Fernanda Fatureto é poeta e escritora, autora de “Ensaios para a queda” (Penalux, 2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa sempre pela tela do celular. Acordo de manhã e acesso minhas redes sociais – por onde me informo sobre as notícias do dia e vejo as postagens dos amigos.
Depois, tomo meu café da manhã e respondo e-mails e mensagens. A partir daí estou pronta para iniciar minha rotina, que pode ser escrever novos poemas, cumprir compromissos e brincar e cuidar da minha gata.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho um ritual específico para a escrita, mas deixo gestar em mim o máximo de sensações possíveis antes de transferir para a página um novo poema. Para mim, escrever é como uma gestação. Acumulo experiências e vivências, crio imagens mentais e só depois de dias eu escrevo.
Geralmente escrevo poemas à noite, depois de um dia saturado de luz, barulho e movimento. É quando meu coração e mente entram em ebulição. À noite é minha hora mais criativa, mas nunca de madrugada. Quando eu era mais nova, a madrugada era meu horário preferido para escrever. Hoje em dia não passo das onze da noite. Preciso dormir bem para render no outro dia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados. Não consigo escrever poemas todos os dias justamente porque considero a escrita uma gestação. Minha meta diária é absorver a experiência do dia intensamente. Sou uma pessoa que pensa muito, estou sempre assimilando a vida que passa pelos meus olhos. Este é o material da minha escrita: a experiência aliada às minhas sensações internas. Por isso não tenho metas diárias a não ser quando eu sento para escrever; aí eu exijo o máximo de mim – que o poema nasça em sua continuidade e que eu finalize o poema em um dia. Mas há casos em que preciso retomar a ideia original para aparar arestas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Trabalho com a intuição e com o fluxo de consciência. Mas meus poemas têm sempre uma história para contar e um tema que os regem, por isso trabalho com forma e conteúdo de maneira integrada.
Durante a criação de um conceito ou tema para um novo livro, costumo anotar insights e palavras que me vêm à mente em um bloco de notas no celular. Depois transfiro esses “ganchos” para o Word. E concluo meus poemas através destas palavras e insights centrais. Meus livros são guiados sempre por um tema principal, isso me ajuda a imaginar o livro enquanto conceito e a lincar um poema no outro criando um diálogo interno.
Não é fácil começar, a não ser que em mim haja uma urgência para escrever. Esta urgência aparece repentinamente como uma combustão. Aí preciso atender esse desejo pela escrita. Ele é mais forte que eu.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Procrastino muito. Sempre espero um pouco mais até decidir sentar em frente ao computador e trabalhar incessantemente. Mas essa procrastinação tem a ver com aquele “ócio criativo” que já virou clichê. Cultivo o ócio como meu aliado à criatividade. É onde encontro brechas para ouvir música, ver um filme, ler livros, estar com minha família. E tudo isso cria um ambiente para a escrita posterior.
Quando comecei a escrever mais seriamente eu abandonei o medo e o substituí pelo comprometimento com a escrita.
Escrever para mim é um ato tão legítimo e que condiz tanto com minha integridade psíquica que só quando os poemas ou o livro estão publicados que penso sobre as expectativas externas referentes ao meu trabalho.
Se não escrevermos verdadeiramente, se a escrita não estiver integrada ao que acreditamos, não vale a pena. Por isso tento ser fiel a mim e então esse diálogo com o outro é estabelecido posteriormente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muito. Deixo meus textos e poemas numa pasta por uns dias e esqueço deles. Depois de três dias leio novamente até eu encontrar erros, incoerências e assim repito esse ritual até eu sentir que estão prontos.
Depois, envio para o editor. Não costumo mostrá-los para ninguém antes de serem publicados. Até ser publicada, minha escrita é minha intimidade, algo que zelo. O mesmo se dá quando publico poemas em revistas ou sites. Apenas envio para o editor até a os textos se tornarem públicos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo sempre no computador. Raramente anoto frases no papel, mas pode acontecer de eu ter um insight e recorrer ao lápis e ao papel. O que tenho feito é criar notas no celular, acho muito mais prático. Depois transfiro para o Word.
Minha relação com a tecnologia é intensa. Não saberia viver sem celular, tablet e computador. Quanto menos sem internet. E não acredito que isto atrapalha minha criatividade. O poema surgir no Word ou no papel é apenas uma questão de suporte. O importante é que ele surja e que eu o escreva e o veja nascer.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Lacan dizia que o inconsciente é linguagem. Tomo esta frase de Lacan quase que religiosamente. Minha escrita é a linguagem do meu inconsciente aliada às minhas experiências, às fissuras do meu passado, às cicatrizes do que vivi. Tudo isso me chega pela intuição, mas também pela minha memória afetiva. Para isso preciso estar conectada internamente com meus desejos e sonhos, com minhas imagens particulares.
Por isso escrevo por meio do fluxo de consciência, para poder acessar essas imagens arraigadas em mim. Mas tento sempre utilizar a razão na medida em que me preocupo com a forma do poema e com um tema central que o guia. O resto é respirar, olhar para si e escrever sendo fiel a mim mesma.
