Felipe Ribeiro é escritor, tradutor e poeta, autor de Amargo Embargo (2013), Tijolos de Silêncio (2017) e O suor que sucede a febre (no prelo).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordar, tomar os antidepressivos, trabalhar, ir pra faculdade, arrumar a casa e pagar contas – moro só, então é isso.
Essa é minha rotina-base, não tenho uma “rotina de escrita” porque não estou dentro de uma classe privilegiada de escritores que podem construir uma totalmente voltada para a criação literária/execução de uma publicação. O que tento fazer, da melhor forma possível, é construir um “puxadinho” dentro da minha rotina habitual para a literatura e ele sempre depende de como foi o meu dia o que, às vezes, é uma sensação muito sufocante porque minha mente quer dizer algo, mas meu corpo está muito cansado pra isso.
É legal o corpo estar bem para escrever razoavelmente, mas não é uma regra, tento não ser escravo do meu corpo, mas senhor da minha mente – quando consigo.
Assim meu dia começa entre 3-5h da manhã, inclusive aos fins de semana. Tomo um café preto – mais nada – e sigo pra luta diária.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Tenho que trabalhar sempre na hora que dá, mas acontece de ser quase sempre de madrugada, quando a rua já calou o bico e o sol já está com tanta vergonha de matar a gente – que se esconde. Eu disse que minha rotina começa entre 3-5h da manhã por causa disso.
Preciso estar às 7h na faculdade, depois trabalho, então costumo chegar em casa sempre por volta das 23h-23h:30m. Quando perco o sono, tomo um banho, faço um café, acendo meu cigarro e começo a escrever. Quando estou com sono, mas não muito cansado, vou dormir e coloco o despertador pra tocar às 3h da manhã para poder digitar – e é ótimo! – assim tenho quase três horas para escrever antes de ir para a faculdade e recomeçar o dia.
Agora quando estou com sono e cansado, infelizmente “pulo” um dia de escrita e tento compensar no final de semana.
Acho a madrugada um período ótimo de se trabalhar porque é a hora que a loucura está solta no mundo, do jeito que o diabo gosta, e é estimulante pensar que, enquanto escrevo no apartamento silencioso, alguma coisa de muito emocionante está acontecendo em algum lugar do mundo e tem alguém vivendo isso – mas acho que é só ansiedade.
Não tenho nenhum ritual místico de preparação, não, mas gosto de ter meu café e o cigarro sempre por perto e de escrever nos dias que casam com o jejum de 24h que faço duas vezes na semana por razões espirituais (estudo muito o budismo) e sinto que isso tem tido efeitos positivos na capacidade do meu corpo estar completamente voltado e todo atento a qualquer estímulo do mundo. Se durante todos os dias, 24h, sou uma antena ambulante, nos dias que estou de jejum essa antena ganha uma “palha de aço” e fica toda potência.
Também sempre escrevo com minhas anotações por perto, pra me sentir seguro e menos com sensação de“olha essa folha em branco!” – não, eu já iniciei algo, só preciso tornar isso alguma coisa, mesmo que não seja um poema. O tornar a ideia em “alguma coisa”já é um avanço considerável.
Aos fins de semana, pela manhã, geralmente vou para a biblioteca do SESC, moro ao lado de um, e fico mais imerso porque o funcionamento da biblioteca é regido por um horário mais rígido – e isso é bom porque quando ela fecha tenho um fim de tarde livre para descansar, beber com amigos, limpar a casa, arejar a mente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Apesar de acabar, às vezes, acreditando ser um sonho criar uma meta de escrita diária, uma meta pessoal, como dizem os “coaching” por aí e essas listas-besteirol de “dicas de escrita”, sou bem tranquilo quanto a isso. Outros formatos de texto eu tenho “obrigação” de ter uma meta – como trabalhos acadêmicos, por exemplo, ou traduções.
Em poesia acho meio perigoso criar uma “meta”. O poema tem um mecanismo muito próprio para se desenvolver. No meu caso, a poesia surge de um caldo de cultura de epifanias diárias que, a priori, não controlo. Assim, me permito não escrever todos os dias, deixo a coisa decantar, se fazer à parte de mim, aceitar (é um exercício diário para um escorpiano perfeccionista) que nem sempre estou completamente no controle.
