Fernanda Martins é feminista, doutora em Ciências Criminais.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu tenho bastante preguiça de manhã, para ser bem sincera. Começo o dia devagar, se não preciso dar aula logo cedo. Isso significa que acordo e faço as coisas sem pressa, ajeitando sujeira, comida e passeio dos bichos aqui de casa. Geralmente tomo algo leve e um café e vou para o escritório de casa trabalhar.
Pela manhã costumo priorizar coisas meio automáticas e burocráticas como responder emails, organizar agenda e resolver uma ou outra coisa do cotidiano, pois sinto que antes das 10h meu corpo e minha cabeça estão ainda em aquecimento.
No entanto, em épocas que exigem escrita contínua – como no caso da tese –, pela manhã eu costumo reler o que já escrevi e assinalar pontos de continuidade para serem desenvolvidos mais adiante. Isso faz com que eu sinta que não “larguei” a escrita, mas também não me exige tanto.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu costumo “arrancar” meu “trabalho criativo” a partir das 11h da manhã, isso faz com que meus horários sejam distintos do horário regular das outras pessoas. Ou seja, meu horário de almoço, intervalo para atividades físicas costuma ser em horários atípicos, mas que funcionam bem para mim.
Tenho por hábito resolver as pendências – que insistem em roubar minha atenção – antes de começar a escrever. Talvez essa seja minha maior preparação. Mas também sempre organizo os livros, cadernos e materiais que sinto que vou precisar para não me desconectar tanto ao longo do trabalho.
Sinto que meu melhor momento de trabalho é quando estou concentrada, isso não está necessariamente conectado a determinado horário do dia, mas sim com a necessidade e organização que estabeleço para aquilo que estou escrevendo. Digo isso porque em épocas que estou escrevendo com regularidade, posso “perder” a manhã toda fazendo outras coisas e só conseguir sentar diante do computador no meio da tarde, e isso não impede que eu me relacione intensamente com a escrita, mesmo que por 20, 30 minutos.
Penso também que relacionar o trabalho com alguma hora do dia tem muito a ver com a fase da vida em que estamos. Já vivi momentos que em me sentia muito bem em ler e escrever madrugada adentro, mas também era o único turno que tinha para me dedicar a escrita. Hoje em dia, que tenho horários mais flexíveis, sinto que quando escrevo a noite, preciso corrigir de forma mais criteriosa o texto e, ainda, tendo a me “arrastar” ao longo do dia seguinte. Por isso, a experiência da escrita na madrugada tem sido cada vez mais esporádica e só tem ocorrido em duas ocasiões: 1) deixei o trabalho para última hora (o que tem acontecido cada vez menos) e 2) estou num processo gostoso e instigante de escrita ou leitura, o que faz com que eu queira continuar envolvida pela experiência.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Isso depende bastante. Depende muito do projeto com o qual estou envolvida, mas eu costumo escrever em períodos concentrados. Sempre digo que meu envolvimento com a escrita é tão físico que ela é quase “expulsa” de dentro de mim e por isso não consigo determinar um padrão específico, não consigo estabelecer um controle sobre como e quanto vou produzir por dia.
Inclusive, não tenho por hábito fazer uma meta de escrita diária, porque sempre costumo desobedecer aos planos que estabeleço para mim mesma… com o tempo tenho me dado conta, cada vez mais, das dificuldades que tenho em cumprir minhas próprias metas, o que tem me liberado mais e mais da culpa e do estresse ao escrever.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu amo escrever. Escrevo em caderninhos, papeizinhos soltos, bloco de notas – tenho-os por todos os cantos. Rabisco também os livros meio sem cuidado, e sei que isso incomoda muita gente, mas esse processo faz com que eu sinta que estou sempre escrevendo e torne menos sofrido o processo de “romper a página em branco”.
Costumo ler/reler autoras e textos centrais ao trabalho antes de começar a escrever algo propriamente. Organizo meus fichamentos e minhas anotações, sistematizo o que quero escrever em tópicos – sem muita rigidez – e passo a apontar linhas de reflexões, ideias, desejos em cada um desses tópicos. Esse processo é bem solto, mas me ajuda a sempre lembrar o que eu queria no início do trabalho, mesmo que se modifique radicalmente ao longo da escrita, esse movimento me auxilia a compreender com o que estou envolvida, quais são meus desejos e angústias, propósitos e intenções conectadas ao texto. Penso que esse seja a minha passagem da pesquisa para escrita; um gesto ao tentar conectar expressões desajustadas, desarticuladas entre as várias leituras estabelecidas na pesquisa através de pontes construídas por interrogações e desejos por respostas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu tenho por pressuposto que a escrita não pode ser romantizada, que é um processo de repetição, de concentração, organização e esforço contínuo. Isso significa que eu não posso ficar à espera de inspiração ou algo de outra ordem aparecer para que eu possa escrever. Mas, honestamente, apesar de ter isso muito claro, eu não lido muito bem não com o que sinto quando a escrita não flui. Sinto que meu corpo dói, fisicamente.
