Fernanda Marquetti é terapeuta ocupacional e professora aposentada da Unifesp.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho rotina, a vida depende muito daquilo que vou fazer no dia. Ou seja, tenho cotidiano!
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor?
Isto mudou nas fases ao longo da minha vida, antes era à noite e de madrugada. Atualmente, eu prefiro escrever depois que acordo e faço as obrigações da vida. (responder e-mails, pequenos trabalhos, etc).
Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não. Apenas preciso desligar tudo ao redor e muito silêncio.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados?
Eu costumo concentrar minhas ideias e quando vou escrever faço de um golpe só. Claro, que demora alguns dias consecutivos. Se, preciso parar no meio é um tormento, pois não faço nada direito e penso apenas naquilo que estou escrevendo. Geralmente, aguardo ansiosa a hora de voltar para casa e escrever. Assim, quando estou escrevendo algo longo a vida permanece em torno daquilo.
Você tem uma meta de escrita diária?
Nunca, prazos me atormentam, por isso talvez faça tudo com muita antecedência. Sempre termino a escrita muito antes do prazo, assim não tenho que cumprir metas e escrever com pressa. Eu acho que escrever envolve liberdade. Ex: eu terminei o mestrado e doutorado um ano antes do prazo final.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar?
Não. Antes de começar a escrever eu leio muito sobre o tema e outros correlatos.
Romances me ajudam a pensar na escrita acadêmica. Nesta fase não anoto e nem escrevo nada. Odeio fichamentos. Apenas rabisco ideias nos livros que leio. Esta fase é a maior no tempo do processo de escrita.
Depois quando começo a escrever a linha de raciocínio está articulada (de A à Z), ou seja, procuro saber exatamente o começo, meio e o fim aonde desejo chegar. Esta fase é mais rápida e como disse antes escrevo de um golpe só. Lógico, depois faço as correções e adequações necessárias (citações faço somente quando termino, bibliografia, gramática, revisão final)
Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando a escrita envolve pesquisa, esta é paralela as leituras, e ambas são indissociáveis. Leio e pesquiso ao mesmo tempo. Faço apenas anotações de campo. Enquanto pesquiso vou traçando a linha de raciocínio amarrada as leituras. Depois escrevo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não penso em nada disso. Sempre lembro que nasci num país de educação medíocre e que não valoriza leitura e escrita. Assim, nós que escrevemos estamos fazendo o máximo com um mínimo recebido. Desta forma, eu não travo, não adio, e não me preocupo com os outros. Escrevo para mim e penso que ler um livro é uma opção. Caso a pessoa não goste é só fechar o livro. Quanto a trabalhar em projetos longos, eu me preparo reservando um tempo para mergulhar no processo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos?
Uma. Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los? Depois, desta única vez mostro para minha irmã (professora e muito crítica). Caso ela aconselhe mudanças eu faço, mas nada muito grande. Não costumo mudar radicalmente aquilo que escrevo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre no computador, ou aqueles famosos rabiscos no livro que está sendo lido.
De onde vêm suas ideias?
Da observação do mundo cotidiano, de algumas frases que escuto e ficam “martelando” anos na minha cabeça, de imagens que vi e não esqueço, etc. Às vezes, não fazem sentido estes pedaços soltos, nem compreendo porquê fiquei tão cismada com eles. Mas um deles eles retornam cheio de vida e articulados com sistemas mais complexos de pensamento.
Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não. Acho que não sei o que seriam estes hábitos. Aliás, não acredito em hábitos que tornem alguém criativo. Penso que existem pessoas criativas e outras que sistematizam o que outros pensaram antes, principalmente na academia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos?
Não mudou nada, eu tenho o mesmo processo de escrita de 20 anos atrás. O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos? Eu gosto daquilo que escrevi antes, então tento permanecer fiel a este estilo. E quando sou pressionada a desviar deste caminho eu tento me recentrar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou?
Estou na fase de ler para elaborar outro processo longo de escrita. Gosto muito desta ideia e será tão extenso o projeto que estou esperando uma fase de tempo razoável para me dedicar a ele. O tema geral seria sobre a influência do cotidiano na vida das pessoas. A pesquisa de campo (se podemos chamar assim foram os 10 anos que trabalhei na Unifesp com este tema na graduação).
Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ah… esta resposta está afiada. O Vol II de O Assassinato do comendador de Haruki Murakami. Ele escreveu o romance I de mesmo título e deixou o leitor no meio da história sem fim…Como ele fez isto!