Gosto do silêncio e de solidão na mesma medida em que gosto de gente e música. Cultivar alguns momentos sozinha é essencial para mim, de onde retiro boa parte do material para minha escrita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que enquanto houver busca haverá escrita. Mas ganhei uma maturidade maior e um comprometimento maior com a escrita.
Diria para a Fernanda do passado para ela ter resistência. Resistir é acreditar que vale a pena lutar pela própria voz. Como escreveu a escritora espanhola Julia Uceda: “Tem que ir demolindo pouco a pouco a sombra que vemos. Que nos deram”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muito o que descobrir. A literatura nacional e mundial é múltipla e existem tantos escritores e escritoras que quero ler mais a fundo, mas me falta tempo. Mas aos poucos alcanço minha meta de ler ao menos um livro por ano de autor que não conheço.
Em relação aos livros porvir, que eles cheguem até mim no tempo certo. Escrita também é acaso e busca.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Deixo sempre fluir um projeto novo sem pressão para termina-lo. Acredito que na literatura o tempo não pode ser mensurado por um prazo, a não ser algum projeto que seja de encomenda.
Mas um novo livro requer sempre seu tempo próprio que é o meu tempo interno de cozer as palavras.
Às vezes um novo livro fica na gaveta por anos até que seja concluído porque não tenho essa urgência de publicar livros um em seguida do outro. Um novo livro meu fica pronto quando há uma urgência interna para que ele venha ao mundo.
Para mim, o mais difícil é escrever a última frase. Fechar um livro requer o empenho do início, quando as palavras vêm com mais facilidade. Por isso meu tempo na escrita de um novo livro é sempre lento e depois vem a revisão e os ajustes.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu trabalho em vários projetos diferentes ao mesmo tempo, alguns não ligados à literatura. Sempre fui assim, penso melhor quando me ocupo com várias coisas ao mesmo tempo.
Não tenho escrito nada novo recentemente em poesia ou fragmetos narrativos, mas tenho muitos poemas inéditos em livro que saíram em antologias e revistas literárias desde 2017 que fazem parte de um novo projeto em andamento.
Escrever para revistas literárias e antologias é uma maneira de pensar um novo livro de forma criativa porque me força a ter contato com leitores e novos olhares sobre meus poemas.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Escrever é minha conexão com o mundo. Escrevo poemas desde os 12 anos de idade. É algo intrínseco à minha identidade desde muito nova. Mas só pensei na possibilidade de ser escritora quando eu estava na faculdade de Jornalismo.
Fui acumulando alguns poemas que eu escrevia durante a madrugada. Foi em 2013 e 2014 que tive a ideia de reunir estes meus poemas e lança-lo em livro. Foi como surgiu meu primeiro livro – Intimidade Inconfessável (Patuá, 2014).
A partir daí não parei mais de escrever poesia e o trabalho foi crescendo com participação em revistas e antologias. Até o lançamento do meu livro mais recente – Ensaios para a Queda (Penalux, 2017).
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Olhar para dentro de mim é a maneira mais verdadeira que encontro de escrever e ter minha voz. Cada inconsciente é único, cada vivência é única e ser fiel às minhas próprias imagens particulares e fissuras contribuem para a criação dos meus poemas. Quando escrevo tento não estar envolvida com nenhuma leitura particular para que eu ouça minha voz e possa escrever sem interferências.
Sempre escrevo por meio de fluxo de consciência para acessar meu interior, é um diálogo muito vívido e extenuante comigo mesma; por isso escrever para mim não é um processo leve. Essa densidade tento trazer para meus poemas.
Alguns escritores e poetas me influenciaram querer ser escritora, mas nenhum me influencia na hora que escrevo porque justamente acredito nessa voz única de cada poeta. Marguerite Duras, Anna Akhmátova, Clarice Lispector, Paul Celan, Sylvia Plath são autores que me fizeram querer ser escritora porque dialogam comigo e me tocam com seus livros.
Mas na hora que preciso escrever me desligo de seus universos para dar vazão ao meu mundo particular.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Recomendo primeiramente o livro Cristal, de Paul Celan – antologia poética publicada no Brasil pela Iluminuras. Descobri o que era poesia com Paul Celan. Sua linguagem traz toda a síntese do sofrimento e do que é ser humano no século XX. Uma linguagem fraturada que tenta reconstruir a história de sua origem.
Recomendo também toda a série do “Livro de Horas” da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol. Uma das minhas escritoras preferidas considerada hermética. Para ler Llansol é preciso ter o hábito de ler com o inconsciente porque ela é uma escritora que acessa seu universo interior como quase nenhum outro escritor.
Aproveito e recomendo meu próprio livro Ensaios para a Queda, publicado pela Editora Penalux em 2017. Escrevi o livro em torno de dois anos e o considero um marco para mim, porque teve muitas resenhas positivas de críticos que admiro. Além do prefácio do poeta, escritor e tradutor André Caramuru Aubert cujo trabalho admiro e respeito.