Fabricio Garcia é jornalista e poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
o despertador toca às 7h45, mas geralmente antes disso já tô meio acordado por causa da olga, minha gata. ela é muito mais regrada que eu e usa a caixa de areia todos os dias, rigorosamente entre 6h50 e 7h, depois vai afiar as unhas numa mesa de madeira que tem na sala de casa. como moro numa kit, dá pra ouvir tudo perfeitamente, porque ela faz um barulhão. no mais, minhas manhãs envolvem, necessariamente, enrolar na cama o máximo possível, banho e o trajeto de metrô até o trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
eu curtia o silêncio da madrugada. mas, hoje em dia, por causa do meu horário de trabalho, não consigo ficar acordado até muito tarde porque sinto muito sono. trabalho como revisor de textos em uma agência de publicidade, ou seja, lido com leituras técnicas diariamente e durante muito tempo. a vista cansa e a cabeça às vezes também, o que faz com que eu não me sinta particularmente animado pra escrever quando chego em casa. mas acho que funciono melhor à noite mesmo.
não tenho ritual. em geral, sento e escrevo. se estou num dia bom, a coisa flui naturalmente, seja em casa, no trabalho ou na rua. se for possível, prefiro escrever quando estou sozinho, porque me desconcentro com qualquer coisinha.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
escrevo quando dá e se dá. trabalhar com metas seria descumpri-las, porque me conheço e sei como sou completamente desregrado pra esse tipo de coisa. e, também, de modo geral, não costumo escrever poesia quando quero. dificilmente um poema vem por decisão minha. às vezes rola uma faísca e ela tem uma força tão grande que não há como ignorar. sei lá, é algo que ainda não compreendi, mas vejo/sinto determinadas coisas e necessito escrever pra ver se consigo entendê-las melhor. faz sentido? o que quero dizer é que, pra mim, a poesia apresenta-se como algo extremamente sensorial e se dá como uma espécie de busca, seja ela pelo outro, pela compreensão do mundo ou por autoentendimento.
ainda sobre isso da rotina: um tempo atrás tava rolando edital pra livro de poesia e eu pensei “ah, por que não tentar?” o problema é que só fui de fato começar a escrever o projeto faltando uma semana pro término das inscrições. (risos) isso me fez precisar de um mínimo de disciplina pro negócio tomar forma e ganhar corpo, mas confesso que foi bem difícil. de maneira geral, eu me saboto bastante e tudo que demanda rotina/regra/disciplina pra virar realidade me é bem desgastante, porque requer uma força de vontade que às vezes eu só não tenho (e tudo bem, sabe?). então, pra esse edital em si, eu adotei uma rotina de escrita (ir ao sesc para escrever e trabalhar o texto diariamente), e só deu certo porque era uma escrita mais acadêmica, voltada para o projeto. acredito que se fossem textos poéticos, não teria funcionado dessa forma, porque a poesia requer um estalo que a rotina não oferece.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
meu processo de escrita tá muito atrelado ao meu processo existencial. eu sou daquelas pessoas quietinhas, que falam pouco e observam/ouvem bastante. ser escritor envolve muito mais do que somente escrever, né?, então a gente precisa de um olhar atento pro mundo e pras pessoas. a partir daí, das pessoas, das conversas, dos encontros, dos passeios e, principalmente, das leituras (em especial as que fazemos do mundo) surge muita coisa, e cabe a nós ter o tato pra saber se é possível criar algo a partir daquilo.
para escrita acadêmica, faço muita pesquisa, muita mesmo, e quando vejo estou com mil abas abertas no computador, boa parte delas nada relacionadas ao propósito original. sou bastante disperso e curioso, características que, neste processo, mais prejudicam do que ajudam, então é bem normal eu precisar finalizar um texto sobre, sei lá, cinema, e de repente estar totalmente obcecado por um artigo que fale sobre a reprodução dos hipopótamos (como fiz há pouco, enquanto começava a responder suas perguntas).
na poesia, dou muita importância ao primeiro verso. no geral, ele é o que surge a partir do estalo. mas nem sempre vem pronto, nítido. às vezes vem embaçado, obscuro, aí preciso sentar e trabalhar nisto para ver se chego a algum lugar. se não chegar, tudo bem também. olho muito tempo o corpo de um poema | até perder de vista o que não seja corpo, escreveu ana cristina césar. é bem por aí, sabe?, a vida nos cobra pressa e imediatismo, é tudo sempre tão urgente, a gente sempre tão tenso, que se faz necessária uma pausa. um respiro. já parou pra pensar quantos dos nossos amigos precisam de ansiolíticos pra seguir em frente? sei lá. tenho uma posição bem firme quanto a essa urgência: na medida do possível, procuro me demorar. cumprir prazos paga as nossas contas, mas faz o que com a nossa cabeça? então, apesar das cobranças, costumo adotar um ritmo bem particular, vagaroso, pois é ele que me permite ver a vida com um pouquinho de sensibilidade e, acima de tudo, não surtar. porque tem horas que é foda.
aliás, josé, você já respirou fundo hoje?
