Fabio Silvestre Cardoso é jornalista, autor de “Capanema, a história do ministro da Educação que atraiu intelectuais, tentou controlar o poder e sobreviveu à Era Vargas”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Costumo acordar bem cedo, porque funciono melhor pela manhã. E, claro, na medida do possível tento manter uma rotina produtiva nesse melhor momento, por assim dizer. Isso vai da leitura – jornais e livros – até mesmo a alguma atividade física, que também considero elementar para a manutenção da prática da escrita. Tento, assim, seguir uma agenda para não ser atropelado pelas distrações de sempre – internet, por exemplo. Fico bastante satisfeito, portanto, quando, às 11h30, já dei conta de boa parte do que havia programado no dia anterior – e aí consigo pensar com mais calma na elaboração de novos textos, por exemplo, ou, ainda, no que este ou aquele livro pode me ajudar no processo de escrita. Quando perco um pouco o pé dessa rotina, temo pela não manutenção de projetos a longo prazo, que, grosso modo, costumo planejar no início de cada ano.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A prática da escrita tem a ver com esse planejamento diário que mencionei logo acima. Num dia produtivo, consigo me organizar para escrever logo pela manhã, retomando o trabalho no período da noite. Houve uma época em que eu só considerava isso bem feito quando passava longas horas nessa mesma atividade (desenvolvendo um tópico/capítulo ou ainda escrevendo um artigo longo). Hoje em dia, estou mais flexível quanto a isso, de modo que posso escrever pela manhã (em torno de 1h, 1h30) e um pouco no final do dia (1h, 1h30), reescrevendo. Quando as demandas do trabalho que não estão ligadas à prática da escrita estão mais intensas, sigo para um plano B, a saber: escrevo quando há tempo e onde há espaço.
Em relação ao ritual de preparação para a escrita, até começar “Capanema – a história do ministro da Educação que atraiu intelectuais, tentou controlar o poder e sobreviveu à Era Vargas” (Record, 2019), eu costumava escrever direto no computador, depois de algumas anotações num documento à parte (bloco de notas, por exemplo). Em 2016, quando o processo de escrita do livro evoluiu de maneira mais considerável, iniciei uma prática que, atualmente, me parece ideal: escrever primeiro à mão, num caderno pautado, utilizando canetas de escrita suave. De certa forma, consegui tirar um pouco da pressão adotando essa prática porque o texto fluiu muito mais levemente. Num segundo momento, passo a limpo essa versão ao reescrevê-la num editor de texto para computador. Tenho a sensação de que o meu trabalho se tornou mais consistente depois disso.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Houve uma época em que achava melhor escrever somente aos finais de semana. Passava os sábados e os domingos em casa, só parando para as refeições. Em outro momento, deixava o deadline acumular e fazia tudo de uma vez, bloqueando a agenda para outros compromissos. A adrenalina, nessas condições, era excelente, e é mesmo possível se desenvolver colocando esse alerta na cabeça, só que o resultado do texto muitas vezes não está à altura do que se pode alcançar com mais planejamento e eu definitivamente não sou como Carlos Heitor Cony, que, segundo contou Joaquim Ferreira dos Santos certa vez, era capaz de escrever uma crônica em 20 minutos. Por isso tudo, felizmente, mudei – e agora escrevo todos os dias, refinando, sempre que possível, versões anteriores do meu trabalho. Acredito que escrever é reescrever – e só é dá para aprimorar o trabalho que já foi iniciado. Quanto à meta diária, busco escrever em torno de duas páginas por dia. Então, num dia ideal, eu escrevo a primeira versão pela manhã e a reescrevo à noite.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A leitura – e, por conseguinte, a pesquisa – é peça elementar nesse processo de escrita. Essa etapa é marcada por anotações à margem dos livros ou em cadernos que estão sempre ao meu lado durante a pesquisa. Depois dessa primeira etapa, a ideia é esboçar o texto a partir desses rascunhos iniciais, tentando responder a algumas perguntas: “onde pretendo chegar com esse texto? Quais são os pontos que devem ser abordados? Como pretendo concluir essa linha de raciocínio?” É claro que esse processo não é uma camisa de força, mas para o tipo de escrita à qual eu me dedico, que é a de textos de não-ficção (textos jornalísticos, resenhas, ensaios e, mais recentemente, uma biografia) abre espaço para o estabelecimento de um método para que eu possa escrever com mais frequência – só a prática permanente permitirá que eu tenha mais recursos para empregar na hora de escrever.