Fernanda Ribeiro Marra é escritora, doutoranda em teoria literária pela UnB e mãe do João.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O dia começa às cinco da matina durante toda semana, exceto sábado e domingo: banho, café e rua. Entro no trabalho às sete, depois de geralmente deixar o menino na escola. Tenho uma jornada de oito horas diárias no trabalho ficando assim a maior parte do meu dia é dedicada ao serviço público. Do tempo que me resta para deixar algum rastro no mundo, equaciono entre família, trânsito e um pouco só-comigo. Então, sim, tenho uma rotina, mas que não é propriamente uma rotina de trabalho com a escrita. Diria que tenho uma rotina que me afasta da escrita e contra a qual travo um embate diário pelo caos, pela língua que teima e se esgueira nas nervuras da banalidade monótona e enclausurante da rotina.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pelo que me lembro de quando tinha esse desfrute de poder escolher um horário para escrever, preferia a manhã. Não sei se o descanso da noite faz com que as ideias se levantem mais inteiriças e organizadas, coisa que não acontece depois da volta do dia. Sinto que a correria, o atropelo dos afazeres, as miudezas roubam o tempo e atravessam o fluxo do pensamento ferindo a cadeia da imaginação… O que, por outro lado, também pode ser bom, pode fazer com que uma imagem se assome, uma ideia tome corpo, um elo se defina. Na maior parte das vezes, é só corte mesmo, interrupção que faz perder o fio da meada. Acho, porém, que venho aprendendo a me haver com isso e a entender o corte como uma latência, uma pausa para a mente trabalhar sem que eu esteja necessariamente mexendo o doce. Creio que, ao entender assim, retomo o trabalho interrompido com mais fôlego… e critério talvez: os resíduos se decantam, dou espaço para reduções inserindo no próprio processo de escrita um processo que é de revisão e que apura do texto. As formas precisam disso.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta de escrita diária e não me imponho a obrigação de escrever todos os dias. Já houve períodos de tentar estabelecer a escrita de “um poema por dia”, motivada por um tuíte da Angélica (Freitas). Depois, encontrei algo muito semelhante a essa meta nos escritos de Alejandra Pizarnik, cujos diários e poemas estudo no doutorado em Teoria Literária: “El haber dejado de mantener mi cahiedr vertcon fragmentos de poemas ha contribuido a mi alejamiento del poema. Es preciso, cuanto antes, reiniciar outro con el mismo procedimeiento: un poema por día […]”. Como todo método, funcionou por um tempo comigo… Acontece que esse tipo de obstinação não combina muito com o que faço da escrita, nem com o que ela me faz. Minha escrita se instaura no meio dos dias como um espaço de absoluta liberdade (ou quase). É um céu quente azul e aberto entre paredes frias, um modo de respirar, de existir e rexistir ao alheamento, que me aparta de mim. Por isso, sinto que se começar a estabelecer muita norma, muito horário fixo, muito jeito de fazer acontecer parece que corro o risco de simplesmente travar e fazer desaparecer esse gosto de céu que a palavra tem para mim. Tudo o que quero é que fluam, concatenem-se ao gosto do vento, para o seu lado, o lado para onde não posso ir.
Hoje isso serve tanto para a escrita de poemas, quanto para o texto acadêmico. Um dia, uma colega do trabalho quis saber o que eu pretendia com um doutorado em literatura. Disse que queria entender por que eu havia “inventado” essa pesquisa se ela não tinha/tem nenhum efeito imediato em meu trabalho público administrativo, nem em meu vencimento. Respondi de um jeito inesperado, inclusive para mim, que era “por diversão”. Depois fiquei pensando – não na pergunta, afinal, não foi a primeira nem a última vez que me deparei com esse tipo de questionamento – mas na resposta imediata e quase chistosa que me escapou naquele instante. Pensei que podia ter soado pretensiosa, embora dissesse a verdade. É que, a despeito de toda a lenga-lenga que significa lidar com o universo acadêmico e da complexidade de uma pesquisa, o doutorado foi, e continua sendo para mim, essa fonte de alegria e esse lastro, ainda que frágil e efêmero, com uma profissão que, em razão das contingências e das escolhas da vida, não tive chance de exercer.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como já comentei sobre minha rotina, nem sempre tenho tempo suficiente de tomar notas e sistematizar meu pensamento antes de passar ao texto. Prefiro entender que a escolha de minhas leituras e que as leituras em si são já o texto, que a escrita começa com o espaçamento inventado entre o fora e o dentro, no intercâmbio entre esses espaços feito com a linguagem, pela linguagem, na linguagem.
