Fernanda Marinho é doutora em História da Arte pela Unicamp e pós-doutoranda pela Bibliotheca Hertziana.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia com um dedo no olho. Meu filho de três anos se apegou a uma espinha mal resolvida em meu queixo, que ele carinhosamente apelidou de “dodói”. Fazendo dela o seu “paninho” que ele nunca teve ou a chupeta que eu nunca dei, ainda de olhos fechados, ele estica seu braço à procura do “dodói”, como o primeiro chamego matinal, atinge meu olho, me dá bom dia e me pede granola.
Tomamos café com toda a família. Café preto forte e depois cada um segue seu rumo. Em tempos de pandemia, esse rumo tem se empilhado e nos tropeçamos pela casa à procura de nossas rotinas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Funciono melhor na contramão. Quando morava na casa de minha mãe eu varava a madrugada, me enchia de cafeína e produzia coisas que a minha manhã não poderia prever. Minha escrita flui quando a casa dorme, em meio ao silêncio e à solidão, duas condições que se tornaram impossíveis com a maternidade. Hoje a escrita deixou de ser expurgação do fim dia (já até deixei caneta de tecido na cabeceira para escrever no lençol antes dos olhos fecharem) para ser um grito de socorro, vontade de ordem em meio ao caos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A escrita não acadêmica para mim precisa ser fluida. Ela acontece quando quer e eu tendo a não forçá-la. É quase independente e me maltrata em suas longas ausências, me sufoca no silêncio.
A escrita acadêmica é sofrida também, mas tem uma direção mais precisa, se concentra nos objetivos que sustentam um artigo, uma tese. Procuro escrever todos os dias, quando tenho um prazo.
A escrita não acadêmica aconteceu antes para mim, mas seu objetivo nunca me foi muito claro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Abuso das anotações no meu processo. Tenho um caderno para cada pesquisa e diferencio as notas bibliográficas dos meus insigths com a abreviação “MR” (Meu Resumo) que nasceu nas marginálias dos primeiros textos lidos nos tempos de universidade. Dessas abreviações faço esquemas, procurando mapear a minha linha de raciocínio. Sinto sempre a necessidade de transformar meu pensamento em uma imagem organizada, delimitando margens, parágrafos, setas, destaques. Tendo a acessar o raciocínio elaborado no texto a partir dessa ordem imagética.
Acho mais difícil terminar um texto do que começá-lo.
A pesquisa é um campo infinito. Não sinto um verdadeiro movimento da pesquisa para a escrita porque a própria pesquisa nasce da escrita, assim como não vejo a história da arte como um produto da arte. As coisas acontecem conjuntamente. Quanto mais pesquiso, melhor escrevo e quanto mais escrevo, melhor pesquiso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas são agoniantes, mas às vezes funcionam como aquela sessão de análise que pareceu insignificante. Travar a escrita é só não botar para fora o que dentro anda latente. Não é necessariamente uma ausência. Existe algo ali, e não saber decifrá-lo em palavras é um sentimento amargo, mas identificá-lo é um passo. Passei uns dois anos sem conseguir escrever. Mas eu estava em fase de transformação, virando mãe. A escrita, para mim, requer uma certa ordem, seja ela sentimental ou intelectual e no caos da transformação tendo a me calar, dando espaço à desordem. Por isso, quando a escrita acontece, ela vem sempre acompanhada de um certo alívio.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso a cada manhã o que escrevi no dia anterior. É muito pouco recorrente continuar a escrever a partir do último ponto final (geralmente termino as frases antes de interromper a escrita). Preciso reler o texto, ou parte dele, para dar-lhe continuidade.
Tenho o costume de pedir aos colegas que leiam meus trabalhos antes de publicá-los, sim. Mas os textos acadêmicos apenas. A escrita pessoal às vezes leio em casa, em voz alta, antes de dar um fim a ela e raramente a modifico posteriormente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu era muito adepta aos rascunhos à mão, mas me abituei a escrever diretamente no computador. Foi na época da faculdade. Forcei esse hábito porque percebi que perdia tempo na entrega de trabalhos digitalizados. Mas mantenho meus cadernos como fonte de pesquisa, faço resumos e organizo meus pensamentos neles.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não sei. As ideias são meio vaporosas, aparecem sempre de forma pouco circunscrita ou concreta. Ganham corpo quando encontram um espaço de interlocução, caso contrário, tendem a esvanecer. Não são, portanto, ideias propriamente ditas, como uma iluminação que paira e precisa ser transcrita, mas sentimentos e pensamentos que só são compreensíveis quando compartilhados em alguma esfera.
Acredito que a criatividade caminhe junto com a atividade e contemplação. Livros, filmes, pinturas são minhas fontes mais recorrentes.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou muita coisa. Minha escrita era mais expurgatória, como eu disse antes, e assim ela era mais livre e descompromissada. Correspondia à minha juventude. Hoje ela é mais calculada, cheia de medos e dedos. Procura ter algum compromisso em ser verdadeira, na informação dos fatos e dos sentimentos, tem receio em ser vaga, imprecisa ou provocar mágoas. Tenho um caderno onde nada disso me trava, mas não é público e nem pretende ser. É onde extravazo o que a vida real não me permite descontrolar.
Acho que tenho mais mensagens do meu passado para o meu presente do que o contrário. Gostaria de resgatar a leveza com a qual eu escrevia.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Adoraria escrever um roteiro de cinema. Vejo muitos fatos do dia a dia projetados em uma tela. Mas não sei se de fato isso é um projeto na minha vida ou apenas um flerte de vontade. Sinto mais que não darei conta dos livros que existem e que pretendo ler do que acrescentar um inexistente na minha lista infinita.