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Geralmente, eu começo um projeto por uma ideia disparadora, que pode ficar muito tempo em elaboração, mas apenas mentalmente. Ou seja, não escrevo nada ou faço anotações sobre o tema, mas penso sobre esta ideia todo tempo. Me parece que todos os fatos cotidianos alimentam esta ideia, mesmo que de fontes diferentes (livros-romances, sessões de análise, conversas com amigos, observação de pessoas desconhecidas, informações da mídia) e estes pequenos relâmpagos triviais vão se retroalimentando. Assim, a fase de elaboração da ideia e de construção de argumentos é longa.
Quando eu começo a escrever o texto está delineado do começo ao fim, mas é claro, que no processo de escrita outras associações despontam e são incorporadas. Desta forma, nem a primeira ou última frase são difíceis, pois na fase da escrita já está tudo articulado. Muitas vezes o título (que considero fundamental num texto), frases iniciais, conclusão, já estão todos decididos antes de eu começar a escrever. Enfim, há um longo período de elaboração, mas não o chamaria de planejamento. Esta poderia ser a fase mais difícil, mas é extremamente prazerosa.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Atualmente, na minha semana separo alguns períodos de tempo para me dedicar a escrita (no mínimo 4 horas em 3 dias da semana). Nestes períodos não faço outra coisa, pois preciso de sossego e concentração para escrever.
Sempre escrevo um texto de cada vez, às vezes, posso ter outros projetos que envolvam atividades diferentes acontecendo naquele período, mas me dedico a escrita de apenas um texto por vez. Eu sinto que preciso esgotar a ideia, colocar tudo no papel, finalizar detalhes, enviar o texto para revistas ou editoras e somente depois disso me sinto livre para começar a escrever outra coisa.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Não sei dizer o que me motiva a escrever (certamente não são os incentivos da nossa sociedade ou da vida universitária na qual estive vinculada como aluna ou docente por anos). Me parece algo de outra ordem, pois não é uma motivação com objetivos a serem alcançados, me parece que é apenas pelo prazer. Não tenho certeza. E um detalhe importante, o prazer é durante a escrita, depois sempre me afasto do texto e nunca leio novamente. Quase esqueço. Somente, percebi este importante detalhe outro dia, ao conversar com um amigo ele me perguntou o que eu sentia ao ler aquilo que escrevi num livro. Fiquei embaraçada com minha própria resposta: “eu nunca li” e justifiquei com falta de tempo, mas na verdade nunca cogitei ler os textos que escrevi, nem os artigos mais curtos.
Quanto a outra questão, nunca decidi me dedicar à escrita, apenas aconteceu lenta e insidiosamente, da escrita me acompanhar ao longo dos últimos anos. Durante o período de mestrado percebi que gostava de escrever e aquilo que era uma tarefa para meus colegas era para mim um prazer. Confesso que fiquei surpresa, pois antes nunca havia escrito nada próprio. Nesta época eu percebi que escrever era algo que me envolvia muito, me lembro que foi intenso e que não conseguia parar aquilo… Depois no doutorado, pós-doutorado este desejo foi se reafirmando e sempre considerava um privilégio escrever e não uma tarefa.
Seguindo no tempo, como docente na universidade e suas demandas de produção escrita, eu percebi que escrever era algo que gostaria de fazer para sempre, mas me incomodava muito as restrições de formato e as especificações daquilo que era considerado “merecedor” para uma publicação. Mas, esta parte eu deixo para a resposta seguinte.
Depois de me desvincular da universidade (há 2 anos) e seguindo um trajeto longo e cíclico num tempo que me pareceu enorme (repleto de conversas com amigos, sessões de análise, auto-observação, dúvidas e angústia), eu fiquei às voltas com esta decisão de me dedicar à escrita ou não.
E, o momento final da decisão pela escrita chegou num episódio recente. Este desfecho aconteceu agora há 2 meses, quando numa entrevista depois do prêmio ABEU (Associação Brasileira das Editoras Universitárias) pelo livro “Suicídio, escutas do silêncio”, o entrevistador me apresentou como escritora e não professora, como eu era usualmente denominada. Naquele momento, percebi que eu estava recusando um lugar que já estava produzido na minha vida. Eu sai da entrevista importunada com a minha indecisão e pensando que eu empurrava para longe algo que já estava comigo. Ainda não sei porquê eu estava recusando este lugar, mas este insight deve vir depois com o tempo.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Esta questão do estilo está relacionada a questão anterior sobre meu processo de escrita durante a vida na universidade. Logo que comecei a escrever no mestrado eu percebi que meu jeito de escrever era diferente daquilo preconizado pelas regras implícitas de “boa escrita” na academia. Graças a Zeus, eu tive um excelente e criativo orientador (Rubens Adorno) que me deixou livre para escrever do meu jeito. Depois, em cada fase nesta vida na universidade enfrentei inúmeros problemas com aquilo que, hoje sei, é meu estilo. Como eu não tinha pretensão alguma em alcançar êxitos acadêmicos forjados às custas de empobrecimento intelectual (fato corriqueiro na universidade) decidi escrever do meu jeito, mesmo que não lograsse nada com meus textos. Esta decisão me rendeu liberdade e reconhecimento, posteriormente. Claro, que recebi inúmeras recusas com pareceres hostis que gostaria de ter guardado para mostrar a alunos e colegas que se sentem desqualificados para escreverem quando recebem um parecer editorial. A escrita é uma arte e, portanto, inseparável dos traços típicos de quem escreve. Este esquema corrompido, viciado e contaminado de pareceristas é algo perverso que precisa ser revisto, mas isso é outro assunto.