E isso não quer dizer que eu assuma que exista algo místico na criação, pelo contrário, é apenas o meu eu conscienteque abre espaço para o inconscientefermentar algo e esse inconsciente ainda é intrinsecamente eu.
Sendo assim, impor uma meta pode até atrapalhar um pouco o processo de criação, pôr a carroça na frente dos bois, afinal não somos máquinas de produção em série.
Se fazemos, hoje, literatura no Brasil é porque gostamos, nos alimentamos dela, mas temos um retorno nulo – financeiramente falando, é claro. Se eu tiver de colocar uma meta de produção em uma que paga as minhas contas, como no meu trabalho, obviamente o farei, por razões de sobrevivência, e acredito que isso é o que a maioria dos escritores independentes fazem.
Por outro lado, quando o livro já foi para a diagramação e tenho que fazer as provas, começa minha loucura: dezenas de trocas de e-mail com alterações para a editora e conversa com fotógrafo, com designer, leitor crítico, todo pessoal envolvido. Quando o projeto chega nessa fase, me obrigo à exaustão a trabalhar diariamente para que o livro seja impresso na melhor versão final possível para o leitor. Quando a impressão atrasa é quase sempre minha culpa.
Quem me conhece sabe que nesse período viro um zumbi, não durmo, choro à toda.
Apenas como observação: escrevo todo dia, mas de forma descompromissada, fluida, nos diários pessoais que mantenho. Esses sim, uma salada só e não mostro, nunca, para ninguém. Ficam trancados na cômoda.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Definitivamente a parte de pesquisa é a que mais gosto porque é uma loucura só. Quando me proponho a pesquisar algo, vou até às últimas consequências, sou um curioso compulsivo – e não quero tratamento.
Nessa fase eu leio, leio muito, releio, leio de novo, de tudo: artigos, livros, teses de mestrado e doutorado, entrevistas. Fico aproximadamente 1 ano, 1 ano e meio nessa: tomo notas pela casa inteira, rascunho poemas, trechos de prosa que podem vir a ser “versificados” no futuro, ouço músicas que me inspiram, etc. Meus livros são todos sublinhados, a lápis, e recheados de anotações minhas no rodapé. Preciso me policiar muito porque a gente sabe que uma pesquisa leva a outras e assim vai – saber a hora de “dar um tempo” é importante também.
Dia desses eu estava pesquisando a poesia confessional americana, de Robert Lowell até Sylvia Plath, para o próximo livro – quando vi já estava lendo os sermões do Antônio Vieira.
Acredito que nunca me movo da pesquisa para escrita, não tem como desvincular uma coisa da outra. Enquanto escrevo, estou pesquisando e vice-versa, apenas mudo o tempo de atenção que dou a cada uma dessas partes integrantes do processo de criação de uma obra.
Quando estou compondo, acabo lendo menos, mas tudo isso está dentro do mesmo caldo para mim. Quando tenho em mãos a maior quantidade de notas, poemas, rascunhos e material possível, imprimo tudo e encaderno já com o título que quero dar ao projeto – criar um título antes dá um norte, mesmo que seguramente eu vá mudá-lo no final de tudo – e fico com um calhamaço, geralmente, entre 200 e 300 páginas que, ao longo de mais um ano ou dois, vou fazendo as alterações, cortes e condensações necessárias, além de incluir ideias de epígrafes, agradecimentos (acho muito importante ter) e anoto minhas próprias críticas – tudo à mão.
Além disso, ainda na fase de pesquisa, defino os critérios que quero revisar todos os poemas, de acordo com o tema central e às coisas que quero experimentar no momento. Deixo essa folha de “regras”auto-impostas “em suspenso”. Por exemplo: “evitar gerundismo”, “evitar usar ‘como’ em construção de metáfora”, “pensar em títulos de uma palavras apenas”, etc.
Ao final de cada impressão, passo todos os poemas na peneira dessa “folha de critérios” e realizo as modificações necessárias que meus olhos não viram/não se recordam de primeira.
