Felipe da Silva Freitas é doutorando em direito na Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como diz o poeta, eu tenho muito sono de manhã… Não gosto de atividades matutinas, acordo às 9h e só depois de um bom café, cuscuz e uma cuidadosa leitura de notícias políticas, leitura de e-mails e de todas as redes sociais é que eu consigo começar a trabalhar. Fui assessor parlamentar e guardo deste período uma forte compulsão por notícias. Mesmo depois que começo o trabalho fico de olho nos alertas que chegam pelo celular. É um péssimo hábito, mas não consigo livrar-me dele com facilidade. Resolvi conviver com este costume.
Deste modo, o meu trabalho pela manhã é muito vagaroso e só depois do almoço é que as coisas pegam ritmo de verdade.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para escrever eu preciso ter tudo sobre a mesa: o caderno aberto, as canetas, o notebook e os livros que pretendo citar. Quando trabalho em casa fico no escritório onde tenho todos os livros na estante ao lado. Na mesa mantenho uma boa gramática, um dicionário e os dois livros de referência para o trabalho que estou fazendo. Isso me ajuda a manter a concentração.
Aprendi que nada melhor do que um dicionário e uma gramática sempre que queremos um sinônimo ou precisamos elucidar dúvidas. Os recursos virtuais neste caso não me parecem suficientes e por isso eu prefiro o velho exercício de “passar o olho nas páginas” à procura do significado das palavras e ler as regras que fazem com que seja esta ou aquela a forma correta de construir uma oração.
Como considero a escrita algo complexo – e confesso certa dificuldade no manejo de algumas regras gramaticais – sigo considerando um esforço muito rico este de ir à fonte (o dicionário e a gramática) sempre que a dúvida aparece.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu vivo com várias janelas abertas. A minha atividade profissional de consultor e as minhas obrigações acadêmicas do doutorado fazem com que eu sempre tenha que escrever, mas geralmente sobre temas diferentes uns dos outros. Uma consultoria sobre processo legislativo, uma pesquisa sobre narrativas em espaços de privação de liberdade, um trabalho mais técnico sobre estatísticas criminais e ainda a pesquisa do doutorado sobre controle da ação das polícias. Sempre tenho muitas tarefas diferentes sobre a mesa e confesso que este é um pouco o meu combustível para escrever. Gosto de mudar de tema quando o cansaço chega ou quando a inspiração vai embora. Sempre fiz assim na minha vida e me alimento desta aparente confusão.
Começo a escrever lá pelas 10h30, depois do café, e vou até 2h, 3h da manhã, com intervalos para refeições, viagens pelo facebook e saídas para reuniões ou o que mais eu tiver que fazer durante o dia. Em geral não sou rigoroso com os horários de escrita, mas todos os dias escrevo algo. Na madrugada certamente é quando fico mais produtivo…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu desenvolvo escritas muito diferentes. Na pesquisa é preciso ter uma sistematicidade maior, aí eu sigo mais ou menos as seguintes etapas: definição do método, levantamento das informações, leituras, sistematização das notas e aí parto para o texto. Geralmente não volto muito a novas leituras depois que considero que fiz os meus fichamentos e organizei as minhas ideias. Depois da estruturação inicial o texto sai sem muito sofrimento e aí começo as sucessivas revisões.
O tempo que demoro entre coletar as informações e sistematizá-las é sempre um problema. Aí é que aparecem os limites.
Para textos menores, artigos para blogs, palestras ou entrevistas escritas (como esta) sigo um roteiro menos rígido: vem a ideia e escrevo de uma vez, sem notas, sem script, sem roteiro. Os refinamentos, as referências, os ajustes teóricos eu faço depois nas sucessivas releituras, mas a primeira escrita deste tipo de texto vem de uma única vez. Esta é a escrita que mais gosto de desenvolver, mas infelizmente esta não é a minha principal atividade.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Trato as travas da escrita como trato a minha incorrigível insônia. Do mesmo modo que não brigo com a falta de sono, também não me debato com a trava na escrita. Mudo de assunto, vou fazer outra coisa ou mesmo vou ficar “fazendo nada” até que a inspiração venha de novo. Logicamente que esta “leveza” não pode ser exercitada se estou diante de um prazo, se tenho um texto obrigatório a produzir ou se é o caso de um compromisso profissional inadiável. Aí não tem jeito: é encarar a página em branco do arquivo de computador e simplesmente escrever, saia como sair o texto.
