Felipe André Silva é poeta e cineasta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho propriamente uma rotina matinal, já que acordo por volta das onze ou meio-dia. Apesar de acreditar que gosto de uma rotina relativamente regrada meu dia geralmente se reconstrói a partir das demandas de trabalhos, vida, e coisas afins. Costumo fazer alguns poucos exercícios físicos ao acordar, seguidos de almoço e a partir daí sigo para as obrigações. Em dias que posso me dedicar aos meus próprios projetos isso geralmente significa passar longas horas no computador, escrevendo e revisando textos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como acontece com bastante gente, a madrugada é o horário que as ideias parecem fluir melhor. Moro num lugar bastante barulhento, e como cada vez mais tenho acreditado que o ato da escrita depende de um encontro muito profundo e particular comigo mesmo, prefiro escrever na companhia do silêncio e de minhas playlists. Não acredito que haja uma preparação específica, mas pareço ter mais o que dizer em momentos de maior fragilidade emocional, onde esse olhar para dentro se torna muito mais urgente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Fico bem longe desses processos (que aparentemente são muito fortuitos para vários escritores) de regrar a escrita a partir de períodos ou horários demarcados. Apesar de ter facilidade para escrever por longos períodos de tempo é raro que isso seja tão previamente arranjado. Entendo como pode ser um exercício fortuito mas me parece que qualquer tentativa de transformar a práxis da escrita criativa num trabalho braçal, mecânico, não vai render muito para mim, pelo contrário, começarei a odiar meu material, a perder de vista as possibilidades, simplesmente não consigo. Quando o praxo é necessário prefiro estabelecer um limite de dias que de horas. Usar a criatividade para correr contra o relógio é pedir para perder.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como minhas áreas no campo da escrita são quase diametralmente opostas (a saber: poesia e roteiro audiovisual) os processos também são algo diferentes mas todos partem da mesma coleta incessante de referências. Geralmente escrevo quando alguma imagem, música, inspiração, etc, me moveu e concatenou sensações que estavam próximas de se tornarem palpáveis. Dependo desses gatilhos externos para entender se essa coleta já está madura o suficiente, mas recentemente percebi que me ajuda muito o distanciamento do material. Que sejam poucos dias ou vários meses, deixar o escrito descansar, limpar o olhar, e voltar a ele com propostas totalmente novas e potencialmente melhores, tem sido meu método mais fortuito atualmente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Costumo me iludir um pouco nesse aspecto e acreditar que a procrastinação pode ser também parte do processo criativo, um momento em que o trabalho não está na página, mas no olho, no ouvido, no rolar do feed do Facebook ou do Instagram, no observar a rua, ouvir seus sons. Se há pouco na cabeça que possa ser canalizado para o texto o único caminho a se tomar é o de inflar esse espaço, ocupá-lo com possibilidades. É claro que isso é muito mais bonito enquanto teoria e o desespero acha lugar muito rapidamente nos espaços da ociosidade. Uma ferramenta muito útil para mim é o debate, ainda que super rápido e efêmero, com algum amigo/crítico de confiança. Há sempre um bom caminho a ser encontrado quando se explana a dificuldade do processo para algum colega que tem uma voz com a qual você se identifica (ou mesmo uma totalmente diversa).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Creio que a questão de compartilhar trabalhos com leitores de confiança já foi contemplada na resposta anterior mas acho importante salientar que a escuta atenta aos apontamentos recebidos nessas ocasiões é essencial. Foram várias as vezes em que amigos e colegas me convidaram para opinar em seus poemas, textos, e filmes mas mantiveram uma recepção completamente defensiva quando tentava colocar questões que me pareciam problemáticas. Se essa troca surge como opção, é importante que seja levada a sério, por mais que as críticas não sejam particularmente frutíferas. Quanto da revisão, não saberia precisar o volume de revisões que faço mas tenho impressão de que não são suficientes, pois sempre encontro uma ou outra questão de ortografia, de concordância, de construção, quando releio textos antigos, ou mesmo postagens recentes em redes sociais. É um processo importante, já tive receio de soterrar a verdade de um texto por poli-lo demais mas descobri que tal coisa não existe.