Fabrício Monteiro Neves é professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Morei os 18 primeiros anos de minha vida na zona rural de uma pequena cidade no interior do Rio de janeiro. Começar as aulas às 7h da manhã exigia que acordássemos às 5h30. Quando entrei no segundo grau, passei a acordar às 5h, porque a escola ficava na sede do município, a 15 Km de minha casa. Criei nesse período uma rotina que começava cedo e terminava cedo. Na graduação tudo mudou. Cursos às 8h, alguns dias da semana, e ainda morava ao lado na universidade. Começar o dia aqui era menos sacrificado, com possibilidade de transformar a rotina dos anos anteriores em aventura. Dormir tarde também se tornou uma possibilidade que se apresentou para mim neste período. Descobri como era bom ler à meia noite Rubem Fonseca, John Steinbeck, Borges, Tolstoi, Montaigne. À noite, a introspecção se tornava método, ajudada pela penumbra, o silêncio e a ausência. Ao dia, era puro sacrifício. A noite vicia, corrompe os sentidos. Se não exercitarmos o intelecto ao dia, somos tragados pela lua. Passei a graduação lutando contra este sequestro noturno, e ao fim, acho que consegui uma mediação entre dia e noite, rotina e aventura. Escrevo hoje combinando estes extremos, sempre começando com minha xícara de café pela manhã – a rotina mais intransigente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O mundo ainda há de reconhecer a preguiça como forma de rotina. Talvez seja ela que me conduza das trevas à escrita. Por isso não posso me dar ao luxo de rotinizar (roteirizar-ritualizar) caprichos como dia e noite, um lápis e um caderno, um dedo e uma tela. Minha rotina é a leitura, minha aventura é a escrita, por isso incerta, arbitrária, caótica. Sinto que quanto mais me obrigo, tanto menos entrego (tanto menos me entrego). Talvez aí resida um elemento ao qual minha produção intelectual, mais cedo ou mais tarde, terá que prestar conta, qual seja, a rotina de publicações como exigência profissional. Será possível me aventurar em um ambiente cada vez mais contaminado pelas tabelas de produtividade, as vaidades contábeis e o fetiche do número?
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Em alguns dias um pouco é uma tese, em outros, um twitter. Posso sentir-me mais contemplado com este último. Minha meta é posta com referência ao cálculo imprescindível das necessidades cotidianas, da casa limpa, da comida feita, do exercício preguiçoso de contemplar a parede em branco. Meto-me a escrever sempre que me ocorre um fragmento, de súbito. Este pode redundar ou falecer. É dele que aparece a rotina, mas sem ritual. Ele pode permanecer ao lado de outros, somar-se a estes, diminuir. Sinto, em muitas situações, que o fragmento me conduz, parece ganhar vida própria, e que, tal como eu, ele também se aventura, preguiçosamente. Vai dar em algo? Quem se importa? Ele também desaparece, muitas vezes, entre arquivos .DOC, talvez feliz com sua forma, mas enrubescido com seu conteúdo, ou vice-versa. Tenho um jardim .DOC de flores que murcharam, no qual posso a qualquer momento me aventurar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas são o prenúncio da fluidez. Olho para trás e vejo um rio caudaloso que foi se serpenteando, em paisagens íngremes, cachoeiras pedregosas, mas rompendo os obstáculos, fiéis exercícios para a musculatura. Lembro que na escrita da tese passei uns bons 6 meses sem escrever nada. Mas, tenho uma tese. O que a escrita quer de mim é só paciência, condescendência com a procrastinação, coragem para me aventurar. Talvez exercite diariamente mais estes elementos do que a própria escrita. Eles são mais rotineiros. São eles que me dão a medida de como escrevo e o prazer para escrever.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meus textos nunca são à prova de intemperismos, estão sujeitos à ação implacável do sol e da chuva. Nunca tive a sensação de “pronto”. De modo que cada leitura é uma nova aventura, desbravando vírgulas, roçando redundâncias, alvejado por ideias mal construídas. Digo “chega”. Vanessa Ponte, minha companheira (leitora preferida), chega perto, olha-o clinicamente, faz a cirurgia necessária. Mas põe abaixo minhas reticências, faz curativos estilísticos, eleva o moral.