Fabrício Bertini Pasquot Polido é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Engraçado, sempre me fazem essa pergunta. Talvez porque muito frequentemente eu sigo trabalhando até mais tarde do dia, este mal compreendido hábito de paulistano, de grandes metrópoles, e que já esteve muito mais incutido em mim. Ironicamente, tantos aqui em Minas Gerais me fazem questão de recordar sobre a correria de São Paulo, a falta de tempo para as coisas mais simples. No jeito mineiro de estar bem, vida agitada não tem muito lugar: o que importa é justamente a qualidade do dia, o quanto ele pode “render”, o quanto alguém “dá conta” daquilo que lhe foi confiado, se ele permite um “cadinho” de tempo para jantar com amigos e bater-papo.
Acordo sempre muito cedo, abro todas as janelas de meu apartamento, olho para o céu, que sempre está azul em Belo Horizonte. Ligo a música, entre jazz, soul, MPB ou lounge (hoje sou adepto do Spotfy), preparo meu café da manhã, leio algo no jornal pelo tablet ou smartphone e depois saio para me exercitar – ao menos quatro vezes na semana, duas delas na companhia de um personal, que é amigão para todas as horas pesadas. Somente depois desse planejamento, considero-me digno para a labuta. Se for necessário romper com a rotina, como em viagens e determinados compromissos profissionais específicos muito cedo do dia, encontro uma forma de me rearranjar. O mais importante, afinal, parece ser o velho ditado: que a rotina que devemos conhecer seja sempre agradável e nunca um suplício. Eu gosto da rotina. Ela não me incomoda. Quem reclama de rotina é porque tem poucas válvulas de escape ou não aproveita o final de semana como ele pode ser aproveitado, com a família, amigos, atividades sociais e mesmo curtindo momentos de introspecção e individualidade. E se tiver de quebrá-la, que seja da melhor forma possível.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para mim, trabalho com produção intelectual funciona melhor entre dois horários durante a semana: entre 10h e 14h, e depois, entre 18h e 22h, quando meu cérebro atinge o grau ótimo. Sempre fui assim. Para o pico da tarde, deixo para fazer certos trabalhos mais mecânicos, burocráticos e que exigem menor absorção de conhecimento. Tenho fortemente evitado trabalhar nos finais de semana. A carga de trabalho na universidade pública, no entanto, tem hoje superado as condições humanas mais elementares. Nunca trabalhei tanto na vida adulta. A diferença no Brasil entre universidades, de um lado, e grandes empresas, escritórios de advocacia e tribunais, de outro, reside na escassa rede de apoio, pessoas e recursos materiais nas primeiras. Na UFMG, por exemplo, equipes de pesquisa, clínicas legais, departamentos e secretarias não têm condições de atender a todas as demandas hoje existentes em termos administrativos e de execução de ensino, pesquisa e extensão. Isso afeta a forma e a organização do tempo e espaço de que disponho para escrever profissionalmente. Estar com mente tranquila e aconchegado parece ser verdadeiro luxo, a não ser quando estou em casa ou em outro ambiente institucional.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tento escrever quase todos os dias. Gosto muito da arte da escrita, por isso costumo revisar meus textos e insisto para que todos que trabalham comigo revisem seus textos. Não tenho metas diárias, pois esse tipo de racionalidade gerencial nunca funcionou comigo. Prefiro falar em objetivos que busco alcançar ao desenvolver meu trabalho de modo profissional e, no máximo, sempre prazeroso. Delego muitas tarefas para minha equipe, no Observatório de Direito Internacional Privado, nas Clínicas de Prática e Pesquisa em Direito da INternet e Novas Tecnologias e de Diplomacia Federativa e Cooperação Internacional, todos na UFMG, além de aconselhar membros do IRIS- Instituto de Referência em Internet e Sociedade, hoje um centro de grande destaque no cenário brasileiro para questões da Internet e Novas Tecnologias. Todos os participantes desses projetos escrevem por eles, realizam concretamente suas atividades e me procuram para trocar ideias, pensar soluções para os casos que estudam e tarefas que realizam.