Depois jogo tudo isso pro computador novamente, incorporando as modificações que fiz à caneta, repito o mesmo processo de impressão/encadernação quantas vezes forem necessárias. Quando mando para a editora, enfim, a versão final e vou olhar o resultado disso tudo, estou com três ou quatro versões impressas do material que chegou na livraria provavelmente com 1/3 a menos do tamanho da primeira versão.
É muito louco isso, mas gratificante. Geralmente levo em torno de quatro anos entre um trabalho e outro e acho um tempo bastante razoável entre pesquisa, criação, revisão, publicação. Confesso que sinto inveja roxa de quem consegue publicar livros anualmente.
Gosto de escrever sobre diversos arcos de tema dentro de uma “temática” só, falando já a nível de elaborar um projeto. Posso escrever cinco poemas diferentes, mas, na fase de revisão, me encarrego de procurar as soluções necessárias para que os poemas tenham convergência, ou ao menos acariciem, o tema central que me propus a discutir.
E isso é o que acredito ser o mais difícil, o ponto crucial onde tudo pode desandar ou pode dar muito certo. Às vezes tenho por mim que consigo, às vezes passo longe, mas não me julgo tanto – afinal a crítica literária já está aí pra isso, não é?
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Isso é muito louco. Trava de escrita pode levar qualquer um às raias da loucura.
Quando não consigo escrever, me sinto vazio e tento achar culpa em tudo: na rotina, no capitalismo, na faculdade, em mim mesmo, na depressão – e tudo isso só piora e faz a gente entrar num círculo sem fim de culpa que não é nada bom.
Esquecemos que essas travas são uma fase, elas passam, ou apenas estão sinalizando um cansaço mental muito grande. Nessas horas passo até a acreditar na besteira do “inatismo do talento”, me sinto uma fraude, é horrível. Quando isso acontece busco refúgio na arte: assisto filmes, série, vou ao teatro, tomo uma cerveja com amigos, vou vivendo, acumulando coisas, até essa fase maldita terminar. Ela chega do nada e vai embora do nada também.
O problema está justamente no que você faz durante esse blank space.
Geralmente não procrastino, não tenho essa opção, nem muitos momentos de tédio.
Não me cobro muito em relação a procrastinação na criação porque ela é um elemento constitutivo, quase um pré-requisito para uma obra. Me cobro mais quando é um trabalho da faculdade/firma, uma conta que atrasei ou tenho um prazo com a editora, alguma revista ou projeto – porque, apesar de todos os nossos demônios, temos que ser profissionais sempre.
Posso estar morrendo (de dor de cabeça, de amor, de tédio) na noite anterior a uma entrega, mas se me comprometi com aquele prazo, procuro entregar com qualidade e sem desculpas – quando não consigo, abro o jogo com antecedência e peço mais prazo com razões válidas.
Sou muito caxias em relação a prazos que não envolvem somente a mim porque sei que quem me cobra um prazo está sendo cobrado também por uma estrutura muito maior.
Também não tenho medo de não corresponder às expectativas, me sinto livre em relação ao outro, a poesia te traz essa liberdade. Não tenho nada a perder nem a ganhar, pra ser franco.
Tenho medo, muito, de não conseguir executar o que planejei – mesmo, em alguns casos, sabendo que o sucesso da minha execução possa gerar uma “não-correspondência” à expectativa de quaisquer pessoas e já sei quais expectativa são.
Outro temor que tenho, acho que o mais cruel, é “chover no molhado” em todas as interpretações possíveis – putz, isso me desbaratina total.
Amo trabalhar em projetos longos porque aprendo muita coisa com eles.
Não tem jeito: apesar do mundo acelerado em que vivemos, há coisas que só se aprende a longo prazo, não tem jeito, não tem atalho, somente a trajetória.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Incontáveis vezes. Meu editor sabe disso e até me zoa, mas tudo com muito carinho.
Acho extremamente importante. Além de analisar os poemas de forma individual até sentir que eles estão como eu gosto (quadros suspensos no ar), ainda os analiso dentro do conjunto do que me propus a fazer. Tanto que já descartei poemas avulsos incríveis de projetos inteiros, mas que não dialogavam com o todo, arcando com as consequências.