Como já disse, sempre tenho muitos trabalhos diferentes, portanto vou oscilando de um para outro tentando fazer malabarismos com os prazos a cumprir. Muitas vezes me pego adiantando um texto cujo prazo é bem longo e deixando para depois o texto que tenho que apresentar amanhã. Esta é uma prática completamente inadequada, mas muito repetida por mim. Infelizmente não são poucas as vezes em que eu tenho um texto para o ano seguinte já escrito e o texto cujo prazo já foi ultrapassado vai ficando para trás… quando isso acontece não tem jeito, chega o desespero e aí ocorre a trava maldita.
Penso que parte deste processo se articula com o modo hierárquico que a universidade tem assumido ao longo dos anos. A competição, o produtivismo e sobretudo os esquemas de dominação que regulam as autorizações para “quem pode falar” (e escrever) dentro da vida acadêmica integram este processo de trava que institui bloqueios à nossa produção e à nossa capacidade de “dizer a própria palavra” e de se “auto representar na cena pública” com alguma leveza e liberdade. Discutir estas dimensões das nossas travas também me parece algo bastante relevante dentro dos cursos de graduação e pós-graduação e é algo que tenho trabalhado em mim e no diálogo com outras pessoas negras. Penso que este é um tema a ser tratado em termos subjetivos, epistemológicos, políticos: o que tem nos impedido ou atrapalhado de falar com nossa própria voz?
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não publico quase nada que escrevi antes de contar com a leitura de pelo menos uma colega. Adoro o diálogo estabelecido a partir de um texto e reajo a estas críticas com novas versões, com o refinamento do argumento ou com a supressão de trechos inteiros de um texto. Cultivo este diálogo desde os primeiros textos que escrevi como militante da Pastoral da Juventude e do movimento negro, quando contava sempre com a generosa leitura das companheiras Hildete Emanuele, Raquel Pulita, Elis Souza e Solange Rodrigues. Depois, na graduação e na pós-graduação, esta rede se estendeu e passei a contar com as interlocuções de Riccardo Cappi, Cristina Zackseski, Thula Pires, Ana Flauzina, Renata Antão, Luciana Garcia, Jocivaldo Anjos e muitas outras pessoas que – de modo permanente ou irregular – leem e criticam meus textos antes que eu os envie para publicação. Esta rede de parceiros funciona de modo muito significativo na minha produção acadêmica.
Além disso, valho-me da leitura em voz alta, que sempre revela repetições de palavras, erros de pontuação, incorreções no uso de um verbo ou que evidencia a falta de ritmo ou cadência de uma frase. Quando se trata de um texto muito importante opto por ler em voz alta, gravar a leitura e ouvir novamente para ver se as ideias estão adequadamente postas no lugar. Este é um exercício maravilhoso, mas que não é sempre possível em face dos malditos prazos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
O texto escrito a mão quase que saiu completamente da minha rotina de trabalho. Hoje eu escrevo tudo no computador (às vezes no celular) e tento manter tudo organizado em pastas que me permitam o fácil acesso depois. De notas rápidas a textos finais, passando por fichamentos, ideias soltas, tudo vai direto para arquivos do word.
O caderno segue sempre comigo para aquelas situações em que não é mesmo possível o uso do computador ou do celular e fica ao meu lado para anotações rápidas enquanto estou digitando. Se estou no meio da escrita e lembro que preciso comprar algo ou ler uma notícia eu anoto no caderno e sigo o meu percurso, isso é uma estratégia para não me perder na dispersão. Antes já tentei ter vários cadernos, um para cada tema, mas agora desisti e mantenho as anotações sobre todos os assuntos juntas no mesmo lugar. Acho que assim tem funcionado melhor.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Aprendo muito conversando com pessoas, lendo biografias e participando de debates políticos. Aí é que eu me exercito e testo meus argumentos. Nada melhor do que uma mesa de bar formada com gente inteligente e solidária para organizar a cabeça e preparar para um bom texto… Infelizmente o cotidiano de escrita da tese, os afazeres profissionais e a violência deste momento político têm sequestrado estas oportunidades de intercâmbio e acho que isso tem impacto – negativo – na forma de escrever.
