Felipe Martinez é doutor em História da Arte, escritor e professor da Escola do MASP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu começo meu dia de maneira lenta. Café e alguma leitura. Normalmente notícias ou algo que não estava nos meus planos. Depois tento desenhar um pouco até que o dia comece a assentar. Se eu tiver escrito algo na noite anterior, aproveito para revisar de manhã. Finalmente respondo e-mails e já é hora de almoçar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou uma pessoa noturna, então a parte criativa funciona melhor a partir de umas 20:00 até às 02:00, mais ou menos quando o sono bate. Para mim, esse é o melhor horário para escrever, produzir e elaborar alguma coisa. Gosto do silêncio que se instaura nesse horário: parece que o tempo é mais meu. Sem compromissos marcados, sem o barulho da moto que passa na rua, sem o sentimento de que as pessoas estão apressadas. Está todo mundo dormindo e isso me deixa tranquilo. Tem algo de um silêncio que não é só sonoro. Silêncio é uma coisa muito rara, sobretudo para quem mora no centro de São Paulo, como eu. É claro que, caso tenha algum prazo apertado, também escrevo durante o dia. Mas idealmente, prefiro escrever à noite e revisar de manhã.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende se eu tiver um prazo. Quando tenho que entregar um artigo acadêmico, escrevo de um modo mais disciplinado. Na época do doutorado, tentava escrever todos os dias, pelo menos uma página em estado bruto, que depois seria revista e revista. Mas saber que o bloco já estava trabalhado, me dava uma segurança para polir depois.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que começar é mais fácil do que terminar. Geralmente chegar a um primeiro esboço não é difícil: o problema é fazer esse esboço se transformar em uma versão final. São muitos ajustes de forma, reconstrução, reorganização. Esses processos são longos e mais difíceis para mim. Acho que foi o William Zinsser que disse em seu famoso manual de estilo: escrever é reescrever. Eu não poderia concordar mais. É assim que funciona para mim, o esforço maior está em reescrever, lapidar, aparar, cortar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu definitivamente gostaria de procrastinar menos e tenho fracassado diariamente nessa tarefa. Só consigo vencer a procrastinação quando sei que tenho um prazo de algo importante a cumprir. Mas mesmo assim é uma luta psicológica em que tento programar meu corpo para sentar na cadeira e fazer o que precisa ser feito. E mesmo se consigo sentar, parece que todas as demandas do mundo são mais importantes do que escrever. Então tento escrever qualquer coisa, mesmo que depois eu jogue fora, é importante saber que algo foi feito e que não fui derrotado pela procrastinação.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sim, há algumas pessoas que são muito importantes para meus textos. Não gosto de terminar um texto importante sem saber a opinião delas. Por exemplo o Jorge Coli, meu orientador de doutorado, professor da Unicamp, grande amigo e colunista da Folha, ou outro grande amigo, Andrej Slivnik, economista e historiador como eu, capaz de fazer excelentes leituras sobre o que escrevo. Acho que o trabalho de escrita tem muito de coletivo, né? É bom contar com olhares inteligentes e descansados sobre nossos textos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo quase tudo no computador. Exceto algumas anotações quando estou na rua – que levo assim que possível para o computador. Outro dia vi um vídeo da Angelica Freitas falando sobre a importância do caderninho, de escrever nele. E acho que ela tem razão. O duro é que dá uma dó de escrever nesses caderninhos de capa e folha bacana, como Moleskine ou Cícero, que são vendidos por aí. Como é que eu vou colocar meus garranchos naquelas folhas-creme-acid-free?
Gosto de pensar na escrita disciplina das cartas do Van Gogh, por exemplo. Olhando para os fac-símiles, é possível ver uma linha que segue seu caminho e uma caligrafia segura de quem foi treinado para escrever daquele jeito. Acho que escrever no computador tira essa dimensão gráfica da escrita e creio que me julgo excessivamente quando escrevo à mão porque espero algo agradável de um ponto de vista formal. Não que minha letra seja feia, mas quando a linha fica diagonal, torta, isso me exaspera. Acho que o computador não tem isso, basta apertar o backspace e podemos voltar atrás como nada tivesse acontecido. Sem folha amassada, sem risco, sem sujeira no papel. Talvez eu deva conversar com minha analista sobre isso.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que isso depende do que estou escrevendo. Mas geralmente tenho ideias lendo e assistindo a filmes. Por exemplo, se estiver escrevendo um texto acadêmico, vou refletindo sobre o tema enquanto leio um autor importante e tomando notas mentais. Depois tento relacionar o que o autor disse com as ideias que eu tinha e vou organizando as coisas enquanto escrevo. Acho que o momento da escrita é também um momento de organizar as ideias, de colocar em linguagem organizada os pensamentos soltos, isso é parte integrante da construção do meu raciocínio. Não consigo pensar antes e escrever depois: escrever faz parte de pensar. Tem que coisas que só aparecem no texto, que não podem ser previstas e que vão se revelando, como se tivessem vida própria. Quando estou escrevendo textos de ficção, costumo ter ideias assistindo a filmes. Gosto de contar com minhas palavras as cenas que vejo, como se reencenasse em linguagem aquilo que passa na tela como cinema.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que minha escrita amadureceu bastante nos últimos anos – pelo menos desde a defesa do meu mestrado em 2015. Esse amadurecimento se deu, sobretudo, pela prática de escrever e ler, mas também pela orientação e dicas de algumas pessoas importantes, como meu orientador Coli, e as oficinas de escrita que frequentei nos últimos anos, como a do Ronaldo Bressane e a da Noemi Jaffe, de quem sou aluno hoje. Comecei a participar dessas oficinas para tornar minha escrita acadêmica mais fluída, mas acabei pegando gosto. Desde então não parei mais. As oficinas são de alto nível e divertidos. As críticas e sugestões dos colegas e professores têm sido fundamentais no meu processo de aprimoramento da escrita. Defendi meu doutorado agora no começo de 2020 e a qualidade da minha escrita foi bastante elogiada pela banca, sinal de que as coisas amadureceram ao longo do tempo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de poder publicar um livro sobre história da arte, um manual introdutório, mas que tratasse das obras e dos artistas da perspectiva de alguém que nasceu e vive no Brasil. Talvez tendo os acervos brasileiros como guia, dentro de uma proposta educativa, de apresentação das obras, museus e dos movimentos artísticos. Sobretudo para as pessoas que estão distantes do mundo das artes e que não podem pegar um avião para ir para a Europa ou para os EUA.
Além disso, acho eu gostaria de publicar um livro de ficção. Romance ou livro de contos. Um projeto que ainda não comecei e nem sei se vou começar. De qualquer forma, esse desejo colabora para me manter escrevendo e aprimorando minha escrita, e me ajuda com os textos acadêmicos que inevitavelmente tenho que produzir por demandas profissionais. Acho que muita gente deve ter um desejo parecido, não?