Felipe Souza é escritor, autor de “Enquanto o infarto não vem” (Patuá, 2018) e de “Curriculum Vitae” (no prelo).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uma filha de 5 anos e a Rotina gargalha da minha cara. Mas eu a busco. E independente de como será meu dia, se seguirá uma rotina ou não, ele precisa começar com café. Como diria Antônio Lobato dos Reis, protagonista de Curriculum Vitae(romance no qual estou trabalhando agora, a ser publicado em algum momento feliz de 2019): “[…] Acho que sou capaz de matar alguém se não tiver tomado um café com alguma decência pela manhã e, quase sempre, depois do almoço também […], porque o café tapa os buracos vazios da alma, ele corrige as máculas que uma noite de sono ou um almoço bem servido podem ter deixado em seu espírito…”.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Em geral, funciono melhor pela manhã. Não são raras as vezes em que trechos sinuosos são milagrosamente desemaranhados depois de uma boa noite de sono (às vezes a Boa Noite de Sono gargalha da minha cara também, por motivo análogo ao da Rotina). A noite costuma ser melhor para ler, outra atividade de escrita.
Quanto aos rituais, se dá pra chamar isso de um, quase sempre escrevo ouvindo música. DevoEnquanto o infarto não vem a Yann Tiersen. Já Curriculum Vitaevem sendo parido ao som de Belquior, ídolo maior do protagonista do livro, o querido e já citado Antônio Lobato dos Reis. Escrever tem dessas coisas, às vezes os personagens nos dão dicas valiosas, que passamos a incorporar em nossa vida. Vai entender…
Agora, se música vale muito para que eu escreva, nem sempre isso é verdade para quando reviso. Em geral, a sobriedade do silêncio calha melhor quando estou assumindo esse papel (por vezes angustiante) de censor de mim mesmo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Leio todos os dias, penso a escrita todos os dias, mas não coloco palavras no papel todos os dias. Tenho trabalhado melhor com projetos e com os prazos que coloco (ou que me colocam) pra cada um. Quando começo um projeto, aí sim, acho importante ter uma meta de escrita diária, não abandonar o texto, olhar pra ele todos os dias, nem que for pra apagar uma coisinha ou outra, emendar uma coisinha ou outra, falar “bom dia” pro texto, essas coisas básicas. A vontade de procrastinar (sobretudo se o texto está emperrado) pode ser enorme e essa visita diária é bastante importante pra mim. Curriculum Vitaevinha sendo esboçado em minha cabeça há alguns anos. Até que um dia, depois de entregar o original de Enquanto o infarto não vem para a Editora Patuá, vi o anúncio do Prêmio SESC de Literatura! O problema era o prazo. Eu teria 50 dias para transformar em romance as ideias soltas que tinha na cabeça. Uma dessas ideias era que esse romance fosse uma espécie de mosaico que seria montado através das respostas de um entrevistado ultra-honesto em uma entrevista de emprego (honesto o bastante para dizer que seu maior defeito não é ser “perfeccionista”, como é praxe nessas entrevistas, mas ser “uma pessoa nada confiável, incapaz de guardar segredos” e que, ainda por cima, “não consegue acordar cedo por nada nesse mundo”). Fiz uma pesquisa rápida na internet para ver quais eram as perguntas mais comuns nessas entrevistas e caí numa reportagem com o seguinte título “As 50 perguntas mais frequentes em entrevistas de emprego”, de acordo com um site estadunidense. 50 perguntas. 50 dias. Estava feito! Eu escreveria uma resposta por dia e o romance estaria pronto, a inscrição pro concurso feita. E foi assim que pari a primeira redação do livro. Foi corrido, não fiquei exatamente satisfeito com o resultado final, mas eu tinha uma primeira versão completa do livro em mãos. Assim, 5 meses e um milhão de revisões depois, pude ter a calma para transformá-lo num texto suficientemente bom para ganhar o Edital para Publicação de Livros, da Secretaria de Cultura de São Paulo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começar é preciso! Acho que metade da dificuldade de escrever qualquer coisa é escrever a bendita primeira frase. Estava empacado com essa resposta, até que escrevi “Começar é preciso!” ali em cima e tudo deslanchou. Nem que for pra escrever 10 páginas e depois concluir que o que vale a pena é só a décima mesmo e que da 1-9 foi só aquecimento. Tudo bem. Aquecer também é preciso! Por tudo isso é que não sinto necessidade em ter tudo definido pra poder começar. Vou sentindo as demandas do texto enquanto escrevo. As vezes paro tudo pra poder pesquisar algo (dias desses li quase o Evangelho de Mateus inteiro para escrever duas linhas), mas não uso a pesquisa como pré-condição pra “começar”, mas certamente que a utilizo para “terminar”. Ninguém precisa saber o quanto o texto foi mexido, editado, esmigalhado. Comece e recomece quantas vezes for preciso, mas comece!
