Felipe Brandi é doutor em Histoire et Civilisation na Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A primeira hora da manhã é importante para começar o dia de trabalho, mas sinto que minha “rotina matinal” não é duradoura, mas varia pouco a pouco, talvez de um semestre para o outro. De que “rotina” se trata? É difícil ser muito concreto, o que acabaria caricaturando demasiado. Mas posso dizer que entendo “rotina” como o hábito de ler as notícias ao despertar, de checar o e-mail para ver se há alguma mensagem de trabalho ou – o que é sempre melhor pela manhã – de um amigo. Estes seriam os hábitos (quase) diários pela manhã. Hábitos às vezes perigosos quando se está dedicado à escrita, pois os jornais às vezes tomam muito tempo, sobretudo com a internet, e há o risco de se perder uma parte importante da manhã. Por esta razão, quando estou muito concentrado na escrita de um trabalho que me parece estar avançando bem, desfaço esta rotina e me impeço de ver jornais e e-mails até o final do dia, quando sinto que o dia foi produtivo e me autorizo, antes de dormir, um momento na internet para “desligar” do trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Certamente, tenho o meu horário de predileção para o trabalho, que é à noite e, se possível, madrugada adentro. Creio que esta predileção não se explica apenas pela calma, o silêncio e o frescor noturnos ou por ser o horário em que me sinto mais à vontade para estar com os meus livros e os meus textos, mas se explica também pelo que a segunda parte da sua questão já supõe. A saber: a preparação para a escrita. A tarefa de escrever é curiosa no sentido em que ela exige de você duas atitudes contraditórias: de um lado, uma preparação lenta, ruminando frases e expressões, revendo as coisas escritas na véspera, relendo textos que vão ser determinantes para o que se há de escrever; de outro, a coragem de se lançar sem pensar muito mais, como num mergulho. Pessoalmente, gosto muito da preparação lenta (me dá um imenso prazer corrigir o que já escrevi, reler inúmeras vezes os autores que pretendo utilizar, ver se não há nada mais a extrair deles, etc.), e tenho que admitir que isso contribui para o meu hábito de trabalhar tarde da noite. Dedico muito tempo nesta revisão-preparação (não chamaria no entanto de “ritual”, não entendo dessa forma) e não raramente sinto que me deixo distrair e levar pela revisão. Quanto a se lançar impetuosamente sobre a escrita, sem divagar, posso dizer que esta era a minha prática quando era mais jovem e escrevia em português. O que me dava prazer era justamente o mergulho. Mas isso foi alterado quando fui morar no exterior e passei a escrever em outra língua. O desafio era – continua sendo! – árduo e, sinceramente, muitas vezes desanimador. Acabei desenvolvendo então certo medo de me lançar, de começar, acompanhado de uma vontade imediata de desistir antes de tentar. Começar a escrever deixou de ser apenas uma atividade, como era até então, e passou a ser uma espécie de desafio, exigindo uma dose de coragem. Por isso, certamente, o deleite dos preparativos, das releituras, revisões e de todas estas outras práticas que rodeiam (e adiam) a escrita. Talvez, esta sensação de intimidação e de desafio explique também este hábito adquirido de começar o dia consultando e-mails e percorrendo os jornais, empurrando para depois o que tanto intimida.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta de escrita diária. A atividade de pesquisa, ao menos para mim, continua tendo primazia sobre a escrita (é o que dizia do prazer de ficar consultando e relendo os meus autores de referência). Neste sentido, talvez eu me preocupe mais com a minha “meta de pesquisa” diária do que com a “meta de escrita”.
Posso afirmar muito claramente que escrevo em períodos concentrados. Minha vontade é a de acrescentar: períodos muito concentrados. Quando estou dedicado a produzir um texto – seja um artigo ou um capítulo de minha tese, que me ocupou durante muitos anos –, tento escrever todos os dias. Procuro para isso me isolar completamente. Consigo durante algum tempo. Quando concluo, preciso então de algum tempo de descanso para poder depois “abrir um novo dossiê”. Este costume de trabalhar por períodos concentrados acarreta um dado talvez importante: sinto muita dificuldade de realizar duas tarefas de escrita simultaneamente, alternando. Preciso me dedicar a uma tarefa de cada vez, colocando-as em fila.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Esta pergunta é difícil. A dinâmica é sempre muito subjetiva. Não reparo muito no que estou fazendo quando me preparo para escrever, então respondo tentando olhar retrospectivamente e tentando entender qual seria esta dinâmica.