Quanto ao meu estilo resumo aquilo que compreendi sobre meu jeito de escrever. Sempre me considerei uma pessoa apartada dos temas ficcionais, imaginários e sem estreita ligação com a realidade. Por exemplo, mesmo na infância, eu nunca me interessei por temas como viagem às galáxias, Sitio do Pica Pau amarelo, entre outros, ou atualmente, por filmes ou livros que não se inspirem na realidade.
Mas, percebi que ao longo da vida esse meu apego a realidade sugava toda minha fantasia e meu imaginário. Enquanto, outras crianças brincavam eu permanecia ao lado dos adultos escutando suas histórias. Histórias que reconstruí sob a regência do imaginário.
Na vida adulta, estive sempre envolvida com a história de vida das pessoas devido minha profissão de Terapeuta Ocupacional na área de saúde mental, fato que me fez perceber que o trabalho terapêutico nada mais é que uma reconstrução simbólica e imaginária com pequenas nesgas de realidade.
Depois como pesquisadora, compreendi como a construção dos discursos científicos perpassam sobre o mesmo dilema, a leitura da realidade sempre está envolta num véu construído pelo pesquisador. Adoto a postura que aceita que toda produção de ciência é uma construção e, assim, meu estilo de escrita vem permeado de um paralelo simbólico-imaginário que vai construindo a realidade que observo. Aceito que, não há como nenhum pesquisador, se despojar da sua subjetividade. Toda vez, que estou em campo de pesquisa, paralelamente a observação da realidade (percepção já subjetiva), encontro histórias, detalhes, fragmentos colhidos pela minha subjetividade, que outra pessoa provavelmente não encontraria. E quando vou escrever sobre aquilo que pesquisei, obviamente, este texto está impregnado desta experiência. Enfim, não sei dizer se isso é um estilo, mas quando abandonei o medo de escrever do “meu jeito” percebi que meus textos guardam uma harmonia entre eles. Assim, quando escrevo, penso que o produto final é uma construção da realidade repleta do imaginário dos sujeitos que a viveram como experiência, acrescida do meu imaginário ao escutar e olhar os resquícios destas experiências.
Quanto a autores ou estilos que me influenciaram, pode parecer uma provocação e uma heresia para alguns. Mas, quando lembro das histórias de familiares, relatos de pacientes e entrevistas de sujeitos em pesquisa sobre as quais escrevi sempre acredito próximo do Realismo Mágico de Gabriel García Márquez.
Escutei histórias e observei cenas surreais ao longo da vida profissional, penso que a diferença entre os pesquisadores-escritores está em retratar aquilo que foi dado pelos sujeitos ou ignorar e buscar nos discursos outros pontos anteriormente preconizados por algum arcabouço teórico.
Mesmo a pesquisa que se pretende objetiva, parte da escolha de um objeto, com uma metodologia, com um recorte da realidade e uma interpretação com uma abordagem teórica eleita pelo pesquisador. Enfim, nós pesquisadores fazemos a construção de uma realidade baseados em nossas percepções subjetivas e em outras construções teóricas elaboradas anteriormente. Parece óbvio, mas isto marca uma luta selvagem e narcísica dentro da academia.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Que tarefa difícil. Mas, vamos lá!
Vou começar pelo primeiro livro onde a engenhosa elaboração do texto, além da história magnífica, me deixou perplexa. “A Montanha Mágica” de Thomas Mann. Entre muitas outras coisas, o livro narra a passagem do tempo.
O Livro “Amor para sempre” de Ian MacEwan me fez ler todos os outros livros dele que alcancei nas mãos. Ele mostra como um momento fugaz pode mudar radicalmente e severamente uma vida.
O último é o “O tempo e o cão, a atualidade das depressões” de Maria Rita Kehl, onde a autora articula aspectos da psicodinâmica da depressão com as vicissitudes do tempo nas sociedades contemporâneas. Me pareceu genial a representação da autora que considera aspectos genuinamente intrínsecos ao sujeito conjuntamente com as transformações sociais.
Acabo de perceber que eu tenho uma questão com o tempo! Os 3 livros que citei abordam o tema.