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
eu lido muito bem. não sou autor famoso, não ganho pra isso, não tem editora no meu pé cobrando original, vou me estressar pra quê? o máximo que tem são uns amigos que falam “pô, nunca mais vi nada seu, e aí, quando sai o livro?”, mas, por serem amigos, é tudo bem tranquilo. já fui muito cruel comigo, essa autocobrança excessiva, só que fui aprendendo que isso não leva a nada. beleza, tem gente com a minha idade que já escreveu um monte de livro, produz cinco poemas por dia, lança zine, ganha concurso literário, dá oficina, tem vida acadêmica e social ativas e ainda arruma tempo pra ser feliz. só que eu não preciso ser assim, né? por isso busco respeitar o meu tempo e o meu ritmo antes de qualquer coisa. o que vier a partir daí, é lucro. o segredo é não se levar muito a sério. é isso ou o diazepam.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
acho que eu nunca tive a sensação de que um texto meu estava totalmente pronto. eles são e devem ser mutáveis, num constante aprimoramento como é, também, o processo existencial. se eu puder mexer, melhorar, cortar, vou fazer. e mesmo assim, depois de publicado vou me decepcionar e achar que deveria ter mexido mais. na hora é tudo lindo, visto depois de um tempo… jesus! mas é aprendizado e faz parte, tipo as roupas que a gente usava uns anos atrás e achava maravilhosas. bom, as fotos daquele tempo estão aí e são um tapão na nossa cara…
sobre mostrar os trabalhos: depende muito, porque eu mesmo acho estranho/desconfortável dar pitaco em criação alheia, a não ser que haja muita intimidade. às vezes mostro depois de pronto, porque se mostro antes, pode ser que o comentário da pessoa me desanime e eu desista de tudo. sou muito inseguro com as coisas, então é bem raro eu terminar um texto/poema e falar “nossa, é isso!” e continuar pensando “nossa, é isso!” depois de passar pelo crivo das pessoas. em geral, costumo mostrar à anna brandão, melhor amiga, parceira pras criações artísticas, bastante sincera e que não vai hesitar em cuspir na minha cara se o negócio estiver ruim, como já aconteceu muitas vezes.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
nos damos bem, na medida do possível. costumo andar com um caderninho na bolsa, que uso pra anotações do cotidiano. mas, normalmente, quando surge algo que sinto valer a pena o registro, faço no bloco de notas do celular, acho que pela praticidade mesmo. grandissíssima parte dessas anotações acaba se revelando nada relevante, então elas ficam por lá. (acabei de descobrir que a última anotação do meu bloquinho diz assim: interrupção | ordem antinatural das cousas. | a janela quando fechada é um desperdício. não sei de onde veio e nem o contexto por trás.) algumas que julgo serem boas, passo pro computador e trabalho em cima. também faço alguns exercícios de escrita na máquina de escrever, criando a partir de determinado estímulo (geralmente uma palavra ou objeto), onde o objetivo é manter o texto o mais cru possível, sem edição, exatamente como veio pra mim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
alguns anos atrás, eu me deparei com o ted talks do austin kleon, um artista norte-americano, onde ele discursa acerca da similaridade de tudo que já foi produzido e sobre como é difícil ser totalmente original nas criações. ele diz, e eu concordo, que a gente é um compiladinho de tudo aquilo que deixamos entrar em nossas vidas. filmes, livros, conversas, músicas, vídeos, etc. tudo é uma possível referência ou ponto de partida para novas criações. minhas ideias e textos, que eu às vezes tenho a ilusão de serem originais, são provavelmente um mexidão de referências que apareceram ao longo do caminho, algumas mais óbvias e outras nem tanto. o último poema que escrevi surgiu a partir da leitura de um poema da marília garcia, em 20 poemas para o seu walkman. outra referência que me marcou foi a conversa com uma amiga, onde ela reclamava de pessoas que faziam carinho sem variar os movimentos. achei bastante peculiar e a fala dela não me saiu da cabeça. fiquei matutando durante dias, até fazer daquilo o início de um texto em prosa que curti muito. essas, no caso, são referências bem específicas, que eu sei de onde partiram, mas em boa parte dos casos a gente nem nota. minha tese de conclusão de curso, por exemplo, fala sobre os vínculos afetivos que estabelecemos com nossas cidades, e, relendo o texto, dá pra ver como ele é um diálogo nítido com as referências bibliográficas que coloquei ali. nada é totalmente original.
então os hábitos gerais são esses: estar sempre lendo, sempre ouvindo e sempre atento. dos hábitos mais específicos: em momentos despretensiosos, geralmente no meio de uma trava ou quando sinto que preciso de um tempo, ando de um lado pro outro pela casa, bebo água, como algum tipo de doce e alongo muito os dedos da mão. pra poesia, além de tudo isso, também costumo ver entrevistas com a hilda hilst, assisto ao vídeo da ana cristina césar recitando samba-canção, folheio o jóquei e ouço videopoemas da matilde campilho e do victor heringer. meu processo criativo é também bem musical. no geral, ouço vários artistas gringos, mas na hora de escrever prefiro os nacionais, pois acho que ajuda a pensar em português. apesar de ser bastante boêmio, nunca bebo para escrever. meus textos são totalmente sóbrios. e talvez por isso sejam tão chatos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
acho que estou menos ansioso, o que é um grande passo. diria para ir com mais calma. nem tudo (ou quase nada) precisa ser imediato. hoje é terça e amanhã vai ser quarta de qualquer forma, independente da velocidade que eu impuser à minha rotina. a diferença é que, desacelerando, eu provavelmente vou apreciar mais terças e quartas do que no ritmo em que costumava levar a vida.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
bom, minha formação acadêmica vem do jornalismo, mas depois da faculdade acabei indo por outros caminhos e hoje tô mais próximo da publicidade. só que eu ainda acredito no jornalismo como elemento transformador, no bom sentido da coisa. e tenho vontade de exercer a profissão novamente. já tem um tempo que penso num projeto textual que trouxesse pautas normalmente não vistas nos grandes meios de comunicação, e que abordasse esses temas de maneira humana, sem a pegada mecanizada de algumas reportagens que a gente vê/lê por aí, com o objetivo de dar voz e espaço a pessoas invisibilizadas.
o livro que eu gostaria de ler talvez seja meu próximo livro (que também não existe).