Isso fez com que nos últimos anos eu tenha encarado que, particularmente, minhas travas de escrita ocorrem por cansaço ou procrastinação. E isso gera um movimento de ansiedade que se conecta a pensar que não vou dar conta do que eu me propus.
Uma das “rotas de fuga” que tem me ajudado bastante a lidar com esse tipo de ansiedade é reconhecer e aceitar que se trata de procrastinação ou de cansaço. Dizer em voz alta e daí criar formas concretas de lidar com isso… costumo sair para correr, cozinhar, organizar coisas, mas consciente de que estou adiando a escrita.
Quando vejo que essas “atividades outras” não estão me ajudando, retorno às leituras. Isso sempre me dá fôlego e me lembra do que estou fazendo. Outra ferramenta que costuma me auxiliar bastante é retornar àquelas expressões soltas, aqueles desejos que coloco no papel antes de iniciar a escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu não costumo revisar muito. Como um dos meus movimentos para lidar com a procrastinação é reler – em voz alta – e corrigir o que já escrevi; reformular expressões; reajustar frases, quando encerro um texto é porque tomo ele por pronto. Não acredito que os trabalhos se encerrem, portanto costumo aceitar que ele está “publicável” depois que o divido com alguém para correções e interpelações finais.
Tenho a impressão que dividir a escrita com alguém que a gente confia é a melhor maneira para identificar quando um texto está “pronto”.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como já disse, tenho cadernos, notinhas, papeis espalhados por todo o lado, escritos importantes até em guardanapos. Esse é meu lado mais analógico. Mas também costumo expressar muitas das minhas ideias através de áudios que faço no gravador e de textos que escrevo no bloco de notas do celular. Sinto que qualquer momento que rola uma angústia ou uma ideia relacionada à escrita, é uma oportunidade de algo novo nesse processo. Portanto, sempre uso aquilo que tenho disponível no momento.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias se relacionam com as pessoas, com o mundo, com o contexto social que tomo como interpelação ética. Como minha relação com a escrita é atravessada radicalmente pelos feminismos e pelas expressões feministas de intervenção social concretas, raríssimo do que penso é desconectado dos pensamentos políticos produzidos por outras anteriores a mim. Leio muito e dialogo bastante com outras pessoas preocupadas e engajadas nos assuntos que me provocam “criatividade”. Sinto que minha escrita é sempre uma tentativa de responder a provocações políticas do meu tempo, e por isso parece que não existe nada mais real – como “fonte de inspiração” – do que as vidas pelas quais eu me sinto desafiada e pelas possibilidades criativas de se pensar outras formas de mundo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Hoje eu me sinto livre escrevendo.
Sinto que minha escrita já não corresponde tanto aos anseios dos outros e está mais diretamente conectada à minha relação pessoal com o mundo e, por isso, eu hoje gostaria de dizer à Fernanda do passado: “continue a escrever”. Saber que eu encontraria na escrita um lugar para chamar de meu, enquanto expressão de autonomia e liberdade, é algo que, certamente, eu teria gostado muito de saber anos atrás.
Talvez outro ponto importante de mudança na minha relação com a escrita é que sempre tive muita vergonha com meus erros de português. Como escrevo com muita intensidade, costumo espalhar vírgulas erradas, desafiar as crases e devorar sujeitos por aí. No início pensava que isso invalidava minha capacidade para escrever, ou, ao menos, que isso fazia com que eu não tivesse tanta “credibilidade acadêmica”, o que, no meu percurso como professora e investigadora, é quase uma “sentença de morte”.
Com o tempo fui percebendo que termos como “credibilidade acadêmica” fazem parte de um reconhecimento desigual em relação à pluralidade do conhecimento, incentivado pelas masculinidades eurocentradas – conectadas estreitamente à branquitude – que determinam quais são os critérios de validação científica sobre o que se escreve e o que se produz. Reconhecer esses desdobramentos patriarcais sobre ciência e expressões culturais me ajudou muito a abrir os olhos sobre a “produção do conhecimento”, e também a desafiar a “síndrome da impostora” – que me habita e a tantas outras mulheres.
Hoje compreendo que o desafio da escrita, para mim, está em desobedecer a estatutos normativos e alinhá-la criativamente ao e a quem importa.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sempre sonhei em escrever literatura e, atualmente, tenho me sentido convocada por esse desejo com mais intensidade.
Minha produção de escrita sempre foi muito conectada à pesquisa científica e, recentemente, finalizei minha tese de doutorado, o que faz com que eu esteja um pouco “saturada” dessa forma de escrever.
Sempre cultivei o hábito de escrever diários e bloquinhos com textos livres, e gostaria muito hoje de pensá-los como um ensaio para novas oportunidades dessa minha relação com a escrita. Talvez seja algo que já comecei a fazer sem nunca ter de fato começado. Quem sabe por aí…
E sobre o que gostaria de ler, posso dizer que eu gostaria de ler todo um universo de escritas que sei nunca poderei ler.