Fernanda Assef é atriz e escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Na verdade não. Tenho bastante dificuldade com rotinas. Tento me apegar menos aos horários, quando posso, e mais a alguns objetivos que vou traçando. Sou bastante organizada e leal aos meus compromissos, mas se posso fazer as coisas num tempo mais orgânico prefiro.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor a noite. Meu ritual é ler e me cercar de interlocutores que me estimulem criativamente. Longe da convivência constante com alguns amigos, muitas vezes me vejo em diálogos imaginários (gravo muitos deles num gravador) com pessoas reais – artistas vivos ou mortos, amigos, etc. Me alimento o tempo todo de textos (ficção, poesia, filosofia), imagens (fotografia/quadros), músicas que me instigam. Costumo gravar áudios e vídeos de pensamentos que me atravessam e trechos de leituras para revisitar depois. Tenho sempre cadernetas e lápis espalhados para quando alguma ideia aparece. Espalho livros que tem me atravessado pela casa, para encontrá-los ao acaso. Outra coisa que faço bastante é dançar. Quando sinto que uma ideia me ronda e não chego a um bom texto costumo dançar e tentar expressar de alguma forma mais física estes sentimentos, sair um pouco do metal e evitar caminhos já óbvios. Também escrevo nas janelas. Agora estou com alguns projetos de romance na gaveta, tenho trechos escritos e vou colocando com caneta na janela um esqueleto do que já tenho/consigo vislumbrar, pedaços de personagens, acontecimentos, provocações… Mas nas janelas, geralmente escrevo palavras e as vezes frases que mexeram comigo e que me rondam. Para que elas sigam retornando e me provocando. Vou sempre buscando criar e recriar ambientes que me instigam criativamente. E quando mergulho num projeto especifico me cerco de tudo o que pode instigar entrar em contato com os universos que cada personagem aponta.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando estou trabalhando em uma obra, seja como atriz, seja como escritora, costumo ficar totalmente a mercê dela. Trabalhando pelo menos 4 horas por dia, mas muitas vezes obsessivamente durante todo o tempo. Cumpro meus horários de “ganhar dinheiro” e me organizo para estar inteiramente focada em devorar tudo o que pode gerar fluxo criativo. Quando tenho prazos (o que é raro) sou mais organizada em relação a metas. Tento manter organizado o trabalho ao máximo para poder fluir com a maior liberdade possível na escrita e a criação (ler, reler, editar, ler em voz alta, pedir a amigos que leiam para que eu escute., colocar personagens a prova como atriz em improvisos…)
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depende muito do projeto. O mais difícil é a certeza de ter o suficiente. Sinto que para isso é fundamental organizar e reorganizar, ler e reler, construir, destruir, reconstruir. E contar com outros olhares para me distanciar e conseguir revisitar o que escrevo com mais generosidade. Me movo da pesquisa a escrita o tempo todo. Sinto que pesquisa e escrita, leitura e criação, corpo e voz, se misturam o tempo todo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Mal. Sou bastante ansiosa. Mas sou atriz a muito tempo, e produtora teatral. Então lido com estas entressafras criativas desde sempre. A parte produtora me ajuda bastante em alguns momentos. Busco organizar o que já tenho e olhar de forma mais objetiva para a produção criativa. Projetar mesmo. Sinto que isso ajuda a não perder o fio e a permitir que o ócio criativo se transforme em produção. Ainda que o projeto mude ao longo do processo sinto que quando consigo organizar e visualizar o todo, a minha ansiedade diminui e consigo focar. As vezes o trabalho de organização leva muito tempo. Mas sempre sinto que é fundamental para fluir. Principalmente quando estamos nessa fase de isolamento/pandemia. Sinto muita falta da mesa de bar, da conversa noite a dentro com amigos e provocadores. Sinto que estes respiros são fundamentais para a criatividade. Afinal escrevemos para alguém, sempre. Existe uma busca por escuta.