Fernanda Mellvee é escritora, tradutora literária e mestranda em Teoria, Crítica e Comparatismo na UFRGS.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Todos os dias, quando não tenho aulas presenciais (sou aluna do programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), acordo por volta das sete horas e levo a minha filha para a escola. E depois, como qualquer mãe de cinco cachorros, preciso passar um tempo cuidando e dando atenção a eles. Por volta das oito horas, ou no máximo oito e trinta, eu sento diante do computador e escrevo. Permaneço assim até às onze horas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para mim o melhor horário para ler e escrever, seja ficção ou escrita acadêmica, é sempre pela manhã. Às vezes, eu aproveito um pouco dos meus finais de tarde, principalmente quando estou tão afoita para concluir um capítulo que não consigo segurar a ansiedade até a manhã seguinte.
Os meus dias, como os dias de qualquer dona de casa, já começam bastante agitados, então preciso me desconectar de tudo o que pode me tirar a atenção, para isso, procuro um lugar silencioso, onde eu possa ouvir música, especialmente música clássica, que me ajuda muito a atingir e manter o foco na escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Procuro escrever todos os dias, mesmo quando não tenho muito tempo, quando tenho aulas, por exemplo, e preciso alterar o horário. Nos dias em que não posso escrever pela manhã, uso o final da tarde, que também é um período que costuma ser produtivo para mim e uma parte da noite. Minha meta diária, basicamente, está relacionada à minha produção do dia anterior. Na época em que escrevi Amarga Neblina (2016), romance que em 2017 foi finalista do 2º Prêmio Kindle de Literatura, e também minha primeira experiência com narrativa longa, minha meta era escrever um capítulo por dia.
É claro que estou falando de uma primeira escrita, sem revisão, nem reescrita, apenas aquela etapa em que fazemos aquele processo de traduzir para o papel tudo aquilo que se organiza por imagens na cabeça. Sendo assim, se eu terminasse a escrita de um capítulo, mas ainda tivesse disposição para seguir escrevendo, eu elaborava o esquema do próximo capítulo e, às vezes, iniciava sua escrita.
Obviamente, nem sempre estamos em ótimas condições para trabalhar. Ninguém é cem por cento imune a uma noite de insônia ou uma enxaqueca que chega sem avisar, sendo assim, procuro compensar um dia de baixa produtividade, fazendo “hora extra” no dia seguinte.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como eu já mencionei, nem todos os dias eu disponho de todo o tempo que gostaria para me dedicar exclusivamente à escrita, então, o que posso fazer para agilizar todo o processo, é me focar bastante no planejamento. Eu só começo a escrever um conto quando eu já sei exatamente como ele começa e principalmente, como ele irá terminar. Poe dizia que o conto deve ser lido numa só assentada. Para mim, o conto deve ser escrito da mesma forma, ou pelo menos sua primeira escrita.
Recentemente, participei como organizadora, junto com a Cinara Ferreira, que também é minha orientadora no mestrado, e também como revisora e autora numa antologia de contos intitulada Sem/Cem Palavras, com previsão de lançamento para agosto deste ano. A ideia desse trabalho é que todos os contos tenham um limite de cem palavras e dentro deste curto espaço, sob temática livre, o texto deve deixar o leitor sem palavras. O meu processo de escrita para todos os meus contos para esse trabalho foi igual: eu somente colocava as palavras no papel quando tinha a certeza da reação que eu queria provocar no leitor, seja ela o riso ou o susto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Paralelamente à carreira de escritora, tenho a minha vida acadêmica, cursando mestrado em Teoria literária, na linha de pesquisa Teoria, crítica e comparatismo. Então, o maior conflito que eu enfrento é o de como conseguir cumprir todos os prazos dentro e fora da academia.
Quanto ao medo de não corresponder às expectativas dos outros: é algo que não me afeta. Espero que isso não soe de forma arrogante, porque essa minha postura é a de alguém que já entendeu que não é possível agradar a todos. A ansiedade é um monstrinho que vem me visitar de vez em quando, ele chega dizendo: – Fernanda, tu tens que entregar dois artigos, um prefácio de livro, uma tradução, tens que adiantar a escrita da dissertação e todos aqueles projetos literários na gaveta… Como tu podes pensar que vais conseguir?