No que me cabe, entretanto, me esforço para listar tudo o que é prioritário, importante, pendente, o que é suscetível de mais tempo, e o que é absolutamente despiciendo. Separo material de leitura e dedico um tempo para estudar, alternando entre o computador e ao velho caderno. Sim, eu ainda recorro ao caderno ou bloco de notas, sobretudo porque ele tem um apelo intrínseco à organização, “disciplina”. Afinal, eu sou da geração Xennials, de nascidos entre 1977 e 1983: velho suficiente para ter vivido uma infância livre de smartphones, computadores e internet, porém jovem o suficiente para trabalhar online. O que faço para me concentrar na escrita é justamente a possibilidade de variar entre diferentes temas e tarefas, como por exemplo ao escrever um artigo, um parecer, um relatório, ou preparar aulas, eu reservo entre 20 e 30 minutos para outra atividade e depois retomo o trabalho de escrita. Nesse ponto, minha concentração está no grau ótimo. Tenho deixado as redes e grupos de whatsapp silenciados e distantes em vários desses momentos. Se por um lado eles têm a vantagem de facilitar o canal de comunicação com familiares e amigos, por outro eles trazem mais compromissos inesperados, ansiedade induzida e até certos aborrecimentos e desgraças. Pelo menos é assim que uma certa hecatombe cibernética tem afetado a vida de milhões de pessoas no globo. Haja neurociência e neuropsiquiatria para nos levar a compreender melhor os mistérios da permeabilidade e elasticidade do cérebro e seus efeitos sobre a desconcentração e capacidade cognitiva. Haja tolerância com as sucessivas invasões de privacidade e intimidade que esses meios proporcionam… Da filosofia, por sua vez, eu espero o pleno entendimento sobre a transiência e superficialidade das relações humanas no século XXI. Por isso mesmo, em tempos de difusão de conhecimento, elevada oferta de informações – conexas e desconexas, críveis ou falsas- como nas redes sociais e plataformas de comunicação, a arte de responder a emails e mensagens de whatsapp também requer certa disciplina. A interação nas redes sociais e a comunicação eletrônica se tornaram parte de nossa rotina, dessa rotina que agrada a alguns ou assusta os relutantes. Sempre me policio para que elas sejam as mais pontuais possíveis. E gosto de ver que entre a obsessão por concentração e a desconcentração involuntária, característica da sociedade informacional, prefiro ainda a velha liberdade de escolha sobre tudo aquilo que realmente me agrada e me faz feliz. Escrever deve ser assim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Se é de técnica, estilo e estética que estamos falando, então responderia da seguinte forma: busco estruturar algumas ideias como tópicos centrais e, a partir deles, desenvolvo o texto, recorrendo às notas que produzi ao ter pesquisado. Um roteiro sempre é essencial. Ele é o rascunho de uma estrutura analítica e construtiva: serve para exteriorizar ideias, conduzir negociações e reuniões, solucionar problemas e formar opiniões, entendimentos. Como isso? Alguns autores exerceram influência sobre meu jeito de escrever e pesquisar: Arthur Schopenhauer, Walter Benjamin, Roland Barthes, Umberto Eco, Jocelyn Létourneau e Mark Van Hoecke. Em diferentes formas de ver a pesquisa, e especificamente, para o Direito e suas múltiplas interfaces nas ciências, esses autores me ensinaram que de nada adianta acumular notas e notas, resenhas, fichamentos, fichas bibliográficas e fichas-problema sem o compromisso com algumas premissas. A primeira é a de organização sistemática e de crítica sobre os objetivos de análise; a segunda diz respeito ao consenso sobre o que efetivamente pesquisar e como a pesquisa pode avançar no estado da arte, representando transformações, mudanças, e não meras soluções de problemas técnicos, dentro de uma concepção estrita das hard sciences. Dessa forma, seleciono artigos seminais sobre o tema pesquisado, entre clássicos, referenciados e os mais recentes, em revistas e importantes livros monográficos, coletâneas e bases de dados/plataformas. Em seguida, verifico a pertinência com os objetivos da pesquisa e as realidades contextuais que a cercam: social, econômica, cultural, histórica e política. Com esses pressupostos estabeleço o diálogo intrínseco com o modo a escrever. E tenho uma forma muito característica de escrever, até certo ponto também dominada por intuição e epifania, atributos que sempre me acompanharam, desde os tempos de infância. E eles não anulam a cientificidade ou qualquer veia literária, sobretudo porque auxiliam na compreensão e (res)significação das ideias, as quais deixo para o velho pedaço de papel ou caderno; ali levanto as questões mais sensíveis sobre o tema que estudo e sobre o qual escreverei.
