Fernanda Miranda é doutoranda em Letras pela USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia bem cedo, antes das cinco da manhã já tem cheirinho de café na minha casa. Quando o sol nasce já estou escrevendo, lendo, ou desenrolando o propósito do dia. Nem sempre foi assim, passei a graduação e o mestrado nas produções madrugueiras e as madrugadas sempre foram férteis para mim: começava a estudar a noite e ia seguindo lua afora, mas precisei mudar isso porque me tornei mãe. Eu acordo bem cedo para que tenhamos um equilíbrio, do qual não abro mão. Meu filho tem cinco anos e estuda de manhã, então quando ele chega em casa eu já fiz o meu horário de trabalho e normalmente passo as tardes mais focada nele. Sei que nem sempre poderei manter isso, pois os compromissos crescem junto com ele, mas por enquanto é a equação mais próxima que consigo enquanto mãe pesquisadora.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como toda virginiana, sou uma pessoa bem íntima do caos, então eu não tenho muitas regras fixas para quase nada, tudo vai depender do dia e do momento. Mas há alguns elementos que nunca faltam: o café, velho companheiro, é meu primeiro ato cotidiano. É de hábito também manter uma planta sobre a mesa em que escrevo, é a ela que geralmente meu olhar recorre quando algo escapa e preciso me concentrar para lembrar o que fugiu do pensamento, as plantas são companheiras fundamentais para mim, nunca permitem que eu esqueça que tudo é processo, que partes caem e morrem para nascer outras, que é preciso alimentar aquilo que queremos que cresça. Penso ser a metáfora exata para o ato de escrever. Eu escrevo caudalosamente e preciso depois voltar e ir podando, cortando, mudando de vaso: é preciso não sofrer com isso, lição que aprendi com as plantas. Além da presença verde, a música também me acolhe quando escrevo (música instrumental, porque se houver letra me dispersa). Escuto John Coltrane como quem dá um passo depois do outro, faz parte das coisas naturais, há outros, mas Coltrane é o mais presente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A escrita acadêmica é muito pautada em rigor de prazos, por isso, infelizmente, nem sempre é possível ficar no próprio ritmo…. sofri muito com essa questão no meu mestrado, foi tão difícil conseguir maturar a escrita durante os dois anos de tempo que depois que defendi eu praticamente reescrevi a dissertação, tamanho meu descontentamento com o resultado “final”. Durante o doutorado trilhei esse caminho espinhoso com mais leveza, hoje eu já consigo me organizar melhor com este cotidiano, embora eu tenha escrito (fora a tese) bem menos do que gostaria. Não me apetece muito esperar inspiração ou algo que o valha, acredito mais na insistência e na rotina. Acho que entender o próprio ritmo é um grande aprendizado, pois não existe uma fórmula em que todos iremos caber, embora a academia goste de repetir isso. No meu caso pessoal (contrariando o que sempre me disseram em termos de disciplina) é mais produtivo ser um pouco bagunceira, por isso eu dificilmente consigo fazer apenas uma coisa só: gosto de trabalhar em mais de um projeto simultaneamente, descanso de um enquanto penso em outro, caminhos encruzilhados são zonas de conforto para mim. É um processo muito particular e um tanto confuso, mas é o que melhor funciona comigo. Eu não estabeleço metas porque costumo desobedecê-las e acabo ficando frustrada, mas me organizo em torno dos prazos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu escrevo reescrevendo, estudo escrevendo, pesquiso escrevendo, leio escrevendo, penso escrevendo, já até namorei por cartas rs, eu escrevo desde que aprendi a escrever. Gosto de abrir pastas na nuvem para cada texto, se é um artigo, por exemplo, haverá nessa pasta um arquivo chamado “tal” e uns sete arquivos chamados “excertos do texto tal”, “versão alfa”, “versão Queen B”, “versão latrina”, etc., pois eu mudo muito os textos antes de considerar que está pronto, mas não deleto nada. Muitas vezes volto a estes arquivos e consigo garimpar alguma pedrinha brilhante para lapidar em outro texto, mas na maioria das vezes são apenas rastros que ficam do processo, rastros que eu nunca apago.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Essa questão da trava é muito difícil para mim. Eu lido bem melhor com a procrastinação do que com as expectativas, porque quando percebo que não está fluindo já largo logo e vou fazer outra coisa. Aprendi com o tempo que há dias que simplesmente não te dão caminho pra caminhar, tem que ficar parada e pronto. Não me culpo mais como antigamente, aceito e vou ver séries, fazer brigadeiro, mexer com as plantas que temos em casa, hidratar o cabelo…. antes eu achava que tinha que insistir até algo surgir, mas isso é autotortura, me libertei. Por outro lado, essa questão de corresponder às expectativas é um jeito ruim de sofrer alfinete a alfinete, um sofrer fino, gelado e renitente. Eu sou demasiadamente autocrítica com meus textos, é muitíssimo raro achar que está bom sem precisar fazer um esforço mental para isso, tendo a acreditar que quem lê também vai partir do mesmo ponto que eu e precisei aprender a aceitar que elogios podem ser realmente verdadeiros. Esse processo foi se tornando um pouco mais ameno nos últimos tempos, mas ainda não o suficiente para deixar de ser uma questão.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso umas três vezes, mas dificilmente mostro para alguém antes de considerar que está pronto e acabado. Isso tem a ver com a resposta anterior: expectativas e autocrítica. Fico ansiosa se mostro, então prefiro botar no mundo logo. Trata-se de um grande problema, evidentemente. Algo que quero mudar, que preciso mudar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não escrevo à mão, escrevo direto no computador e se estou longe do computador e surge uma ideia escrevo no celular, no drive. Acho que isso torna meu processo mais prático, versátil e fluído. Eu só escrevo à mão se o texto for uma carta para o meu amor. Mas no âmbito da escrita acadêmica, profissional, escolar, enfim, invariavelmente recorro à tela.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Essa pergunta é bem difícil. As ideias vêm de muitos lugares, não caberiam num mapa único. Eu sou muito envolvida com meu tema de pesquisa, que é o mesmo desde a iniciação científica: produções literárias de autoras negras. Então muito do que escrevo nasce do que vivo, do que vejo e escuto, do que vou procurar, do que alimenta minha gana de ir à guerra, do que é meu solo semelhante. Eu trabalho com literatura, então minha própria matéria prima é criativa, é fantástica. Eu não faço muito além de tentar me aproximar dos textos que estudo, sou uma apaixonada por literatura e escrever acaba sendo uma consequência de ler. A literatura mudou minha vida e me dá oxigênio todo dia. Em si, ela me inspira.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria: respire, não se cobre tanto. O que mudou foi a segurança de saber que estou no lugar certo, que produzir conhecimento também é algo que me cabe, embora a sociedade em que vivo sistematicamente repita que não. Hoje eu me sinto confortável e tranquila no meu lugar: sou uma intelectual negra, sou estudante e professora.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu imaginei um roteiro para uma peça de teatro enquanto estava na etapa de redação da tese, imaginei diálogos entre as personagens dos romances que estudei, imaginei visitas em geografias variadas e trocas de experiências entre as protagonistas. Imaginei cenas e cenas. Não é exatamente um projeto, é mais um sonho guardado sobre o qual eu nutro um carinho imenso. Eu gostaria de ler todos os livros da escritora Carolina Maria de Jesus. Eles existem, mas não foram publicados ainda, estão em manuscritos localizados em vários lugares.