Quando cheguei a reunir anotações e leituras suficientes, a minha dificuldade maior consiste em organizar os dados, não em começar a escrever. Minha impressão – mais uma vez, falo tentando olhar retrospectivamente – é a de que começar a escrever acaba sendo, neste estágio, quase o que há de mais fácil. Algo que se impõe a você, desde fora. Não será “desde dentro”? Enfim, as leituras estão feitas, fico com a sensação de ter compreendido o ponto que desejo estudar, as notas se acumulam… A escrita então irrompe como um ato natural, que não é possível conter. Em outras palavras, a escrita se torna espontânea. Ela brota. Seja desde fora, seja desde dentro, ela se impõe sobre você, sobre o trabalho, sobre a massa de papéis e anotações empilhados sobre a mesa ou no chão. Não me lembro de pensar: “agora é o momento de começar a escrever, de passar para a escrita”. É algo que, em determinado momento, não é mais possível impedir.
Isso não significa que a pesquisa fique para trás. Não acredito nesta divisão pesquisa/escrita como atividades independentes ou estanques. Ao contrário, uma vez iniciada a escrita, o trabalho diário consistirá precisamente – como já dito acima – em rever, repassar e ruminar novamente as notas, os textos, as referências, tal como devem vir a se articular no interior do texto em construção.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Boa pergunta. Difícil também. Há muitas maneiras de lidar com o que você chamou de “travas da escrita”, mas também muitas formas de procrastinar e de lidar mal com os bloqueios e todos estes obstáculos que se apresentam à escrita. Aqui também, sinto que minha postura é diferente de quando, mais jovem, vivia no Brasil. Jovem, não procrastinava, não bloqueava, não sentia ansiedade na hora de escrever. O fato de escrever em outra língua, para mim, é algo que alterou a minha relação com a escrita, que alterou, portanto, a minha dinâmica de trabalho. Minha resposta a esta pergunta seria demasiado longa. Limito-me então a dizer que procuro contornar este sentimento de desconforto com a escrita me distanciando um pouco do trabalho, ao invés de insistir teimosamente. Sinto necessidade, como todos, de fazer outras atividades: caminhar, ir a livrarias, procurar algo novo para ler e me deixar ser surpreendido, e também ouvir as músicas que me agradam (neste quesito, ao contrário da literatura, não há espaço para novidades, mantenho-me fiel às minhas “referências” de sempre).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso dezenas de vezes. É incontável. Refiro-me aqui, sobretudo, à minha tese de doutorado. Sobre mostrar a alguém o que escrevo, não. Não costumo mostrar. Aliás, não costumo ficar divulgando os meus textos que já estão publicados. Detesto receber e-mails de colegas com o link de sua nova publicação. Se eu estiver interessado no que alguém publicar, irei buscar! Não precisa me enviar o anúncio do novo número da revista tal que contém o seu mais novo artigo. Isso deve tomar proporções terríveis com o que se chama hoje de “blogs” ou redes sociais, que jamais acesso. Prefiro pensar que os meus amigos e colegas encontrarão o que escrevi no momento adequado para eles. Não me agrada esta necessidade de se divulgar com alarde os seus próprios feitos e escritos, de se enviar o link dos seus textos para todos os contatos da sua lista, esperando apenas ser aplaudido. Isto é perseguir elogios.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gostei muito da pergunta. Tenho que admitir que escrevo no computador. É a minha ferramenta, desde a universidade. Gosto muito do Word, que continua até hoje, depois de muitos anos, me surpreendendo, como na primeira vez o utilizei. Não paro de descobrir novas possibilidades. É impressionante o conforto de se ter à disposição, em casa, um programa que permite construir, editar um texto que tem todas as características de um texto profissional. Sinto calafrio sempre que penso nas teses feitas no papel. Fico admirado quando me contam de suas teses digitadas naquelas máquinas duríssimas de bater, ou feitas à mão, com lápis ou caneta, com papel carbono sob cada folha para se conseguir as cópias a serem entregues aos membros da banca. Parece que foi há muito, mas é tão recente. E isso é o que me deixa, ainda hoje, depois de vinte e cinco anos utilizando diariamente o Word, admirado e surpreso com esta ferramenta maravilhosa, que em tão pouco tempo revolucionou completamente a escrita em casa.
Para mim, foi uma grande surpresa, a descoberta do Word. Eu pertenço a uma geração que passou do caderno da escola para o Word, sem antes utilizar a máquina de escrever e a máquina eletrônica. Do meu caderno pautado ao Word, diretamente, sem intermediários: o salto foi imenso e até hoje me deixa maravilhado.