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A folha em branco, uma caneta azul, uma lâmpada. Há tecnologia o bastante ali onde não mais se vê tecnologia. O rabisco no erro, as pontas de canetas diferentes, as margens que nos oprimem. Há tecnologia o bastante na escrita de Agostinho, Ockhan, Stendhal. Penso que a mediação tecnológica não é neutra. Assim como Marx oferecia seu casaco à casa de penhora para conseguir papel para escrever, sempre oferecemos algo. Sinto que o computador diminuiu a aventura de escrever, tornou quase supérfulo o pensamento prévio, matutado. Imagina Marx rabiscando páginas ao léu… Ficaria nu para conseguir papel. Às vezes rabisco em folhas de papel, deixando que o prazer tátil conduza meu pensamento, que eu me identifique com o garrancho impresso, vendo-me irregular, errante. Sinto que crio outra relação com minha própria escrita, provavelmente com minhas ideias. Mas, sem tecnofobia em relação ao computador. Sair da folha de papel para a digital é outra aventura. Menos dramática. É como se jogar em mar revolto com colete salva-vida.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
A literatura – romance, conto, poesia – é a fonte sempre disponível de ideais já testadas; o cotidiano é a fonte atual, mutável, que sensibiliza a observação contra a tendência de ver o padrão no incomum. Tento articular estas fontes “abertas” aos padrões cognitivos acadêmicos. A ciência é cheia de mapas rotineiros, que nos levam a locais seguros, sem surpresas. Tento me afastar da escrita reta, da observação taxativa, trocar os mapas pelas asas. Estas são encontradas nas fontes não acadêmicas, no cafezinho de corredor, na prosa na padaria. Minha impressão é que a sociologia perde muito quando sua forma e conteúdo se restringem aos cânones acadêmicos. Lembremos que a institucionalização da disciplina foi uma luta contra a grande literatura, por exemplo, na França, contra o naturalismo de Zola; no Brasil, contra o ensaísmo modernista. Mas note, Zola fala da França dos XIX com a desenvovtura de um etnógrafo perspicaz; da mesma forma Antônio Cândido, quando fala do caipira paulista. Sempre digo em sala de aula: livro de cabeceira deve ser Guimarães Rosa, Dostoiévski, Thomas Mann. Deixa a sociologia para a luz do dia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sinto-me mais um aventureiro. Aprendi a correr riscos na rotina, aceitar as consequências. Busco também rotinizar a preguiça, considerá-la força motriz da fruição literária, acadêmica ou não. Deixei de ser o patrão/explorador de mim mesmo, transformei minha casa, de fábrica a lar. Acho que tem a ver com o encontro com Vanessa, que me presenteou com um verso panfletário: “Felicidade se acha é em horinhas de descuido”, como disse Rosa. A academia é ambiente de obsessões que podem desaguar em toda sorte de patologias. Deve-se descuidar, portanto, na escrita, forma e conteúdo, nos voos argumentativos, na validade das provas, nas perguntas. Acho que aprendi isso, que hoje é minha própria pedagogia do prazer literário. Paradoxalmente, passei a “produzir” mais. Que ironia! Olhando para trás dou um conselho àquele que era eu: tire férias.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever, com ufanismo!, sobre o que este país produziu em termos de inovações científicas. Temos uma história da ciência recente, mas que com pouco recurso vingou de forma espetacular. Gostraia de contar a história desse feito através da narrativa romantizada de nossas e nossos cientistas. Acho que duas coisas vão se sobressair: o heroísmo e o prazer na mesma equação. Colocar na boca deles e delas a frase macunaímica “ai, que preguiça!”, antes de um insight.
Quero ler a tese da Vanessa Ponte, em produção. Ele ainda não existe, mas os cadernos de campo que ela lê para mim é de uma extravagância que quase não aguento esperar. Antevejo a tese e imagino que sua leitura me fará também um escritor melhor.