Já adianto: não sou entusiasta de manuais de metodologia científica no Brasil. Com raríssimas exceções, são muito ruins. Induzem alunos a formatar projetos sem observar a construção da metodologia de pesquisa, que somente poderia ser aplicada de modo consciente com as limitações que lhes são impostas em termos de formação, recursos financeiros, maturidade, gerando repetições e engodos. Hoje esses manuais apenas alimentam a indústria comercial paralela de trabalhos acadêmicos, sem qualquer apelo ético. E da pesquisa para a escrita são necessários alguns valores morais: a honestidade intelectual, a fidedignidade, o diálogo com os pares e o compromisso com as perspectivas de análise, aptos ao confronto de ideias. Estou cansado de ver colegas reproduzindo e não estudando absolutamente nada. São preguiçosos, além de exibirem um currículo Lattes turbinado com publicações, sem originalidade e versatilidade, repetindo o mesmo tema. Uma morte à criatividade. Indicadores de pesquisa no Direito no Brasil têm sido falaciosos, especialmente no ambiente de Pós-Graduação. Muitos são gerados por grupos de estelionatários acadêmicos que exportam para o sistema de avaliação, vigente em nosso país, metas artificiais de “consistência de pesquisa” e “produção qualificada”, como se elas representassem o que realmente importa na vida de quem estuda nas áreas das ciências sociais e humanidades, e pretenda influenciar e escrever para os outros: o compromisso com a realidade social e seu problemas, além do prazer de investigar e de capacidade de reflexão crítica, antenada para as grandes aporias da modernidade. Mover-me da pesquisa para escrita requer um exercício duplo, ético, estético e de confrontos morais.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acima eu falei sobre a técnica que tenho usado para burlar a procrastinação e a falta de concentração: alternar entre leituras, escrita e outras tarefas. Quem procrastina é quem realmente não tem o que fazer e se lamenta constantemente por não ter momentos de descanso e prazer. Em geral em alguns países da Europa, nos Estados Unidos e no Canadá, acadêmicos (inclusive os mais prestigiados) reclamam muito da vida, mesmo nos frequentes momentos de ócio em que podem viver. Nós brasileiros sempre teremos muito a realizar, em várias frentes. Ansiedade se corrige com terapia, meditação, esportes e lazer. De nada adianta ficar esperando o relógio bater o horário de terminar, sair ou dormir, se não conseguimos organizar nosso tempo com equilíbrio, parcimônia e estratégia. É claro que há momentos em que temos pouca inspiração, pouca energia. Por isso mesmo, temos de buscar sempre encontrar várias formas de dar vazão aos compromissos e às expectativas nos projetos longos. Em projetos longos, penso no futuro; e não tenho mais pudores em romper com algo que me traga manifesta infelicidade, aborrecimentos ou gastura no estômago. Passo adiante.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sim, tenho feito cada vez mais o trabalho de dupla revisão, buscando referenciar sempre na primeira nota de meus textos quem auxiliou com pesquisa, quem revisou, quem comentou. Por exemplo, sou membro hoje de importantes grupos de pesquisa no Brasil e exterior. Cada um à sua maneira, eles têm funcionado muito bem, de modo a permitir que os participantes tenham a rotina de leitura ou discussão em seminários, envolvendo professores e pesquisadores. Desde 2015, estou em outros projetos, como as redes ‘ILS – Interdisciplinary Legal Studies’ e ILP – International Law and Politics, ambas envolvendo instituições de ensino e centros de pesquisa de várias partes do globo e permitem esse encontro de ideias, intercâmbio de materiais e que nos movem a um velho costume iniciado na segunda metade do século XIX: os congressos e reuniões científicas. Hoje, os e-mails, videoconferências e plataformas de mensagens também nos ajudam em muito nessas tarefas, mas não substituem o confronto, o contato e o prazer de estar com pares, que muitas vezes se tornam grandes amigos. Se eles dispõem de tempo e se oferecem, não hesito em compartilhar para uma leitura, na expectativa de que os comentários venham.