Que dó, um dia acho espaço para eles, não jogo nada fora, reciclo tudo, amo uma lixeira – mas para fuçar nela. A lixeira não é minha inimiga, é minha melhor amiga.
Atualmente tenho quatro pessoas de confiança a quem mostro os poemas e os projetos nas versões finais – ainda brinco com eles: “só mostro e recebo opiniões de vocês quatro para não ficar um projeto muito polifônico”. Se eu fizer merda, quero que a responsabilidade seja só minha, isento vocês dela!
Digo isso porque muita gente me envia material para que eu faça leitura crítica e acho isso de uma tremenda responsabilidade e temos o dever de ser gentis e apontar as falhas com leveza. Geralmente mostro os erros que eu mesmo cometi e daria uma boiada para que aquela pessoa que me procurou não o cometa – a não ser que por conta e risco. Vejo muita gente não possuindo a menor responsabilidade na hora de fazer uma crítica e repito, como mantra, todos os dias: não vou ser como essas pessoas. Você pode estar destruindo a autoestima de alguém.
O cuidado que tenho com autores iniciantes é o mesmo que com autores mais conhecidos, para mim não existe essa diferença na hora da crítica, mas gosto de aconselhar novos escritores, explicar o mundo editorial, quase como uma forma de compensar toda ausência de orientação que possuí na minha formação. Tem espaço para todo mundo.
Acredito ser fundamental um escritor possuir leitores críticos, com o olhar menos viciado que o seu, mas que também não sejam necessariamente pares ou pessoas da área, porque por mais que a poesia tenha um“público restrito”, também não quero me acomodar nessa “máxima”e ficar no nicho de leitores de Letras/Comunicação/Filosofia, mestrandos e doutorandos.
É importante, mas não oxigena as coisas. Vira e mexe mando poemas para minha mãe, meu pai do interior de Minas, meus irmãos, vizinhos – dou o mesmo peso para a opinião deles que para uma opinião mais especializada, tento colocar tudo na balança, de verdade.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Temos uma relação muito boa. Escrevo tudo no computador, exceto o diário e as notas, e só passo a trabalhar efetivamente a lápis/caneta depois de ter uma primeira versão impressa do projeto. Estou sempre ligado nas redes sociais à procura de novos canais de publicação fora do nicho editorial – revistas, sites, etc – e envio alguns poemas na cara e na coragem.
Nunca fui convidado a publicar algo por nenhuma publicação/periódico, talvez por não ser um “poeta de nicho”, sempre corri atrás para publicar meus poemas e cobrei quando passavam do dito prazo de avaliação. Isso é profissionalismo. Ou é assim ou corro o risco de um projeto que demorei tanto para construir não ter a menor chance de alcançar novos leitores. Escrever é fácil comparado à publicar e mais fácil ainda quando comparamos com o quanto é difícil ser lido. Não de olhos passados, não sua biografia e lattes, mas lido de fato – isso é que me interessa.
Uso muito a tecnologia para divulgar novos escritores, fazer leituras de poemas de autores que gosto, divulgar coisas que faço e o que mais gosto: ficar sempre antenado no que tem de novo para que eu possa convidar para colaborar comigo – fotógrafos, críticos, revisores, designers para a capa, enfim, toda a galera envolvida no processo. Tenho muita liberdade, na editora Candido, de fazer isso e acredito que não me daria bem com um processo criativo que não esteja nas minhas mãos, apesar de todo o diálogo com meu editor e cada conselho dele ser uma joia preciosa pra mim – o trabalho do editor é fundamental para a literatura, não se enganem. Já vi livros medianos em suas versões originais se transformarem em grandes livros nas mãos de editores competentes.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Elas chegam de todos os lugares, todos os estímulos possíveis e é uma batalha para filtrar tudo. De uma observação atenta e não-alienada da realidade, de entender o momento que o país vive, de dentro de mim e da minha condição de portador de depressão.
As ideias surgem a partir de muita leitura também, a leitura te dá uma vontade de diálogo muito grande, até que o diálogo acaba virando um monólogo e depois volta a ser diálogo quando você colocou aquela questão levantada num poema e agora ele está na rua.
Esse processo é lindo.