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Uma vez, uma professora me disse que era preciso escrever todos os dias, nem que fosse uma linha. Creio que na disciplina em questão – no doutorado – essa foi a “lição” mais preciosa, porque algumas coisas vão se desenvolver tão somente se você continuar escrevendo – o que não necessariamente tem a ver com a publicação constante de tudo o que foi escrito. O texto tem de “descansar” um pouco, a meu ver. Em relação a um projeto mais extenso, como “Capanema”, a experiência foi a seguinte: minha ansiedade aumentava proporcionalmente à medida que eu não escrevia. Quando eu escrevia (e mantinha a rotina de atividade física), me sentia confiante para continuar a escrever – portanto, é um processo que, no meu caso ao menos, se retroalimenta. Em última instância, ainda em relação à ansiedade, não é possível controlar a recepção do que você escreveu – o que, sim, dá para controlar é o nível de dedicação e de entrega a esse projeto, e isso não pode ser apenas no plano das ideias; é preciso “aparecer no trabalho” constantemente, como disse Ian McEwan numa entrevista.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Costumo revisar meus textos sempre que possível, até não mais ser possível executar qualquer alteração. E, sim, mantenho a prática, que considero saudável, de enviar os textos a outras pessoas para que elas possam fazer uma leitura preliminar. Nem sempre isso é possível porque essas pessoas têm as suas próprias atividades, mas o texto ganha com esse novo olhar e penso que me tornei mais atento em relação ao que eu pretendo dizer.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não vejo a tecnologia como inimiga, uma vez que ampliou, do ponto de vista de acesso imediato, o leque de referências disponíveis. É inevitável, no entanto, que exista mais dispersão porque a navegação pode ser não somente aleatória, como infinita. Assim, e retomando o que disse a respeito dos primeiros rascunhos à mão, observo que o texto fica, de um lado, mais solto e, de outro, existe fluência exatamente porque você não para a todo momento para ver este ou aquele site que dispersa a sua atenção. A meu ver, a tecnologia nesses casos deve ajudar, e não ser um obstáculo para que a escrita alcance o papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias estão totalmente associadas ao repertório de leituras que cultivo cotidianamente. Então, geralmente, são temas relacionados à História do Brasil, à História das ideias, à cultura e à literatura. São temas que sempre me estimulam. Mas é certo que não restrinjo minhas leituras a esses assuntos, uma vez que gosto de experimentar o que outros autores de outras áreas têm a dizer – e, mais importante, da maneira como expressam as suas ideias.
Nesse sentido, e agora respondendo à segunda parte da pergunta, frequentar exposições, espetáculos musicais e peças de teatro mantém o “gatilho” da criatividade sempre alerta, porque acredito que sejam experiências correlatas. Quando isso é feito sem a necessidade de produzir um trabalho logo em seguida, o resultado, em termos de criatividade, é ainda mais rico, porque, mesmo sem estar produzindo, é possível construir um repertório de longo prazo, pois as referências estarão sempre ali.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Creio que, no passado, esse processo de escrita era menos consciente, uma vez que eu não entendia muito bem como deveria fazer para chegar onde eu gostaria de chegar. A partir do momento que me decidi pela escrita, passei a entender que deveria me organizar para isso. Por esse motivo, os anos que passei colaborando para o Digestivo Cultural e para o Rascunho me prepararam para não apenas me formar como leitor mais refinado, como, também, me deram mais confiança de como alcançar os meus objetivos como autor.
Se eu pudesse voltar à escrita dos primeiros anos, creio que investiria mais tempo na leitura e na releitura dos clássicos – Cervantes, Dickens, Gogol, Flaubert, Kafka, Machado de Assis, Tolstói, Graciliano Ramos – e talvez diria para não ficar tão ansioso quanto a publicar tão rapidamente. O mais importante, penso, é ter certeza do que se quer dizer e as ferramentas para levar a cabo esse propósito.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever outros livros sobre a história do Brasil, cujos personagens ainda não foram devidamente explorados em narrativas mais longas – algo na mesma linha que fiz com Gustavo Capanema. Tenho a impressão de que alguns nomes caíram no esquecimento, ainda que sua relevância no âmbito da cultura, do esporte, da educação e da política não foi superada. Penso que a biografia é o formato ideal para retomar essas histórias.