Felipe Blanco é e não é. (e o que ele não é não anula o que ele é e o que ele é não se sobrepõe ao que ele não é.)

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como posso & como consigo. Por exemplo, na casa de Laura, começo o dia em silêncio. É um acordo lapidado pela relação. Até às 9 busco o silêncio dos gestos enquanto ela medita. Na minha casa, acordo com disco na vitrola, qualquer um, não por ser vitrola nem por ser disco, mas pela possibilidade de ouvir música fora de uma tela, pela possibilidade de silêncio ao final do lado A. Mas isso quando consigo levantar da cama. Quando não consigo, ou melhor, quando não preciso, normalmente me perco em algum vórtice de reprodução automática desenfreada no youtube sobre abelhas ou buracos de minhoca ou enxertos de árvores frutíferas ou compilados de extração de cravos e espinhas no rosto, rock, hot dog, “play it cool, baby”. Quando preciso levantar, quando vou pegar no batente em alguma cozinha, minha rotina matinal é mais estreita e taurina e começa já antes de dormir. Calça xadrez passada, sapato antiaderente alinhado, avental pendurado no prego e bandana dobrada na mochila. Durmo, acordo, tenho prazer em vencer o toque do despertador. Levanto, faço uma crepioca, que é ovo batido com tapioca, passo um café, fervo leite e derramo esse leite dentro de uma prensa francesa quebrada que tenho. Descobri que se prenso o leite lá dentro e se subo e desço o mecanismo da prensa repetidas vezes, chego na espuminha de leite de cafeteria. Se eu tenho algo parecido com uma rotina matinal, eu diria que é essa mistura de ovo com tapioca, esse café passado pra 1 e essa espuma de leite. Essa trinca avisa minha mente que meu dia começou. Mas o que eu queria dizer mesmo é que começo meu dia com um longo e forte suspiro e que minha rotina matinal passa primeiramente pelo fato de reconhecer que tenho um corpo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Na cozinha, a hora do dia que sinto que melhor trabalho é quando a coifa desliga e vem água de todos os lados, em cima da bancada, no chão, na pia, em tudo: é a última tempestade que antecipa a calmaria de ir embora. Queria responder também que a hora que sinto que melhor trabalho é a hora bem paga, aquela que você diz pro patrão “minha hora vale tal” e o patrão apenas consente e diz “pois muito que bem, tal vezes 10, aqui, em dinheiro”. Agora, sobre a ritualística preparação para a escrita, não tenho, nunca tive, acho. Quando eu era garçom e não tinha mesa para atender, aquele momento ingrato em que o ser humano se coloca em posição de espera servil, gostava de rabiscar poemas com letras miúdas nas comandas e ficava ali, de pé, esperando corporeamente, mas com rédea solta para a mente poder estar aonde ela bem entendesse. Se existe em mim algum ritual de preparação para escrita é estar munido de algum suporte para encaminhar as palavras, algo que na faculdade eu dava o nome de receptáculo. Nesse quesito vale tudo, comanda, caderninho, bloco de notas do celular e assim por diante. Sinto que minha mente está a postos para escrever qualquer que seja o momento, bastando que os outros sentidos se alinhem para que isso possa acontecer. Acho que foi Picasso quem disse que a inspiração existe, mas ela tem que te encontrar trabalhando. Não adianta arrumar a casa, lavar louça, roupa, tirar lixo do banheiro e sentar no sofá esperando que a inspiração toque a campainha. Ela não é uma visita que se convida, mas sim uma energia que nos transpassa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Achei foi graça dessa pergunta. Devaneando outro dia com minha companheira, disse que sonhava com o dia que algum agente literário a serviço de alguma editora me ligaria dizendo que meu livro estava sendo esperado para o próximo dia 27, que dia 27 tudo já deveria estar encaminhado para a gráfica. Mas enquanto esse cenário utópico aonde um mecanismo depende de algo que eu escreva para poder girar não chega, uma meta de escrita diária é uma conjunção de palavras que não faz sentido nenhum para mim. Eu me basto em apenas escrever. Posso passar dias, semanas, sem escrever uma linha de fato, mas quando os sentidos se alinham, quando o receptáculo se revela, quando a circunstância e o momento decidem se amar, eis o tesão, a solução, eis o circo armado e o parque de diversões da minha cabeça em plano e pleno funcionamento. Essa entrevista, por exemplo. Conjuntura e vestígio. O impossível que