Não sei se existe uma resposta certa pra essa pergunta, em cada um a criatividade se manifesta em momentos diferentes e iniciadas a partir deexperiências diferentes, mas acredito que a leitura, a escrita, a análise da conjuntura do mundo a nível político-social (com recorte de classe) e a apreciação de todas as manifestações da arte fazem parte do meu grupo de hábitos que estimulam, em diversos níveis, um pensar criativo.
Viajar pro interior também – cadê minha casa no campo?
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Antes minha produção era caótica, agora aprendi ao menos tentar formatar um pouco esse caos, ter mais paciência. Não que eu deseje colocar forma em tudo, existem esculturas amorfas, pinturas abstratas, poemas herméticos que são a coisa mais linda desse mundo, eles têm alguma coisa. Definitivamente não sou um poeta que é extremamente obcecado com a forma – buscar esse alguma coisada poesia é o que me alimenta.
Quando digo “formatar”é apenas por ausência de uma palavra melhor, que não me ocorre, é esse tentar racionalizar um pouco mais todo o processo.
Antes a poesia cavalgava em mim, hoje a gente já reveza um pouco esses papéis.
No passado eu não acreditava que a poesia, embora eu sempre tenha sido apaixonado, desde criança (com sete anos ganhei meu primeiro concurso estadual de poemas), fosse adquirir um papel tão vital na minha vida. Se eu pudesse voltar – e quem não quer? – diria para não ser enganado e apressado a publicar meu primeiro livro aos 19 anos, deixar a maturidade fazer sua parte no jogo também. Que muita coisa infinitamente melhor iria acontecer depois disso.
Quase sinto pena daquele menino, mas não o julgo. Porque se você não nasceu em berço de ouro é ensinado muito cedo a ir atrás do seu sonho, do seu espaço, o sentimento de urgência pelas coisas é muito forte – de saber que precisa encerrar uma etapa para começar um trabalho formal novo, um período novo na faculdade que você batalhou tanto para entrar e batalha ainda mais para permanecer, etc.
Também diria para não perder tanto tempo discordando, sozinho, de como os espaços culturais estão muito subordinados a políticas públicas, de como tem tanta coisa errada e de como os artistas são desrespeitados nesse país, seja pelo governo, pela capitulação do mercado e por um certo “purismo” acadêmico. Perdi um tempo precioso tentando mudar as coisas ao invés de procurar meus pares e fortalecermos uns nos outros. Hoje em dia nem tenho mais tempo pra discordar.
E diria para escrever menos sobre o amor e mais sobre o papel e a função social desse sentimento, seria chover menos no molhado.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Que pergunta difícil. Tô terminando o processo de revisão para publicar esse ano um novo livro de poemas e já estou em fase de pesquisa para um romance. Quero realmente me desafiar a escrever um. Vivo pelas coisas que ainda não fiz, acho que isso é a única coisa que me mantém aqui. Quero também pintar quadros, escrever para o teatro e compor letras de música também, porque o silêncio dos textos é algo que tem me massacrado.
A combinação palavra, corpo e vozé de uma potência absurda. Meu editor escreve para o teatro e é ator também, acredito que isso acordou algum mecanismo em mim que antes eu não enxergava.
Além disso, um tempo atrás conheci uma grande cantora e jovem intérprete, Camila Lopez, tive o privilégio de vê-la cantar no Beco das Garrafas e me tornar aquele amigo de outro estado, até hoje guardo a cachaça do sul que ela me deu quando veio aqui em casa.
Mano, eu nunca tinha escutado uma vozdessas ao vivo. O que ela faz, o que a palavra se torna na voz dela, nenhum poema vai conseguir o efeito-mesmo, nunca, só tinha visto isso ser tão intenso com a Elis Regina e no Teatro do Zé Celso. Foi um alinhamento espiritual, definitivamente. Estou absolutamente convencido que alguns poemas são feitos para a voz, remetendo à tradição poética oral, e outros são feitos para o papel/telas como, por exemplo, a poesia concreta, hermética e a obra conceitual em si. Camila deve ter sido uma poeta de tradição oral em outra vida, não é possível. Vale muito a pena pesquisar o trabalho dela.
