Felipe Cruz é professor e escritor, autor de Acúmulo (2016), Os cegos dormem (2018) e Você nunca fez nada errado (2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como sou professor, acordo bem cedo para estar às 7:30 da manhã na escola em que trabalho. Dificilmente escrevo nesse horário. Minha rotina matinal consiste em tomar café da manhã e ir de bicicleta até o colégio. Entre as aulas é bem mais comum que eu faça anotações sobre ideias que pretendo desenvolver.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
À tarde. Em geral limpo a casa antes de escrever. É um sinal de que algo está para acontecer, rs. As tarefas domésticas me ajudam a alcançar a tranquilidade e gentileza comigo mesmo que preciso ter para conseguir produzir algo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou extremamente desorganizado durante o período de criação. É comum que eu abandone e esqueça de textos por longos períodos, até que eu retorne a eles por algum tipo de curiosidade (é comum que eu esqueça, também, o conteúdo do texto). Nunca me impus uma meta nesse período de criação. No entanto, durante a revisão e finalização do texto trabalho de maneira rigorosa todos os dias, em todos os horários disponíveis.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Minha escrita tende a ser motivada por elementos bem palpáveis, materiais, dos dias. Começa com uma pergunta. Daí a pergunta passa por “testes”: eu preciso saber, antes de começar a escrever, até onde aquela questão vai; quantas outras questões podem surgir dela; se existe, nela, algo para além do meu interesse pessoal. Uma vez que a pergunta siga sem resposta, começo a escrever. É raro que eu compile notas; na maior parte das vezes escrevo poesia, e não vejo tanta utilidade em fazer notas para esse tipo de texto. Prefiro escrever sem interromper-me até onde conseguir. Vou até onde é possível sem parar para pensar no que, exatamente, estou escrevendo. É de um fôlego. A partir desse primeiro corpo de texto começo meu trabalho principal (e, penso, o trabalho principal de qualquer autor), que é revisar. Pensando na segunda pergunta, acho muito difícil começar. É preciso contrariar muitos ímpetos de autocensura. Muitas vezes escrever me parece um incômodo e esperar que os outros leiam, um incômodo maior ainda. Ainda bem que a palavra insiste. Sobre a pesquisa e a escrita, não consigo dissociá-las, mesmo que em um trabalho acadêmico. Na literatura, em especial, as duas estão presentes ao mesmo tempo. Escrever é a minha pesquisa mais profunda, e vice-versa. No próximo livro que vou publicar, Você nunca fez nada errado (Monomito, 2019), o tema era tão profundamente íntimo que seguir com ele no texto era me entregar a uma pesquisa delicada porque necessitava ser a mais minuciosa. É preciso, pra mim, ser minucioso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não sei se lido, rs. Não sei porque, no meu modo de ver, nunca realmente resolvo essas questões em nenhum dos textos que escrevo. Mesmo o texto já publicado, as travas em relação a ele permanecem, bem como o medo de não corresponder às expectativas, a ansiedade e mesmo a procrastinação (porque procrastino lê-lo depois de publicado, e acho que essa releitura é muito valiosa considerando o que se pode aprender para os próximos textos). O que acontece é que se torna insuportável que aquele texto não exista. Não consigo nem dormir. É o texto que se impõe com uma força superior à dos meus melindres. Como se o texto me vencesse pelo cansaço. Pode parecer meio fatalista quando colocado nesses termos, mas não é. É uma alegria. É a confirmação de que o que está escrito é mais do que eu. Ainda que eu continue duvidando de ser eu o mais indicado para organizar aquelas ideias na forma de palavras.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu nunca deixo de revisar. E diria, inclusive, que a revisão mais “brutal” acontece depois de o texto ser publicado. É quando mais me arrependo de várias escolhas – o que, evidentemente, é muito frustrante, rs. Neste sentido, concordo que não se termina um texto, se abandona. Quem disse isso? Valéry? Não lembro…
Mostro meus textos para outras pessoas, sim. É muito importante pra mim. Antes mostrava mais, eu penso. Mas realmente acho uma amolação, rs. Aí fico com vergonha. Acho que coloca a pessoa numa posição difícil. Apesar de que o que eu quero quando mostro algo para alguém é pura e simplesmente a reação daquela leitora, daquele leitor ao texto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu era muito resistente a digitar meus textos. Isso só acontecia na última etapa do processo. Com os poemas ainda é assim – escrevo à mão, reviso muito ainda à mão e quando já me parece próximo à versão final, digito no computador. Os textos em prosa, geralmente, eu começo com pequenos parágrafos escritos num caderno ou num pedaço de papel qualquer, mas ainda no começo da formação da ideia passo para o computador. A prosa eu sinto que é mais organizável assim, mas só descobri isso na feitura do Você nunca fez nada errado, que é meu primeiro livro em prosa, e acho que foi porque fui percebendo que a revisão da prosa é completamente diversa da do poema, do verso. Na prosa se altera parágrafos inteiros, lida-se com porções muito maiores de texto; pra mim é meio impraticável fazer isso à mão.