Então eu respondo ao monstrinho que eu vou dar conta de tudo e que não adianta ele tentar me assustar. Na manhã seguinte, eu acordo ainda mais animada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Um texto jamais está pronto. Eu acredito que chega um momento em que aparentemente não há mais nada a ser acrescentado. Isso ocorre depois da reescrita, de duas ou três revisões. Então eu mostro o texto àquelas pessoas que se mostram disponíveis, geralmente as primeiras pessoas que leem os meus textos são a Aline Pascholati e a Amanda Leonardi, também escritoras, e, principalmente, leitoras vorazes.
Conhecer a opinião dos leitores é sempre importante, ajuda quem escreve a ter mais segurança. Mas, sempre após a releitura de um texto meu já publicado, me vem aquela sensação de que poderia ter mudado algo, ou acrescentado alguma ideia. Já estou acostumada com essa sensação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia não é das melhores, confesso que a minha filha Melissa, que tem dez anos, tem muito mais intimidade com o ambiente virtual e com todas as suas ferramentas do que eu. Às vezes escrevo diretamente no Word (não são necessárias grandes habilidades para isso). Mas, quando no meio da madrugada a dona inspiração vem me visitar, eu anoto tudo em um caderno. Assim, a digitação do texto já funciona como uma reescrita.
Tenho tentado me adequar à minha época. Recentemente, publiquei A mágica que não pode acontecer, uma noveleta que por enquanto só está disponível em e-book, por uma famosa plataforma de autopublicação. Confesso que tem sido uma experiência gratificante, pois, além do formato do texto não costumar ser contemplado nos concursos que geralmente privilegiam contos e romances, a autopublicação se mostra muito eficiente para quem tem vontade de publicar, tem um público que deseja conhecer suas obras, mas sabe que as editoras tradicionais não costumam a ter a mesma pressa dos autores e dos leitores. O tempo de uma editora não é o mesmo de um autor.
Então, como na minha opinião um texto foi feito para circular, a autopublicação é uma maneira de burlar todo o processo demorado e burocrático das editoras. Sem contar que até mesmo para alguém como eu, que não tem muitas afinidades com internet, aplicativos e afins, a autopublicação possui ferramentas surpreendentemente simples.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Um dia desses, quando a minha filha me questionou sobre de onde vem a minha criatividade, que segundo ela – do alto de seus dez anos – é algo sobrenatural, respondi que tive a sorte de nascer em 1985 e crescer assistindo os clássicos da televisão na década de noventa, como Chaves e Cavaleiros do Zodíaco. Mas, na minha opinião, o que me tornou escritora foi ter crescido na periferia. Moro num lugar chamado Vila Farrapos, que faz parte de uma região de Porto Alegre onde, devido a uma pesquisa na época da graduação, acabei descobrindo que serviu como uma espécie de exílio para imigrantes europeus que tinham dificuldades de compreensão do português, como poloneses, ucranianos e algumas famílias alemãs. Dá para ter uma ideia da quantidade de histórias que andam pelas mesmas ruas que eu?
Cresci ouvindo coisas sobre o meu lugar que mais parecem ficção. Hoje penso que o fantástico sempre fez parte do meu dia-a-dia. Só o que preciso para me manter criativa é deixar os meus olhos e os meus ouvidos sempre atentos ao universo ao meu redor.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou no meu processo de escrita com certeza foi a disciplina. É através dela que eu consigo ser mais produtiva. Um dos primeiros professores de criação literária que conheci, o excelente Robertson Frizero, do qual tive a honra de ser aluna, me disse uma vez que quando estamos indispostos ou sem ideia para a escrita devemos utilizar o tempo reservado a ela para assistir a um filme ou ouvir algum tipo de música que esteja ligada de alguma forma ao tema daquilo que pretendemos escrever. Quando preciso, procuro colocar esse conselho em prática, funciona sempre.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Uma coisa que planejo escrever há séculos, mas ainda não tive coragem é autoficção. Morro de medo e vontade de tirar uns esqueletos do armário.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