Outra coisa que acredito ser importante e definitivamente tornei isso um objetivo: cada projeto ser completamente diferente do outro, ainda que tentem te colocar numa caixa de poeta político, poeta concreto, poeta romântico, poeta hermético, etc. Almejo ao máximo um tipo de literatura camaleônica. Se conseguir fazer com que cada projeto meu seja diferente do outro, exceto por vícios estilísticos que é inevitável de se ter, já vou me sentir extremamente feliz e grato. Mesmo que isso torne toda minha produção “irregular”- o que me interessa é o conjunto da obra. Ah, gostaria de dar mais oficinas de criação também, realmente gostei porque aprendi muito mais do que ensinei de fato.
Acredito piamente que o livro que quero ler já está por aí, só não chegou nas minhas mãos, vou rezar para o acaso. Quero ler todos os livros futuros da Ana Martins Marques, sou vidrado na escrita dela. Se não me engano, acho que foi dela que li isso, ela estava com um projeto de escrever poemas que personagens clássicos da literatura brasileira escreveriam.
Imagina um poema escrito por Capitu e por Policarpo Quaresma pelas mãos da Ana?
Rapaz, nitroglicerina pura. Gostei muito dessa ideia. Mas não posso afirmar que foi dela que li, realmente não lembro, mas estou quase certo. Quero ler os livros não-escritos do João Silvério Trevisan, um dos nossos maiores ficcionistas vivos.
Escolher o que você lê, o que vai ser lido, é um ato político também – assim como acredito não existir curadoria isenta política e ideologicamente, tudo acaba desembocando na soma das suas experiências e da sua leitura do mundo.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Essas suas perguntas são incríveis porque meio que faz com que a gente reflita um pouco mais sobre nosso processo de escrita e acho que isso já responde, em partes, sua pergunta. Costumo planejar o início e o fim – o meio vou deixando levar, vou me seguindo. Ganhei de presente de um amigo um livro do Barthes, O prazer do texto, é bem curto, mas muito poderoso e depois da leitura fiquei mas confortável em calcular menos e sentir mais a fruição do processo todo. Quando começo um projeto novo, penso: o que tenho a dizer? Como quero dizer? Possuo ferramentas para dizer? Parece pouco, mas tudo isso leva a um planejamento bem longo. No final, com o livro pronto, preciso dar forma a ele, potencializar o texto (sem tirar a atenção dele) com o projeto gráfico e artes paralelas e novas tecnologias que gosto de incorporar, mas que façam sentido com aquilo que está sendo dito.
Por exemplo, em meu último livro, Tijolos de silêncio, de 2017, eu estava com a antena meio que ligada para todo essa onda neopentecostal conservadora e um certo divisionismo entre as pessoas – até mesmo na arte, onde vejo muita gente recebendo um conteúdo passivamente para matar as horas, mas sem real discussão e compreensão do que foi dito. O próprio livro era um manifesto para que a gente se atentasse ao outro, desse voz a esse outro e ficássemos mais atentos a tudo. O que fiz? Chamei alguns fotógrafos, eu mesmo fiz algumas, e realizamos várias fotografias da cidade; outras fotos eram sobre momentos que me marcaram muito com outras pessoas; outras, ainda, eram artes de outros artistas incríveis. Se não me engano, foram umas 10 ou 15 fotografias que imprimimos em papel cartão. Em cada cartão, no verso, escrevi à mão poemas inéditos que ficaram de fora do livro. Os cartões foram numerados e depois colocados dentro dos livros na noite do lançamento, aleatoriamente, de maneira que, para se ter a narrativa completa, era necessário ler os 15 em sequência. Foi divertido ver as pessoas interagindo para descobrir essa narrativa. As donas dos cartões 7 e 8 são amigas até hoje. São detalhes como esse que procuro também pensar.