Para mim, a escrita é um esforço de auto-apresentação, mas, também um exercício de diálogo. Quem escreve vive no fio da navalha entre fazer da escrita um pedante itinerário de auto-elogio das próprias ideias ou construir um percurso generoso e dialógico no qual uma explicação é também um convite para novas leituras e novas hipóteses. Este é um trabalho difícil, mas penso que esta é a principal tarefa de quem escreve, seja como um literato seja como um pesquisador(a).
Luis Mir – um historiador em relação ao qual tenho profundas e radicais divergências – escreveu algo na introdução do livro Partido de Deus que me parece bastante significativo sobre este processo de criação. Ele diz que não há inocentes quando se escreve ou quando se lê. “Quem escreve opta, escolhe. Detrás das palavras, da textura, e da configuração do texto está presente o que se privilegia ou se rejeita, a visão de mundo em que se inscrevem autor e obra (…)”
Deste modo, acho que as escritas (e a minha escrita logicamente está inserida nisto) são exercícios perenes de militância política nos quais escolhemos entre o que queremos esquecer e o que queremos lembrar sobre nós e sobre aquilo que estamos estudando. Assim, acho que a principal fonte de inspiração para os meus textos são as minhas opções políticas e as minhas escolhas afetivas na construção do mundo que eu desejo ajudar a construir. Acho que é esta a minha mais fértil fonte de inspiração teórica, acadêmica e metodológica: o ambiente político em que vivo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Tenho sensações ambivalentes quanto ao meu jeito de escrever ao longo do tempo e o fato de estar no meio do processo de escrita da tese favorece estas sensações. Se por um lado acho que eu ganhei em conteúdo, por outro lado acho que a vida acadêmica foi me tirando a leveza e a poesia da escrita. Brinco que aprendi a escrever fazendo texto de opinião para jornal do movimento negro e panfleto para ato político. Confesso que era ali onde eu mais me realizava como escritor.
Hoje (na era dos memes e do facebook) tendo a dar vazão ao meu gosto pela escrita nos textos de opinião que mando para os blogs e jornais. Ali é onde eu mais me sinto feliz com o que escrevo e onde consigo achar o prazer de me comunicar através do texto.
Nos artigos acadêmicos e técnicos luto para não deixar morrer aquele estilo mais livre e fluido, mas acho que esta é uma tarefa mais difícil. Penso que encontrar uma escrita equilibrada que seja densa, mas que não seja enfadonha é o sonho de todo mundo que está na pós-graduação.
Por outro lado, considero que esta é também uma disputa política sobre o sentido da produção do conhecimento. Tenho estado cada dia mais preocupado com o adoecimento na vida universitária, com a pasteurização dos nossos modelos de análise, com a violência dos regimes de verdade, com a tirania de hierarquias acadêmicas que sequestram pensamentos e que interditam trajetórias.
Entendo que é preciso recobrar algum espaço para a vivência prazerosa e para a desmitificação dos supostos sistemas de mérito que figuram nefastamente em nosso meio. É preciso que todos nós – em especial negros, mulheres, pessoas LGBTT – saiamos da posição de “sermos ditos” pelos dominantes e que possamos “dizer a nossa própria palavra” e a partir de nossos próprios formatos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ah, são muitas e muitas coisas. Minha caixa de projetos não-começados é quase infinita. (risos)
Para ficar em um único exemplo, quero, quando terminar o doutorado, construir um blog sobre política ou assumir mais organicamente a escrita de uma coluna de opinião. Acho que estou em busca de uma forma que me permita atuar na fronteira entre os campos disciplinares sem ter que o tempo todo responder se sou jurista, se sou militante ou se sou cientista social…
Mas, para quem está no meio da luta para escrever uma tese, melhor não falar em qualquer outro projeto para não ser arrogante nem presunçoso. Uma coisa de cada vez.