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Retomando um pouco o que disse na pergunta anterior, a melhor forma que encontro para lidar com travas da escrita e com o desejo de procrastinação (e eles flertam comigo o tempo todo) é escrevendo mesmo. Travou uma parte do texto, escrevo outra. Às vezes, apago tudo (ou a parte travada) e escrevo tudo de novo, testo caminhos novos, retrocedo pra poder avançar.
Sobre a pressão de não corresponder às expectativas, é algo que pode atrapalhar muito se a gente deixa a expectativa das pessoas tomar conta do que a gente escreve. Literatura, penso, deve ser algo autoral. Não acho que tenha que ser algo hermético, mas se tem que atender a alguma expectativa, é a do próprio autor mesmo. Ele deve fazer a melhor literatura que ele queira fazer, e não a literatura que esperam que ele faça. Que alegria se corresponder ao gosto e à expectativa de muita gente, mas não acho é o que deva ser buscado. Outras expectativas (a de onde o livro pode chegar, por exemplo), é algo totalmente imprevisível que vai além da capacidade do autor. Penso não ser saudável ter expectativas muito altas com relação a isso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Incontáveis vezes. Leio e releio e tresleio o texto antes de me decidir que está pronto (ou de me conformar com ele). Mas isso não significa que fico parando a cada linha, enquanto estou escrevendo, para checar se o texto está bom. A primeira redação de um texto é a mais fluida possível, uma torrente de palavras (quase) sem censura. Depois é importante deixar o texto descansando, voltar pra ele num outro momento (só não se esqueça de voltar mesmo!) e retomá-lo quando você estiver num outro estado de espírito. Se você está mal-humorado demais ou engraçado demais ou meloso demais num dia, acabará transmitindo isso ao texto e isso, ao menos nem sempre, será desejável. Ao trabalhar o mesmo texto em dias diferentes, será possível manter o equilíbrio. Uma coisa importante, sempre reviso meus textos em voz alta, por mais estranhamento que isso cause naqueles que moram comigo. Somente em voz alta é que consigo perceber se o ritmo está bom, se existe alguma rima indesejada ou algum outro tipo de “ruido” no texto (cacofonias ou palavras que se repetem numa mesma linha, por exemplo). Quando acho que está tudo muito bom, passo ao teste final: o texto impresso! Existem problemas que só consigo captar no papel, mesmo tendo lido o texto dezenas e dezenas e dezenas de vezes na tela do computador.
Sim, sempre escolho alguém para dar uma lida antes. Um olhar menos viciado que o meu. As pessoas em geral são boazinhas demais, mas sempre é possível aproveitar dicas valiosas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Adoro papel, nunca li um e-bookna vida, mas perdi completamente o hábito de escrever com papel e caneta. Escrevo tudo no computador, até mesmo os primeiros rascunhos. Nem por isso deixo de achar essencial o hábito de se anotar ideias, a qualquer hora do dia (é muito desperdício contar apenas com aquelas que aparecem no exato instante em que estamos com as mãos na massa – ou no texto). Mas nem mesmo nesses casos uso os bloquinhos de papel (por mais macios e cheirosos que alguns deles sejam), mas um bloco de notas que tenho baixado na tela inicial do meu celular (Google Keep, superprático, indicação da escritora Bruna Meneguetti).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Escrevo 24h por dia, mesmo que passe dias sem parir uma linha. Absolutamente qualquer situação do dia (até mesmo as mais enfadonhas) podem ser matéria-prima de literatura. Saber observar isso também é escrever (nesse exato momento estou aqui imaginando um personagem bonachão respondendo a uma entrevista sobre seus hábitos de escrita e fico aqui me controlando para não dar as respostas dele – muito mais interessantes, diga-se – no lugar das minhas). Lourenço Mutarelli uma vez disse, numa das oficinas que fiz com ele, que tem por hábito “colecionar ideias” e sempre achei que isso faz muito sentido para um escritor. Escrever é ter olhos para identificar a literatura (a poesia) das coisas e guardá-las bem, em bloquinhos de papel ou blocos de notas eletrônicos (vide resposta anterior), para usar num momento oportuno (ah, e ele chegará!).