Em relação a sua outra pergunta: pra mim é muito difícil escrever a última linha e acho que isso é o mais comum. Tenho dificuldade em saber onde aquele movimento terminou e outro poema, com outra voz, já está se imbricando ali no meio. A última frase geralmente é mais difícil porque é meio que uma síntese, pra mim, algo que fecha a narrativa, mas também puxa o próximo movimento também – se estivermos atentos ao sinais. Faço minhas as palavras de Clarice ao comentar sobre um conto que escreveu e não terminava nunca:”díficil explicar”.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Minha rotina é intensa, tipo mesmo. E não com literatura, mas como trabalhador brasileiro morando em uma cidade caótica como o Rio de Janeiro. Escrevo poemas ao longo dos dias, nas brechas do tempo, vou anotando nos livros que vou lendo pelo transporte público, escrevo de madrugada quando chego. Acordo de madrugada para escrever. Não tenho calendário. Depois eu reúno tudo e tento dar uma coesão, vou alterando, editando, reescrevendo até chegar na forma que eu quero.
Prefiro me dedicar a um projeto por vez, mas isso não me impede de escrever outras coisas que não tenham a ver com o livro que estou escrevendo no momento para poder utilizar mais pra frente. Me dedico a um por vez por dois motivos: o tempo (acredito que quem se dedica a mais de um projeto artístico é bastante privilegiado) e o foco. Acho que já disse mas aí em cima que considero quatro em quatro anos um tempo que funciona muito comigo entre um livro e outro.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Curiosa, essa pergunta, nesse momento, onde estou completamente obcecado com ela. Tenho lido muitos livros sobre isso, os últimos foram: O grão da voz, do Barthes; A voz do escritor, de um crítico inglês que gosto muito, A. Alvarez; O escritor e seus fantasmas, do Ernesto Sabato e O pacto autobiográfico, do Lejeune. Lendo e me descobrindo, acredito que o que me motiva é isso: encontrar a minha voz. Ainda que de forma um pouco tortuosa, essa é a delícia.
Um indivíduo que não possui o hábito de ter voz, não possui o hábito de ser ouvido, possui seus locais de fala usurpados pela elite intelectual (que é só um nome bonitinho para elite de classe mesmo) dificilmente conseguirá desenvolver uma voz para iniciar seus primeiros escritos – salvo raras exceções -, pois esse indivíduo terá algumas questões como: “o que tenho a dizer?” ou “isso que tenho a dizer é realmente importante” ou ainda “ninguém vai se interessar por isso”. Antes que sejam citadas as exceções, já antecipo: o que são elas diante do grande potencial que nem sabemos, que ainda estão nas gavetas?
O que chamo de ‘vocação para o ouvido’, essencial em literatura, é um privilégio de elite e a prova viva disso é que os ouvidos estão a postos para saber a narrativa que levou Bill Gates ao primeiro milhão, por exemplo, a narrativa de fragmentos (de outros autores, claro) que inspiram aquela atriz global. Os ouvidos estão à postos para a classe dominante.
Obviamente quando Alvarez estudou a voz, buscava um sentido ontológico pra ela, mas não levou em conta algumas partes desse tecido social, o que é natural, pois ele e seu país sempre tiveram vocação para o ouvido, a grande literatura inglesa, mas ainda é um estudo incrível em termos de ciência. Se não acrescentou, acrescento eu: a voz do escritor só pode ser desenvolvida em toda a sua plenitude através da emancipação de classe. Fora isso, qualquer estudo literário e seu corpus já é um recorte de classe e tudo é pensando a partir dele e para ele.A origem dessa reflexão foi somente a própria experiência em desenvolver minha própria voz, que nunca tive socialmente por classe e orientação. E somente com nosso corpo na rua, arriscando, sintonizando ouvidos como os nossos, sem medo, podemos fazer algo sobre isso.
A literatura me permite exercer essa busca. Me permite encontrar a minha voz, ficcionalizando-a. Foi justamente nesse momento que me reconheci (não é fácil) como escritor: que eu faria tudo para encontrar essa voz, que eu queria mais do que escrever uma obra consistente, um catálogo de poemas perfeitos – não, quero a imperfeição, mas no fim a trajetória. Se conseguir alcançar isso, já tô feliz.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Procurar não reproduzir o estilo dos autores que li. Isso é muito difícil porque é uma luta inconsciente e a gente sempre perde. Aos poucos fui relaxando e entendendo que sempre as nossas leituras escorrem para nossa literatura, não tem jeito, o que temos de fazer é tentar colocar a nossa realidade, a nossa subjetividade e nossas ideias de construção ali. Pra ser sincero não sei ainda se tenho um estilo próprio porque, nas artes, tudo é emprestado, emulado de alguma forma. Os estilos se borram muito. Claro que identifico algumas coisas que penso: putz, isso é tão “eu”! Alguns temas recorrentes, algumas ironias, a construção da obra em si – mas isso vem com o tempo, muito estudo, leituras. Isso é quase como um duplo que a nasce junto conosco, mas tem um desenvolvimento paralelo e a gente aprende a lidar em algum momento.