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sempre! Mostro sempre. Me instiga exatamente isso, o outro! O encontro e as transformações que acontecem nestes encontros. Nunca sinto que meus trabalhos estão prontos. E hoje, não os desejo “prontos”. Por vezes, raras, fico bastante satisfeita com uma poesia ou um trecho por exemplo. Publicar minhas poesias foi um processo muito importante, pois entendi e acolhi melhor essa questão do “estar pronto”. Entendi isso ao perceber que o que me estimula não apenas a escrever, mas a publicar é a troca com o leitor. Funciona um pouco como o que minha experiencia como atriz de teatro me ensinou. Por mais que “pronta” para a estreia, depois de meses de estudo e ensaio, durante as apresentações e a cada temporada novas descobertas são feitas e é isso que é fascinante no teatro. Esse descobrir a todo momento diante da troca com o outro novos caminhos insondáveis até ali da personagem e da obra em que atuo. Esse diálogo que a obra promove é o que nutre minha pesquisa, o que me encanta. Por isso a importância de colocar o que está “pronto” em diálogo com o outro. Ao ter de divulgar meu livro por exemplo, fiquei um pouco paralisada. Não me sinto envaidecida com a publicação e nem mais “escritora”, ou mais “artista”. Mas ambiciono esse cavocar mais e mais espaços de criação e publicar promove a troca que alimenta esse pesquisar-me, abre portas para seguir produzindo e encontrando caminhos. Imaginar no encontro com o outro as novas possibilidades de leitura de um texto que escrevi me instiga profundamente. Por isso escolhi enviar minhas poesias para amigos artistas que admiro dialogarem com elas, brincarem, transformarem. Vi poesias mudarem completamente nestes encontros e isso me honra! Me estimula a seguir criando e mergulhando em minha escrita.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha letra é horrível! Sofri muito na vida escolar com isso. Sou muito hiperativa e por vezes eu mesma não compreendo o que escrevo. Amo a tecnologia. Gravo áudios, transcrevo, escrevo no bloco de notas do celular. Evito ao máximo a necessidade de passar a limpo o que escrevo a mão, quando isso acontece geralmente enquanto não chego em um computador e registro fico desesperada.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que o que disse acima. Leio muito. Escuto musicas, danço, assisto danças, vou a museus ou pesquiso pinturas, fotografias, peças, filmes me nutro de tudo o que posso. E diálogo com pessoas que admiro. Sinto que o ser humano é sempre uma inspiração enorme. E gosto de gente. Quando estou muito travada busco falar como todo mundo que encontro, bater papo, jogar conversa fora. Escutar. Não só artistas, mas por a prova o que me atravessa partilhando com outras pessoas que me encantam. Porteiros, garçons, taxistas, crianças, idosos, domésticas, professoras… gente.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Nossa. Não sei. Quando eu tinha 9 anos escrevi um livro de 57 paginas de caderno. Desde muito nova escrevo, assinava caderninhos com “Editora Fernanda Assef”. E tinha milhares de diários. Como artista sinto que estava um pouco desconectada da escrita há um tempinho. Como atriz sentia que ser tão verbal, mental, ás vezes me impedia de me lançar com mais liberdade nas contradições de uma personagem. Busquei me conectar mais com o improviso e o corpo, o instinto. Sinto que isso permitiu um voltar a escrita com mais profundidade e menos caretice. Mais coragem talvez.
Reli um diário dos meus 7 anos e fiquei bastante triste comigo de não ter registrado mais a minha avó, que perdi aos 9. Se pudesse voltar aos primeiros textos pediria para a Fernanda criança escrever mais sobre a vó Velter. E para seguir lendo muito de tudo desde muito cedo mesmo, mas buscar ler mais autoras mulheres e negras. Sinto que demorei um pouquinho a mergulhar na obra de algumas das minhas grandes mestras por falta de referência. “Escreva mais sobre sua avo! Insista mais em Clarice! Dá uma espiada logo em Hilda Hilst, Maya Angelou e Margueritte Duras!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou com três projetos de romance. Um deles, o menos claro, tem sido o que tem me chamado mais. Não vejo a hora de conseguir me dedicar a ele como ele merece. Estou ansiosa com o novo livro do Valter Hugo Mãe, me encanta a escrita dele, e esse revisitar remexer memórias que ele propõe nessa nova obra dialoga muito comigo. Adoraria ler a história das minhas avós e das minhas antepassadas. Tenho profunda curiosidade em saber os detalhes e sentimentos das mulheres que vieram antes de mim e não deixaram escritos. Estou lendo a auto-biografia da Georges Sand, e fico sonhando como seria a autobiografia de cada um dos escritores que amo.