O processo é caótico mesmo, elaboro enquanto escrevo e reescrevo, e sinto que a língua não me serve na medida mesma em que a tomo como único e precioso recurso. Toda escrita é para mim um ato de pensar, um enlarguecimento do corpo e seus vazados. Essa postura dificulta ou mesmo me impede a escrita de textos em que não possa me implicar diretamente. A escrita, seja literária ou acadêmica (distinguem-se?), é sempre uma implicação, um modo de pensar, de me esburacar e de me colocar em questão. Nesse sentido, ela é a própria pesquisa.
Começo a escrever muito antes de pegar a caneta e o papel, ou de me sentar diante do computador. Começo a escrever, tantas vezes, pela leitura dos textos que faço, pelos meus sentidos, pelo corpo e a maneira como ele apara o exterior. Acho que a escrita é isso, esse acontecimento de corpo: ao mesmo tempo em que pesquiso sobre a escrita-vida de Alejandra Pizarnik, estou escrevendo meu próprio rastro, minha própria perspectiva que se aproxima e se afasta da dela em um movimento íntimo e revelador de nossas singularidades.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não lido. (risos) Na verdade, procuro não estancar aí. Se começa a ficar difícil, tento não entrar em um embate com o texto. É claro que às vezes temos prazos a cumprir e o texto precisa sair de qualquer maneira, mas acho que evito um pouco essa armadilha de chegar aos dead linesde mãos abanando. Adianto o quanto posso o trabalho quando sinto que o fluxo é favorável, vou derramando as ideias de qualquer jeito, deixo jorrar mesmo que não veja muito sentido e sem me preocupar demais com a forma. Depois, quando retomo para moldar aquele amontoado de linhas e achar lugar para o que pensei, geralmente me surpreendo com o rendimento, isto é, com fato de ter escrito mais do que pensava que fosse possível. Bem, estou me referindo basicamente à procrastinação, acho que ela acontece mais na fase final, na adaptação da escrita às formalidades do discurso acadêmico, normas da ABNT, por exemplo. Agora, há coisas que não são simples mesmo de lidar: ansiedade e medo de não corresponder a expectativas me parecem questões para a escrita e além, parafraseando um astronauta amigo do meu filho. Para isso existem as amigas, o vinho, o divã da minha analista, a própria escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como disse, entendo a revisão como parte do processo da escrita, porém, não tenho definida a quantidade de vezes em que isso deve acontecer. Sou incapaz de escrever um texto e não reler, não mexer antes de apresentá-lo a quem quer que seja, até porque, considerar a escrita como um modo de pensamento significa também entender que o pensamento (pelo menos o meu), não surge pronto e acabado. Sempre que penso na forma do meu pensamento vejo um novelo, não um novelo novo, mas que tenha sido encontrado por um gato. Escrever é tomar a meada da pata do bichano e querer achar o fio: tem algo de divertido e árduo, como em todo bom trabalho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
O texto acadêmico depende, às vezes, escrevo à mão e passo para o computador; outras, escrevo direto no computador. Há sistematicamente uma retomada, uma reescrita do texto, mas tenho mais facilidade para escrever diretamente no computador os textos, digamos, mais prosaicos.