pouco a pouco abandona seu prefixo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Excelente pergunta. Já fantasiei minha pessoa numa banheira com Leda Nagle respondendo essa pergunta. Já me vi no sofá do Jô Soares às 11 e meia bebericando na caneca e tomando fôlego pra dizer que o deslocamento entre pesquisa e escrita é imperceptível. Uma vez que tudo me afeta, que tudo é matéria-prima-irmã-mãe-e-filha da Poesia, fica quase impossível discernir quando o pesquisador passa o bastão para o escritor. São duas personas que habitam um mesmo corpo, que dividem um mesmo involucro. Tanto o escritor quanto o pesquisador carecem do mesmo suspiro matinal e ambos precisam antes de qualquer coisa reconhecerem que têm um corpo. Eu posso passar 2 horas cortando em metades transversais 8 kilos de tomate cereja e isso é tanto pesquisa quanto escrita. Tudo está acontecendo ao mesmo tempo aqui e agora. Não acredito na compilação de notas suficientes, mas sim na coleção demasiada de silêncios. Quando a carga fica demais pros meus ombros, o único escape é falar, escrever, encaminhar. Não acredito em começos, chegadas, partidas, finais ou finalidades. Faço parte de uma longa linha da tradição de se registrar pensamentos em palavras.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não lido. Se alguém disser que lida, está mentindo. O medo está aqui, a ansiedade também, a correspondência e a expectativa dormem numa espécie de triliche aqui no meu quarto aonde eu sou o recheio desse sanduíche masoquista. Passei vinte e sete minutos atrás de um único pernilongo com minha raquete elétrica ao invés de sentar aqui nessa cadeira e dizer que meu único defeito é ser perfeccionista demais. A Procrastinação, assim mesmo, com P maiúsculo, é uma entidade. Prefiro não acender vela pra ela. O pernilongo segue vivo. Assim como ela. Assim como eu. Cada um não lidando com tudo o que há de mais impermanente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quando eu tinha 21 anos, escrevi uma linha que dizia assim: “não quero ajambrar meus versos com roupinhas de domingo”.
Roupinhas de domingo são roupinhas de ir à missa, roupinhas solenes, por assim dizer. Ser escritor é uma coisa, dedicar livro pra papai, mamãe, papagaio e periquita é cristianismo. Ouvi essa frase de um urso congelado que morava em Manaus. Na época ele atendia por Diego Moraes, hoje já não sei. A última notícia que tive dele foi quando ele escreveu que o coração dele era um bar vazio tocando Belchior. Linda essa imagem. Pronta, não pronta, tanto faz. Estar pronto é uma questão de ponto de vista. A gente nasce pelado e pronto e tudo nessa vida vai conspirar para nos vestir. Nessa linha de raciocínio, acho que adoto uma filosofia nudista. Se um poema meu não tem fôlego de abrir o berreiro com a bunda de fora em praça pública, é porque ainda não é a hora de nascer, e se não é hora de nascer, ele é muito bem vindo no útero que eu não tenho. A força de parir palavras vai muito além de estar pronto ou não. Tenho a sensação de que se fico esperando a contagem do juiz de linha para poder cair na água, capaz que eu nem pule, fique ali, de sunga e seco.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Nasci em 1988. Não que isso diga alguma coisa. Mas acho que assisti de camarote na primeira infância os processos e suportes se transformarem radicalmente. Quero dizer, para fazer um trabalho sobre dinossauros em 1996, eu precisava abrir sei lá quantas enciclopédias e livros para chegar numa espécie de texto cabível de ser avaliado pela professora. Hoje você abre o google, digita dinossauro, aperta enter e pronto. Não sei porque disse isso, talvez para explicar que ainda sou parte da geração que viveu os últimos resquícios de uma sociedade parcialmente analógica. Faça um teste, peça para que alguém que nasceu no ano 2000 te diga que horas marca o relógio de ponteiro. Minha relação com a tecnologia nasceu no banco traseiro do carro dos pais do coleguinha mais rico do colégio. Estávamos num trânsito interminável voltando de algum parque de diversões. O ano era 1998. Eu sabia que às 20 horas minha mãe estaria na porta da casa do colega para me pegar. Eram 19 e 45 e ainda estávamos muito longe. Foi então que a mãe desse colega me estendeu um tijolo preto de 2 kilos com uma antena que quase furava o teto da Variant e perguntou para mim qual era o número da minha casa. Até então era o único número que sabia de cor. Falei com minha mãe