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Por algum tempo vivi a ilusão romântica de que todo escritor precisava caminhar com bloco e caneta no bolso para tomar notas urgentes, mas logo me pareceu um conceito muito bobo. Se venho de uma geração onde a tecnologia já provinha imensas comodidades, qual seria exatamente o problema em utilizar o celular para realizar a mesma tarefa? Sobretudo porque, desde que comecei a escrever, meu processo esteve sempre associado a uma pulverização e fragmentação de pensamentos que a escrita digital facilita bastante. É basicamente como um jogo de quebra-cabeças: escrever muito, e tudo, e só depois entender onde cada coisa de fato deve se encaixar. Ainda amo blocos e as canetas, mas o processo raramente passa por eles de fato.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
De maneira geral as ideias surgem da troca, com o mundo, com outras pessoas, comigo mesmo. É preciso fazer um esforço para estar sempre atento às histórias que o mundo oferece gratuitamente; desde o motorista de uber que abriu uma pastelaria até a moça que estava completamente embriagada na porta do hospital, tudo serve de gatilho no início; o que se pode fazer com isso depende de vários fatores. Escrever inícios, primeiras imagens, propostas de trama, é talvez o melhor exercício para iniciar um processo. Não se trata exatamente de sinopse ou argumento mas de uma imagem, como as que citei anteriormente. Essa mulher que está embriagada, quem sabe gritando, na porta de um hospital, já contém em si centenas de possibilidades narrativas. A pergunta a se fazer é o que eu tenho em mim, hoje, para oferecer a essa personagem? Eu acredito que ela tem razões cabíveis para ter atingido esse descontrole ou é simplesmente inconsequente? Quero julgá-la por isso? Talvez seja minha proximidade maior com o cinema que sugira esse caminho, de diluir uma imagem em palavras, funciona bem. No mais, como não tenho o costume (errado, muitos dizem) de escrever sobre coisas que estejam muito além da minha zona de compreensão, não é comum que eu faça pesquisas e laboratórios mas essa é certamente uma experiência que gostaria de experimentar num futuro próximo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Honestamente eu creio que em tônica e intenção as diferenças não são muito gritantes. Desde que comecei a escrever tenho um interesse específico por relacionamentos áridos, silêncios, dicotomias entre o mais áspero e o mais acalentador da vida, esses microcosmos de afeto que construímos ao nosso redor mesmo tendo consciência de sua fragilidade. O que pode ter mudado é o aparato que tenho disponível para realizar essa tarefa. Quando pequeno gostava muito de ler mas ao longo dos anos o cinema foi tomando o lugar da literatura enquanto hobby e posteriormente enquanto objeto de pesquisa e profissão. Consequentemente minhas palavras se tornaram cada vez mais técnicas e pragmáticas, e não é como se fosse impossível fazer literatura nesses termos, só não era uma aspiração real no momento. Me reencontrei com os textos ficcionais por volta de quatro anos atrás, e desde então vejo uma mudança significativa em áreas que vão desde vocabulário até a potência imaginativa mais primária. Para o eu de ontem eu diria que fizesse um esforço para não abandonar a escrita ficcional, a leitura ávida, e a exploração de outras artes que não o cinema, sobretudo o teatro, que é um espaço de aprendizado particularmente proveitoso para quem lida com a palavra viva, e a fotografia, que no fim das contas é a irmã gêmea da poesia.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Por mais clichê que seja, a máxima de que todo livro não lido é inexistente me parece verdadeira. No entanto tenho que ser sincero sobre a falta que sinto de bons romances ou contos, sobretudo nacionais, que exibam personagens LGBT em narrativas onde sua identidade sexual não seja definitiva para o desenrolar da trama. Agora consigo me lembrar dos exemplos de ‘Luzes de Emergência…’ da Luisa Geisler; ‘Meia-noite e Vinte’ do Daniel Galera; ou mesmo ‘O Amor dos Homens Avulsos’, do Victor Heringer; livros que lidavam com personagens de sexualidade ambígua ou delineadamente homo, mas cujas questões não eram exclusivamente construídas em torno da sexualidade delas; queria ler mais disso. Talvez seja esse o projeto ao qual eu devo me dedicar: vencer o receio para com a prosa e contar eu mesmo as histórias que gostaria de estar lendo.