Dito isto, sempre senti uma melancolia diante do avanço desenfreado da tecnologia. Pertenço a um tempo pré-internet, e é a partir dele que falo e desejo enxergar o mundo. Desde cedo, experimentei um sentimento de culpa por escrever no computador. Escrever de verdade é escrever com o lápis sobre o papel. Pessoalmente, ainda que digite os meus textos no computador, sempre senti necessidade de trabalhar com lápis e papel: todas as notas, todos os rascunhos, todas as revisões e releituras, eu as faço com lápis. E sobre qualquer suporte: blocos, pedaços de papel, bilhetes de metrô usados, post-it, envelopes abertos e no verso de correspondências. Todos os meus textos têm a mesma proporção de Word e de lápis, caneta e papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
De onde vêm as ideias? Esta é uma questão metafísica, que eu não ousaria tentar responder. Prefiro pensar como Machado de Assis, pensar que as ideias são órfãs, não se inventam e nascem de ninguém. Elas, no entanto, misteriosamente se fazem presente, invadem o pensamento deste e daquele, ganham novos adeptos, se desmembram, se expandem e se deixam reformular. Isso para dizer que as “minhas” ideias vêm, só podem vir de um fundo cultural compartilhado, coletivo, de um núcleo de referências que eu utilizo e do alegre encontro com os excelentes professores e amigos que são exemplos para mim e com os quais tive a honra de conviver e aprender. Sempre me senti criativo quando assistia às aulas dos meus professores na PUC-Rio. Ainda hoje, gosto de assistir aulas. Detesto a ideia de ter tido de deixar de ser estudante, de ser aluno. Sempre saio motivado de uma boa aula. A pergunta então é: o que fazer para se sentir criativo quando já não se é estudante? Acho que, principalmente, ler autores prazerosos, se concentrar no trabalho, passear, ouvir música. Para mim, é fundamental ir a exposições. Gosto de frequentar exposições de arte. Visito a cada mês os meus museus prediletos, e não canso de retornar aos demais museus que já conheço. Para mim, a proximidade da arte é muito importante. Não consigo imaginar um trabalho criativo sem a frequentação assídua de exposições, museus, concertos e aulas de professores estimulantes.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
O que mudou no meu processo de escrita ao longo dos anos foi, fundamentalmente, o fato de ter passado a escrever numa língua estrangeira. Esta é uma mudança radical, que perturba completamente a sua relação com a escrita e – o que é algo distinto – com a prática de escrever. Possivelmente, quem não experimentou esta mudança radical não terá ideia da sua intensidade. Temo, inclusive, que haja quem, desconhecendo a dificuldade, se mostre propenso a minimizá-la. São necessários muitos anos para se adquirir um conforto mínimo com uma nova língua e para se sentir plenamente à vontade nela, décadas talvez.
Não me refiro aqui a escrever textos acadêmicos chatos, pré-formatados e escolares. Mas escrever realmente. Eu diria: “para valer”. Não, não é nada simples. Exige um esforço enorme ao longo de muitos anos.
A minha tese foi concluída ainda recentemente, então não disponho de recuo suficiente para imaginar outro modo de escrevê-la. Creio que a escrevi como desejava. Precisei de muito tempo, por causa dos efeitos de escrever numa nova língua e numa nova linguagem, num quadro de pensamento que me era completamente estranho, mas sinto que a escrevi como achava que ela deveria ser escrita. Tenho certeza de que muitos não estariam de acordo com as escolhas formais que assumi, mas estas escolhas foram, tanto quanto podem ser escolhas desta natureza, deliberadas e refletidas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há muitos projetos que eu gostaria de empreender. Mas são difíceis de serem levados a cabo simultaneamente. Então, um de cada vez. Para não contornar a sua pergunta, diria que eu gostaria de me dedicar a uma edição erudita da obra de algum historiador contemporâneo. É desafiador, pois dificílimo. O desafio é partir de uma reflexão teórica contemporânea para então mergulhar na erudição de um aparato crítico inteiramente a construir, erguido sobre referências bíblicas, textos em latim, na companhia de todos os Migne, os Guizot, os Mansi, os Prévost, os Brial, os Mabillon, os Bayle e os Waitz. É assustador e fascinante ao mesmo tempo. Um empreendimento de fôlego, longo, mas que julgo necessário. E que, além disso, não tem sido feito na área de Historiografia. Os medievalistas se interessam por este tipo de trabalho, mas não os especialistas de Historiografia e da Teoria da história, tanto por certo desconforto (compreensível) diante desses monumentos de erudição quanto pelo pressuposto de que o aparato crítico de uma edição erudita representa muito tempo subtraído à interpretação das principais ideias teóricas de um autor.
Que livro eu espero ver escrito? Acredito que esta é a pergunta na origem de toda tese de doutorado. Com certeza, quando escrevi a minha, pensava o tempo todo estar escrevendo não apenas uma história que eu gostaria de conhecer melhor, mas de estar compondo o relato de como eu gostaria que esta mesma história me fosse contada. Mas não sei qual livro eu gostaria que fosse escrito. Continuo achando estimulante descobrir que outros escrevem apaixonadamente novos livros que eu sequer poderia imaginar.