dali, daquele banco traseiro, no meio de um aguaceiro, preso no trânsito da marginal pinheiros. Vem dai minha relação com a tecnologia. E por isso eu escrevo com aquilo que estiver à mão. E agora uma anedota: Tranque um pintor num quarto e retire dele suas telas e suas tintas. Em questão de dias, parede vira tela, cu vira tinteiro e dedo vira pincel. Quase certeza que foi o Wally Salomão que disse, mas se não foi, assumo a autoria numa boa. Marques de Sade foi outro que privado de todos os instrumentos de escrita pela igreja católica, escreveu seus últimos textos com seu sangue no seu próprio corpo. São coisas assim que penso quando alguém me pergunta se escrevo meus primeiros rascunhos à mão ou no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm das suas ideias que vêm das ideias de outrem que vêm das minhas ideias que vêm das ideias de tudo que tem uma ideia e daquilo que não fazemos sequer ideia. As ideias estão ai, circulando numa espécie de transe coletivo por esse planeta. Para se manter criativo, basta sintonizar. Não há nada que uma pessoa com uma vela não possa fazer. E se você tem uma vela na frente do espelho, você tem duas velas. E no centro desse planeta girante, um magma em permanente estado de fusão que tudo queima e em nada pensa, porque se pensasse, pensaria nos porquês, porque se pensasse nos porquês, não queimaria. Enquanto isso, vamos tendo ideias e deixando que elas nos tenham. Trancar algo dentro de uma caixa sempre nos deixará na dúvida se estamos fora ou dentro. Queria muito que fosse uma receita: para me manter criativo, dou duas voltas no quarteirão, cumprimento seu chico na venda da esquina, tomo um pingado com um pão na chapa entrada requeijão na padaria, volto pra casa e, antes de abrir meu caderno, dou duas cambalhotas e termino sentado com uma caneta bic mordida na base pronto pra mudar o mundo. Acho que cultivo hábitos que me mantém vivo, o resto é consequência.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria ouça, relaxe, você já leu poemas piores, eu mesmo já os escrevi. Eu diria que se não for para explodir uma hecatombe dentro de si, não comece. Eu diria confie em Alá mas amarre seu camelo. Eu diria não existe lugar ao sol, mas sim lugares em que o sol chega e lugares que ele não alcança. Eu diria que o vício ao elogio é algo do qual alguém jamais se recupera. Eu diria que para morrer basta estar vivo. Eu diria, fique tranquilo, se você persistir nessa trilha, fatidicamente vai chegar o dia em que alguém vai te perguntar o que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos. Eu diria não tenha pressa, mas aperte o passo. Eu diria não se esqueça de continuar amigo da poeira depois de grande. Eu diria que com a ausência do medo de mudar, a mudança permeia o processo, a escrita, os anos. Eu diria que o cuidado com a experiência deve ser infinitamente maior do que a própria experiência. Eu não diria nada.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não sei & não sei. E está tudo bem em não saber. Quer dizer, se tem algum projeto que eu gostaria de fazer, de alguma maneira esse projeto já existe aqui em mim. Confundimos “começar” com ideais de finalidade e propósito. Exposição, vernissage, olhos alheios nos olhando, pro seco quente circulando na bandeja, tapinhas nas costas e foto e coisa e tal e uma banca com cinco pessoas que decidem que agora sim, agora você é um doutor. Confundimos existir com a necessidade de entregarmos um produto. Não existe uma linha que se ultrapasse e se determine que a partir dali está começado. A linha tênue entre aplaudir um inseto e tentar matá-lo. E nessa toada, digo mais, todo e qualquer livro que eu não tenha lido ainda não existe dentro de mim. Se você não leu a bíblia, a bíblia ainda não existe. Essa é uma frase famosa do Pedro Herz que os livreiros da livraria cultura aprendiam no dia zero, antes de colocar crachá e sair por ai respondendo sobre as últimas novidades do mundo literário. Tudo aquilo que você não leu carrega em si o potencial da novidade. Nesse exato momento, o que eu gostaria de fazer, estou fazendo. Até 4 horas atrás isso aqui era um formulário com 10 perguntas genéricas esperando tudo, inclusive nada, de mim. O que eu sou, eu sou, o que eu não sou, não sou. E aquilo que eu não sou não anula o que eu sou, e aquilo que eu sou não se sobrepõe àquilo que eu não sou. Parece confuso, mas em um mundo de ou isso ou aquilo, eu fico com isso e fico com aquilo.