Tem uma ferramenta que uso bastante, do celular, que é o gravador de voz. Excelente para fazer notas quando se está andando na rua.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Todas as minhas ideias, me parece, vêm da observação do entorno. Observação e estranhamento. Acho que fui encontrando mais o que se chama “voz autoral” quando passei a prestar mais atenção ao que me cercava, no presente, e ao que me seguia, do passado. O elemento criativo principal para mim, há algum tempo, é a vida doméstica. A casa, seus objetos, seus habitantes, seus tempos. Sempre amei esses elementos. Lembro do artigo de Auerbach sobre Ao farol, da Virginia Woolf, um dos livros que mais amo. O artigo se chama “A meia marrom”, referência à meia que a protagonista do livro está tricotando na primeira parte do romance. Woolf extrai tanto dessa meia, toda a tessitura do texto está lá – é justamente isso que o Auerbach pontua. Ela faz o mesmo com as flores em Mrs. Dalloway, assim como a Sylvia Plath faz com as revistas de moda em A redoma de vidro. Me interessa muito isso, os objetos inofensivos. Eu gosto como a literatura perverte todos eles. Na literatura nada pode ser inofensivo. O meu principal hábito para me manter criativo é duvidar. Demorei para aprender isso. Crescemos muito mais interessados em ter razão. E, repara, não é duvidar para chegar à resposta – pelo menos não acho que seja esse o caso da arte. É duvidar porque nós todos somos muito limitados. Qualquer coisa está incompleta. Aprendi com Wislawa Szymborska.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou? Sinto bem menos medo. Respeito muito mais as necessidades do texto. Quando se escreve muito a partir de experiências pessoais, como é o meu caso, acho que é comum incorrer num equívoco: confundir o que o texto precisa com o que nós precisamos. Acho que o que eu preciso, a falta que lateja quando escrevo, não é uma coisa que o texto vai me dar – isso vai vir do afeto dos amigos, da minha relação comigo mesmo. O texto é outra coisa. Ele vem dessa experiência pessoal, mas se ele sobreviveu a todas as minhas dúvidas e inseguranças é porque aquela experiência pessoal está apontando para algo que não sou eu. Algo que não se resume a mim. É em função dessa coisa que me ultrapassa que preciso trabalhar.
O que eu diria a mim mesmo se eu pudesse voltar a quem eu era enquanto escrevia os primeiros textos é: continue. Eu não tentaria mudar nada, acho. Realmente acredito que todas as etapas percorridas foram necessárias para que eu estivesse aqui, agora, escrevendo isso, pensando sobre isso. Sou grato, na realidade, ao tímido menino que escrevia e escondia as folhas de papel debaixo do colchão. Não sei o que teria sido de mim sem ele.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ultimamente tenho pensado muito que eu gostaria de escrever um bom livro de gênero. Uma história de terror ou uma ficção científica muito bem realizadas. Invejo muito artistas como Jane Austen e Shirley Jackson, elas conseguiram justamente isso: Austen, no romance de costumes, Jackson nas histórias de terror. Acho dificílimo o trato com convenções de gênero. Como escrever um soneto em 2019? A forma, é claro, não está esgotada. O gênero, mais do que qualquer outro elemento literário, evidencia as limitações e as habilidades de uma autora ou de um autor. É o desafio mais interessante para mim, nesse momento.
Quanto ao livro que eu gostaria de ler, não posso dizer com toda a certeza que não existe, mas vamos lá: vivo na Amazônia, uma região marginalizada do país, e gostaria de ler um romance que tratasse da formação de uma personagem LGBTT nesse cenário. Que não é só um cenário, é expressivo demais para ser considerado apenas um cenário. Eu gostaria de ler isso porque a experiência amazônica carrega consigo a tensão da nossa relação com a floresta, o que inclui nossa relação com os antepassados, com os rios, as plantas, os animais, as tradições passadas adiante como que num sussurro. É tudo muito metafísico, nesse sentido. Ao mesmo tempo trata-se de uma região tão violenta, de costumes e ações ainda tão preconceituosos, brutais. Os povos tradicionais assassinados. Os ribeirinhos abaixo da linha da pobreza. As grandes obras que destroem tudo. Uma região em que a culpa cristã pesa mais também, eu sinto. Temos a relação maternal e carinhosa com Nossa Senhora de Nazaré, que ainda assim representa uma igreja, uma ordem social LGBTTfóbica. A trasladação do círio passa pela praça da república e logo depois começa a festa da Chiquita, a maior festa LGBTT do estado. Isso é muito tenso. Muito contraditório. Muito visceral. Penso que a nós, como numa espécie de projeção do que foi feito com os povos tradicionais, é negada uma identidade complexa – somos o povo da floresta destituído de várias nuances nas representações feitas de nós pelo centro, a sexualidade estando incluída aí. Onde estão as histórias de amor entre mulheres na Amazônia? Entre homens? Os transexuais que vivem numa região em que o acesso a tratamentos hormonais é extremamente difícil? Me parece que há conflitos interessantes demais nisso tudo para que continuemos a não escrever a respeito. Muito já se fez na área da performance, até onde eu sei. Mas na literatura essa experiência parece inexistir. Nós, amazônidas, somos cercados de silenciamentos.