, o meu centro mental e o meu centro emocional ficam hiperativados e minha consciência é levemente rebaixada, e enquanto os elementos pipocam os articulo com total atenção, intensidade e velocidade, dando forma com as mãos à lava de um vulcão em erupção… me queimando e sendo alterada no processo. É um misto de júbilo e derretimento de algo em mim. Talvez parte desse “algo” seja a questão pessoal que está sendo tratada e transformada enquanto crio. É assim que me sinto. Se eu fizesse isso todos os dias, provavelmente eu teria evaporado da face da Terra no meio dessa química – seria humanamente insustentável.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Talvez devido ao fato de o meu gênero literário ser a poesia, a procrastinação não é algo que ocorra da forma clássica, pois, primeiro de tudo, um poema em si é uma curta síntese, é algo marcado pela brevidade… geralmente não demanda continuidade, dentro do modo como produzo. Também há o fato de que não escrevo para atender demandas externas, mas internas. Muito antes de ser uma forma de comunicação, o meu “escrever” é um ato de manifestação de algo que pede pra passar através de mim e que toma a tecitura e o contorno da minha subjetividade em um dado momento. Sobre “medo de não corresponder”, sinceramente isso não passa pela minha cabeça. Apenas crio de modo autêntico e visceral, em um formato que me agrada. Enquanto eu estiver agradando a mim mesma, automaticamente alguma parcela dos leitores também será agradada e… nos mereceremos. (risos)
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Alguns poemas reviso bastante; a maioria pouco reviso. Temo alterá-los ao ponto de eles perderem a essência do que precisava sair de mim no momento que os escrevi. Sai como um ‘ploc’ *efeito sonoro* o que tem que sair, da forma como tem que sair. Não gosto de interferir demais em uma síntese passada, prefiro partir para a próxima, pois o tempo interno e externo já são outros. É uma visão meio mística e fatalista da coisa, mas um poema pra mim, enquanto criadora, é de certo modo como um sonho que se tem a noite: você simplesmente o aceita do jeito que vem ao mundo e fica com aquela imagem, aquela gestaltreverberando em você, afetando e, com sorte, transformando. Não sou assim o tempo todo na minha vida, afinal sou produto do mundo ocidental, mas na minha arte sou assim sempre.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A minha relação com a tecnologia é de total exclusividade e alguma dependência *risos*. É raríssimo eu escrever em papel. Mesmo estando na rua, somente na eventualidade de a bateria do meu smartphone haver terminado acabo arranjando algum pedaço de papel e caneta onde eu estiver. Na hora de escrever, o computador também me ajuda a articular, alocar e realocar os versos e palavras dentro do poema de forma muito veloz, eficiente e esteticamente limpa, sem precisar recorrer a desenhar setinhas, riscos e sinais do tipo. Também digito mais rapidamente do que escrevo à mão e isso cai como luva no processo mental que rola de forma muito frenética e acelerada quando crio um poema.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias na escrita vêm de um “mix” de resquícios emocionais das experiências pelas quais passo, da imaginação e da necessidade pessoal de gerar uma síntese para questões sobre as quais preciso atingir uma elaboração simbólica mais efetiva e abrangente em um dado momento. Não tenho hábitos para me manter criativa. Desde pequena há algum “bicho”, ou “força”, dentro de mim que me leva a criar, seja lá o que eu estiver fazendo, inclusive criar coisas inúteis que apenas servem para entretenimento próprio. Às vezes este “criar” pede passagem através da escrita, outras vezes através de outras avenidas, não necessariamente “formalmente artísticas” – podem ser cotidianas, como inventar alguma mistura improvável e absurda na cozinha, ou pronunciar uma velha palavra de um jeito “y” por brincadeira – gerar humor é algo muito importante pra mim. A arte e o humor são as mais sublimes redenções.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Creio que o meu processo de escrita poética não mudou ao longo dos anos. Foi sempre a espécie de transe que descrevi, com contornos similares – um processo muito intuitivo e fluido. Sobre a segunda pergunta, se eu pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos, o que eu diria a mim mesma? Eu não diria nada… daria apenas um beijinho na minha testa.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O futuro dirá. Isso não é o nome de um livro, mas a minha resposta mesmo… Ou seria a minha resposta o nome de um livro? Mistérios… (risos)