Sobre a segunda pergunta: misturo tudo. Tenho a impressão que, no início da adolescência, Agatha Christie me marcou muito e percebo um ar de mistérios nos meus poemas mas recentes, geralmente com um “plot” no último verso, do início até a construção do clímax. Clarice Lispector, Anne Sexton, Sylvia Plath, Roberto Piva e João Silvério Trevisan também me influenciam muito. Mas a lista é interminável. Leio muita gente contemporânea mesmo. Sou vidrado na Adelaide Ivánova, no Maiky da Silva, Ana Martins Marques, Sthepanie Borges. É uma inspiração sem tamanho e verdadeiros presentes.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Pergunta cruel. Só três? Vou tentar.Ok, indicarei quatro.
Provavelmente a lista vai mudar se você me perguntar isso semana que vem.
Recomendo Ariel, da Sylvia Plath, por ter sido um marco da poesia americana e conseguir unir temas tão ditos, meio preconceituosamente, como “confessionais”, só que com uso impressionante da uma técnica, de uma voz tão única que é um livro de tirar o fôlego. A Sylvia sabe construir um clima, imagens incríveis, sobre guerra, maternidade, casamento, ser mulher que é de morrer de beleza. Tem um verso que ela fez, depois de ter a primeira filha, em um poema sobre a infância de Frieda, que ela diz observar “as vogais subindo como balões” que eu acho a imagem mas fantástica sobre o processo de aquisição da linguagem que eu já vi em um poema.
Gosto muito também de Devassos no Paraíso, do João Silvério Trevisan, um calhamaço com a história da homossexualidade e dos LGBT’s no Brasil dos tempos da colônia à atualidade. É um livro de uma importância que não consigo nem conceituar, infelizmente invisibilizado nas academias, mas aos poucos ganhando o espaço que merece. É um livro de formação para todo pesquisador, escritor, toda pessoa LGBT brasileira – uma ferramenta indispensável para entendermos a nossa própria história, mas não só, o tempo inteiro o João está pensando o Brasil ali também.
Ano passado li um livro de um jovem poeta de Cansanção, Bahia, que me arrebatou.
Ave, Eva, do Maiky da Silva. Quando ele me enviou o livro e eu li, fiquei embasbacado com as imagens que ele construiu, o projeto gráfico, eu pude sentir o calor no rosto quando terminei a leitura. É um pouco difícil definir esse livro em poucas linhas – como também não é fácil falar sobre o Poema sujo, do Gullar, mas esses dois livros possuem muitas semelhanças estruturais, temáticas, pensa muito o Brasil e suas relações de poder. Falo com o Maiky até hoje de como esse livro é enorme e o convidei para escrever um livro a duas mãos comigo. Ele, sensatamente, recusou.
Vou indicar um da Adelaide Ivánova, 13 nudes, que é um livro que eu li no ônibus, voltando da FLIP, onde comprei sua obra completa até agora. Eu já tinha sido arrebatado com O martelo, mas tenho um carinho especial por 13 nudes por ele ter sido construído dentro de uma proposta de revelar o que tiramos das experiências das nossas relações diárias – ainda que efêmeras, a cabeça de um poeta transforma um dia de convívio em anos de aprendizado e sempre algo a dizer. De cada um a quem ela se dirige, algo ficou, não necessariamente o objeto a quem se está dirigindo. Escrever é se expor e – acredito que ela possa ter pensado sobre isso – Adelaide se arriscou muito lançando esse livro e gosto de quem se arrisca.
13 nudes é um Mrs. Dalloway pelo avesso.