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Relação tensa: de amor e raiva às vezes. Já fui vítima de invasão por hacker, perdi material nos discos rígidos de um já gasto laptop às vésperas de terminar o doutorado, quando fazer backup era “rotina” distante das minhas preocupações. Como disse antes, tento alternar muito a escrita entre os rascunhos no papel, à mão, e os esboços no computador em desktop. Prefiro os PCs aos portáteis. Não gosto de ler ou trabalhar em smartphones e tablets: são péssimos para a concentração, intelectualmente deletérios e diminuem nossa capacidade de ponderação, de crítica. Tudo é pelo rompante do achismo, pelas opiniões a qualquer custo. Mas cada um tem um jeito, um perfil. Nesse ponto ando bem radical (no sentido de ir direto para as ‘raízes’). Nas redes sociais, somente me “manifesto” quando algo é absolutamente absurdo, causa indignação ou comoção (deixe a liberdade de expressão rolar!), ou para divulgar uma música, um vídeo ou algo relevante em minhas atividades profissionais.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Um dos aprendizados que recebi ao ter me dedicado aos estudos do direito internacional, propriedade intelectual e novas tecnologias desde os tempos de graduação foi justamente o de valorizar aspectos que passariam despercebidos da maioria dos pesquisadores na área do Direito: a necessidade de abandonar os quintais, as trincheiras e fronteiras, e olhar com intensa curiosidade para o mundo, para o novo e para o outro. Sempre me recordo do papel do engenho humano como capaz de transformar, de contestar e de se fazer representar. Aqui, nada de diferente do que aprendi também com mestres maiores da literatura luso-brasileira que influenciaram minha formação na escrita e me inspiram nas ideias até hoje: Camões, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Saramago. A escrita permanece com tais missões. Sejamos francos e justos com ela. A criatividade, contudo, vem da combinação entre conhecimento, inspiração, curiosidade, intelecto e técnica. Não como dissociá-la desses atributos. Eles conformam uma arte própria. Nem sempre “estamos criativos”. Isso significa que há tempos de evolução e paralisia. Ao reunirmos e trabalharmos esses atributos, dificilmente chegamos à involução da criatividade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Penso que meu processo de escrita tenha se tornado mais simples, pelo estilo, mas também sofisticado, pelo acúmulo de conhecimento. Temos uma capacidade de aprendizado enorme e ele pode ser desenvolvido diariamente. O aprender e compartilhar favorecem, por sua vez, incrementos no processo da escrita. Sobre a segunda parte da pergunta, eu diria: nada, absolutamente nada. A escrita de minha tese de doutorado e a escrita de tantos outros trabalhos acadêmicos que desenvolvi refletem precisos momentos de minha vida. Devem ser vistas pelo leitor como uma fotografia, apreciada dentro do que seu tempo diz, e que captura um átimo da realidade e vivência. É muito fácil ficar remoendo erros ou arrependimentos do que se escreveu, deixou de escrever ou o que poderia escrever. O difícil é admitir que o que valeu foi a experiência, de um trânsito entre juventude e maturidade. Todo autor passa por esse percurso.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria muito de ter dado respostas mais curtas às questões de 1 a 9, e peço enormes desculpas aos leitores e leitoras em suas leituras e releituras sobre essa coluna. Mas refleti sobre o caráter inovador e a elegância do projeto “Como eu Escrevo”, e de sua proposta. Ele me instiga a concordar com a necessidade de que eu termine muitos dos meus projetos em andamento e, na hora adequada, possa decidir pelo próximo projeto. Na data de hoje, seria mais fácil falar de projetos de viagens, de gastronomia, de música, de vinhos, do que um ambicioso projeto para o fim da crise política e moral por que passa o Brasil… E sobre o livro, difícil. Talvez algo em torno de “Blade Runner para Direito”, em apologia a um dos meus filmes prediletos, uma obra genuína da sétima arte, de Ridley Scott. Nele, remanesce a consciência de que mesmo potencialmente andróides, não estaríamos imunes da reação de humanos: centros operacionais de emoções, sentimentos e limitações.