O conselho que dou quando alguém me diz que tem vontade de escrever um conto ou romance, mas não sabe por onde começar, é planejar. Sempre. Porém, conheço algumas pessoas que juram que escrevem livremente. Eu até acredito, porque a gente sabe que o processo de criação é algo muito individual e cada um sabe o jeito que a própria cabeça funciona. Mas, para mim, o planejamento é uma etapa impossível de ser ignorada. Recentemente, dei início à escrita de uma novela na intenção de experimentar um processo de escrita mais livre. As primeiras cenas fluíram naturalmente, só o que precisei foi passar para o papel as imagens que se sucediam na minha imaginação. Porém, à medida que os personagens foram ganhando forma, a necessidade de um planejamento foi crescendo, principalmente, pela minha curiosidade de antecipar os passos deles. Para mim, a primeira frase é a mais difícil, porque numa folha/tela em branco, existem todas as possibilidades do mundo.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
A situação ideal para mim é aquela quando tenho todo o tempo disponível para me dedicar a somente um projeto literário. Na época em que escrevi o Amarga neblina (romance publicado em 2018), embora eu estivesse cursando uma graduação em Letras, ou seja, tinha uma carga horária de aulas intensa para cumprir e muitas leituras em ficção e teoria para realizar, eu estava envolvida somente com o processo criativo da obra. Sendo assim, eu podia viver aquele universo e conviver com os meus personagens praticamente nas vinte e quatro horas do meu dia. Mas é claro que de 2016, ano em que eu concluí a escrita do romance, para 2020, muita coisa mudou. Atualmente estou escrevendo duas novelas, uma em processo de conclusão, e tentando me organizar para publicar o meu primeiro livro de contos solo. Esta não é a situação ideal para mim, mas como escritora, professora e mulher, me reinventar é um exercício diário, principalmente nesta época em que toda a atividade intelectual e artística é vista com desconfiança por uma parcela considerável da nossa sociedade.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Como resposta a esta pergunta vou recorrer a um conto que escrevi para o a antologia Outras Sem/Cem Palavras(2019), continuação do projeto Sem/Cem Palavras (2018), idealizado por mim e pela Cinara Ferreira.
Escrever literatura é foda. É brincar de Deus. É parir um natimorto. É escrever para que ninguém leia e ser chamada de louca, é escrever para que os outros leiam e ser acusada de exibicionismo. Me disseram, um dia, que eu não queria fazer literatura, que eu só queria aparecer, pois se eu escrevesse por paixão, eu nem precisaria publicar. Se eu quisesse aparecer, faria uma lipo e umas fotos pelada, e não perderia horas num domingo enquanto todo mundo encontra seu lugarzinho ao sol. Agora, que mal tem em atormentar os outros com todas as coisas que me atormentam?
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Encontrar um estilo nunca foi uma grande preocupação para mim. O maior e o mais interessante desafio sempre me pareceu encontrar a história que merece ser contada. A vida cotidiana é dotada de uma poesia que pode passar despercebida muitas vezes, mas está sempre ao nosso redor, e o ser humano é incontestavelmente um construtor de narrativas, seja através da fala ou dos próprios atos. Então, decidir entre qual destas tantas histórias que ouvimos ou vivemos é aquela que deve ganhar forma me parece a questão mais complexa. Quanto às minhas influências literárias: minhas primeiras e intensas experiências de leitura surgiram através da literatura fantástica. Estas mesmas experiências despertaram em mim não só o gosto pela leitura, mas também o desejo de criar outras realidades. Sinto que o Maupassant, o Gógol e o Álvarez de Azevedo estão sempre por perto, mesmo quando escrevo sobre uma dona de casa perdida numa tarde ensolarada no centro da cidade.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Minha primeira indicação é uma leitura teórica, A casa na ficção de autoria feminina, de Elódia Xavier. Tive contato com o texto na época em que realizava a pesquisa para a dissertação de mestrado. A obra é muito interessante não só para quem pesquisa literatura, mas também, para quem escreve. A autora faz um mapeamento de como a casa é descrita e qual a sua função na literatura produzida por mulheres. É um estudo surpreendente!
O segundo livro é o romance Dias de abandono, de Elena Ferrante. A autora consegue criar uma tensão como ninguém numa estória aparentemente banal.
Minha terceira indicação é o livro, ou melhor os livros, Sem/Cem palavras e sua continuação Outras Sem/Cem palavras, que já foi mencionado nesta entrevista. Sei que sou suspeita para falar da qualidade destes dois últimos livros, mas são tantos autores talentosos e os contos ficaram tão diversificados, que é uma leitura que merece muito ser realizada por quem aprecia o gênero conto.