Já os poemas, acho que nunca escrevi direto no computador. Tenho uma caderneta que aprendi a carregar na bolsa para anotar as primeiras palavras, ideias, imagens, surtos, significantes que emergem. Já aconteceu de pintar um poema inteiro, assim, de uma única sentada, mas é raro. Com os poemas, o que geralmente acontece é esse ímpeto inicial, um mote que vem e atravessa. Aí costumo brincar com os suportes: às vezes, escrevo à mão e passo a limpo várias vezes no caderno até chegar perto de um formato que me agrade, depois passo para o celular, ou faço um rascunho de email especificando um título no assunto para depois jogar em um arquivo do computador e/ou publicar no facebook. A cada mudança de suporte são indizíveis reescritas e, por vezes, o poema final não tem nada a ver com a primeira versão. Por vezes, ele até se desdobra em outros, mas também ocorre de não virar nada e no interstício das decantações ser considerado péssimo e deletado. Ah, sim, acontece também de escrever direto no celular sem passar pelo papel.
Pizarnik tinha uma coisa de recortar palavras e sobrepô-las ao poema original. Acho tão interessante! Ela fazia uma espécie de quebra-cabeça com o poema, experimentava palavras em seus versos como quem veste uma roupa para ver o caimento… É uma imagem dela que me acompanha: a mulher descabelada sobre a cama de um quarto frio parisino, com uma barra de chocolate, um copo de vinho e muitos cigarros recortando palavras e sobrepondo-as ao papel datilografado. Já cheguei a pensar em copiar o método e abortei todas as ensaiadas… Enfim, é uma coisa tão dela, faz parte de sua escrita, sua pegada. Depois, tenho certo receio das identificações. Cada qual que se vire com o tempo e os suportes de que dispõe…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Se fosse definir um lugar de onde brotam minhas ideias, diria que vêm do meu corpo. Explico: é que antes de convocar as palavras, a intenção de me manifestar sobre algo foi o fato de esse algo ter me marcado o corpo despertando em mim a sensação física de alguma memória, ou tocado minhas feridas. Escrever é pensar sobre o que me faz reagir com palavras, sobre o que me faz evocar esse recurso para responder com uma marca ao que me marcou.
Acho que meu hábito é a manutenção de um caderninho. Demorei entender e me permitir comprar cadernos para carregar na bolsa. Não sei por que… Ou sei, achava que era um gasto que não deveria ter com minha escrita, que minha escrita, no fundo, era um lixo para a caderneta que era um luxo. Então, ficava anotando nos retalhos, no celular, nos rascunhos e perdendo tudo. Um dia, percebendo uma necessidade de escrita do meu filho, comprei para ele – e acabei me rendendo e comprando também para mim – uma linda caderneta vermelha de capa dura, que nunca havia me autorizado a ter. Desde então, nunca deixo de portar uma dessas na bolsa, quando vão terminando, adquiro outra para que não me falte o espaço das palavras. Uma coisa simples que me faz um bem horrível! E me trouxe a oportunidade de rever esse olhar detrator para minhas palavras.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que me diria (mesmo sabendo que não adiantaria nada): não publique ainda, querida, apure-os, apure-se.
Isso porque tive uma publicação independente e precipitada aos 14 anos de poemas escritos desde os 12, algo que me custou muitos anos sem escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não faço ideia de qual livro gostaria de ler que não tenha sido escrito. Há tantos já escritos que quero ler…
Quanto ao projeto, estou para publicar pela martelo casa editorial um livro de poemas intitulado “taipografia” e há outro, para sair um pouco mais adiante, que também já tem título, mas prefiro não dizer ainda. Ambos estão concebidos como livros. Digamos que têm temáticas que os permeiam, que se repartem em partes e que o processo de compô-los com poemas que escrevi sem nunca ter parado para pensar na composição de uma obra tem sido uma outra camada da escrita. Ver os poemas escritos em um determinado período tomando um corpo maior, alinhá-los em uma estrutura que os abriga é algo muito inédito e que tem me dado muito prazer. Por outro lado, é também um trabalho que me convida a outra experiência, a de pensar no caminho inverso de como seria escrever poemas a partir da concepção, de uma proposta de livro. Sinto nascer esse desejo agora. Depois de tudo que confessei sobre o processo caótico de minha escrita, nem seria preciso expor que esse projeto seria um grande desafio. Porém, é o que começa a se desenhar em meu horizonte. Não sei se levo adiante, mas é algo que me soa como um experimento intrigante que vou acolhendo como um chamado, um convite.