Ah, é claro. O hábito maior de todos: ler e ler e ler. Não dá pra escrever (ao menos, minimamente bem) sem ler. Os clássicos, sim, são imprescindíveis, nos dão as bases, mas não acredito que dá pra ser um escritor contemporâneo sem ler outros escritores contemporâneos, sem saber como seus pares transformam os problemas contemporâneos em literatura. E opções não faltam. De grandes editoras (como Cia das Letras e Record, por exemplo) e sobretudo das editoras independentes que, contrariando a lógica do mercado, dão espaço para esses escritores e escritoras. Estão aí a Patuá, Reformatório, Dobradura, Penalux, Sete Letras, Fractal, Oito e Meio etc, fazendo um belo trabalho e sendo reconhecidas por isso, conquistando prêmios importantes e, sobretudo, editando boa literatura!
E como gosto de nomear os bovinos, segue uma listinha do que tenho lido ultimamente, entre os contemporâneos: Eduardo Sabino, com seu Naufrágio entre amigos; Maria Fernanda Elias Maglio, com Enfim, imperatriz;Marcelo Maluf, com Imensidão Íntima dos Carneiros; Rafael João com seuPelicano; Fábio Mariano com O gelo dos destróires; Maria Valéria Rezende com tantos livros, dos quais li Outros Cantos e Quarenta Dias; Yara Camilo com os contos dePor assim dizer; Aline BeicomO Peso do Pássaro Morto; Cristina Judar com Oito do Sete;Bruna Meneguetti e André Cáceres, com Corações de Asfalto; Márcio Dal Rio com A balada do crisântemo fincada no peito; Ana Paula Maia com Assim na terra como embaixo da terra… e tantos outros que ainda estão na minha listinha infinita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A grande mudança foi encarar a escrita como algo possível de ser praticada por pessoas vivas e não apenas por seres iluminados que supostamente nasceram com algum dom especial. A literatura e todas as outras artes podem e devem ser exploradas por qualquer um. Arte é manifestação, reconstrução, extrapolação de sentimentos e, portanto, coisa inerente a toda espécie humana e não a seres iluminados. E isso mudou muito quando passei a ler literatura contemporânea, a descobrir que eu podia encontrar esses escritores e escritoras na rua e de repente até tomar um café com eles (ter sido selecionado, em 2016, para o CLIPE – Curso de Livre de preparação do Escritor – inciativa incrível da Casa das Rosas, foi decisivo nesse processo). Foi quando passei a ver a literatura como algo pra mim e não apenas pra meia dúzia de Escolhidos. Quando virei essa chavinha, passei a me organizar pra escrever com regularidade, a ter projetos de escrita, a me ver, de fato, como um escritor. Acho que não teriainfarto, nem currículum, se eu não tivesse me dado conta disso.
Formalmente, desde a publicação de Enquanto o infarto não vem (livro de contos), tenho pensado em textos de maior fôlego, em extrair o máximo de uma ideia, e Curriculum Vitaeestá inserido nesse processo. Não que eu ache que romances sejam melhores ou mais complexos que contos. Nada disso. São processos diferentes, o desafio é apenas outro, e acho importante saber trabalhar com textos curtos e também com os longos. Nada impede que depois eu volte aos contos, afinal adoro eles. E também, como já disse, tenho pensado mais nos livros enquanto projetos. Para chegar aos 16 contos de Enquanto o infarto não vem, fiz uma seleção de contos com uma linha temática parecida, entre os o que tinha escrito nos últimos 2 anos (2016/2017). Agora penso na linha temática antes e passo a pensar os textos (ou O texto), desde o início, dentre de uma linha temática preestabelecida. Os dois caminhos são legítimos e possíveis, mas acho que a forma como estou trabalhando agora me dá um norte mais definido.
Quanto a voltar pra mim mesmo na ocasião da escrita de meus primeiros textos, diria apenas: “Continua, meu fio!”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
São muitos. Vou pinçando-os do Departamento Criativo do meu cérebro, conforme vão ganhando corpo. Estão entre eles um segundo livro de contos; um livro de poesias; um romance que tivesse como atmosfera os programas televisivos da tarde, com um sensitivo a la Walter Mercadocomo protagonista (ok, esse projeto eu já comecei).
Uma das coisas legais de escrever é ter contato com outros escritores (alguns que nem sabem que são), é ver alguns projetos nascendo desde os primeiros rascunhos (alguns deles concebidos na sua presença). Ver esses projetos tomando forma, ganhando corpo em forma de livro, é muito legal. Esses projetos de alguns de meus amigos, ainda esboçados, são os livros que gostaria de ler, mas que aindanão existem.