Fabio Shiva é escritor, músico e produtor cultural.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sempre procuro começar meu dia com meditação. Felizmente essa foi uma rotina que eu e minha esposa conseguimos estabelecer: ao acordar, sentamos por meia hora para ler algum texto inspirador, cantar alguns mantras e meditar. Isso já está tão arraigado que se por algum motivo não consigo meditar, eu sinto um incômodo profundo, como se não tivesse escovado os dentes ou algo assim. Considero a meditação um dos maiores tesouros de minha vida, e acredito que essa é uma das mais poderosas ferramentas de transformação individual e coletiva. Também medito à noite, antes de ir dormir, mas ainda não alcancei a profundidade e a duração que eu gostaria. Esta, na verdade, é uma meta que espero alcançar até o fim do ano: meditar um mínimo de meia hora toda noite.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Atualmente produzo melhor quando escrevo pela manhã, logo depois de meditar. Quando eu estava escrevendo meu primeiro livro era exatamente o contrário, sentia-me imprestável de manhã e só conseguia escrever durante a noite, muitas vezes madrugada adentro. Hoje eu só escrevo à noite quando não há outro jeito, para cumprir a meta. Acho que essa “mudança de turno” aconteceu devido a dois motivos. Primeiro, porque antes eu fumava, e muito. Então essas noitadas de escrita eram regadas a muito café e cigarros, ou seja, eram sustentadas por meios artificiais. Não era um processo natural, que brotasse de meu próprio organismo. Por outro lado, não era de se admirar que depois de varar a noite escrevendo, fumando e me encharcando de café eu acordasse me sentindo um farrapo humano. O segundo motivo para ter mudado “da noite para o dia” tem mais a ver com o processo da escrita em si. Quando comecei a escrever eu tinha toda uma série de imagens românticas do escritor batucando a máquina de escrever com um olhar ensandecido, um cigarro pendendo dos lábios e um cinzeiro abarrotado de guimbas à sua frente. Então eu procurava fazer o possível para me aproximar dessa figura idealizada. Depois de passar pelo rito de passagem de escrever e publicar meu primeiro livro, necessariamente tive que desconstruir essa imagem, principalmente porque ela é contraproducente. Escrever já é um troço suficientemente difícil, sem que você tenha que atrelar a isso hábitos pouco saudáveis como fumar e passar noites em claro. Por isso foi uma das descobertas mais libertadoras ver que eu era capaz de escrever sem fumar. Acho até que escrevo melhor hoje em dia, embora não caiba a mim dizer isso. Mas pelo menos sinto que escrevo com mais facilidade, mais fluidez. Quanto ao ritual para escrever, sou adepto da máxima do Sinclair Lewis: “escrever é a arte de sentar o traseiro em uma cadeira”. Tento me despir dos rituais, sinto que até certo ponto são necessários e até bem-vindos, pois ajudam você a focar a mente no processo de escrita. Mas todo ritual é um hábito, e todo hábito é uma prisão. Se você só consegue escrever no silêncio, basta um vizinho barulhento para acabar com sua literatura. Tenho me exercitado para conseguir escrever nas circunstâncias mais diversas. Isso é estimulante. Pelo que me lembre, o único ritual consciente que adoto hoje em dia é recitar um mantra antes de começar a escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tento escrever um mínimo todos os dias. Acho que esse método é bem mais proveitoso que tentar escrever muito em momentos esparsos. É o mesmo princípio que se aplica a praticar exercícios físicos ou qualquer outra atividade. Se todos os dias você dedica um tempo para escrever, mesmo que sejam alguns poucos minutos, está sinalizando para sua mente que esta é uma ocupação importante, que isso é algo vital para você. Então sua mente vai mobilizar energias para ajudar você a escrever cada vez melhor e mais rapidamente. É tudo uma questão de hábito. Se você consegue criar o hábito de escrever diariamente, não vai conseguir ficar um dia sem escrever. É uma sensação terrível: eu, por exemplo, me sinto como se estivesse desperdiçando o próprio ar que respiro quando fico um dia sem escrever. Não deixa de ser uma prisão, mas nesse caso é uma prisão que me ajuda a escrever, então a acolho de bom grado. Eu procuro estabelecer metas diárias, mas são metas flexíveis e razoáveis, capazes de se adaptar às mudanças e imprevistos de cada dia. Dificilmente eu coloco uma meta em termos de quantidade de palavras. Ou me determino a escrever durante um determinado período de tempo, ou então a cobrir um determinado trecho da história que estou escrevendo, varia a cada dia. Se você coloca metas muito rígidas ou muito difíceis de serem atingidas, vai encerrar a maior parte dos dias com uma sensação de fracasso, e isso é muito ruim a médio e longo prazo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo é meio caótico, fica até difícil falar a respeito em termos genéricos. Varia muito a cada projeto, até porque até aqui tenho sempre feito algo bem diferente do projeto anterior. Mas de modo geral eu começo com um período de “gestação”, que é principalmente mental, quando faço poucas notas. Geralmente as primeiras ideias surgem ainda quando estou finalizando o projeto anterior. Pensando sobre isso agora, acho que as primeiras ideias sobre um livro novo surgem meio como uma válvula de escape, pois a etapa de finalização de um livro é muito desgastante. É algo que ocorre de forma lúdica, como uma “hora do recreio” ou algo assim, ideias com as quais eu vou brincando nos intervalos do “trabalho sério”. Em uma etapa posterior, escolho uma dessas ideias para ser o novo livro ao qual vou me dedicar. Começo fazendo um esboço geral do livro, detalhando como será a estrutura de capítulos e outros detalhes. Entre esses detalhes estão algumas manias que fui desenvolvendo, que variam de livro para livro. São umas regrinhas que crio para mim mesmo, como um jogo secreto que me ajuda a estruturar e visualizar o texto. Talvez tenha me apegado a essas manias por conta de meu primeiro romance, O Sincronicídio, uma história policial que foi estruturada com uma série de regras muito rígidas: cada capítulo corresponde a um dos hexagramas do I Ching e também a uma das 64 casas do tabuleiro de xadrez, possibilitando que a narrativa execute um “passeio do cavalo”, que é um problema de xadrez onde o cavalo precisa percorrer todas as casas sem repetir nenhuma. Como é fácil de se imaginar, essa estrutura representou uma dor de cabeça monstro na hora de escrever, e não foram poucas as vezes em que me xinguei por ter tido essa bendita ideia. Mas depois que o livro ficou pronto, como sempre, todos os sacrifícios foram esquecidos e tudo valeu a pena. Quando fui escrever meu segundo romance, Favela Gótica, obviamente quis fazer algo bem diferente, o mais direto e simples possível. Mas acho que acabei sentindo falta de ter algumas regrinhas, assim acabei adotando uma que me pareceu inofensiva: terminar cada capítulo com a mesma frase utilizada no título. Gostei de ter feito isso, então adotei outra dessas regrinhas no livro que estou escrevendo agora: começar todos os capítulos com uma fala, com um diálogo. São detalhes aparentemente insignificantes, mas que de alguma forma me ajudam a dar coesão ao texto. E, principalmente, tornam o processo todo mais divertido. Talvez sejam maneiras de gerar motivação para o ato de escrever. Quanto à pesquisa, normalmente vou pesquisando os assuntos necessários à medida que vou escrevendo. Procuro escrever sobre temas que me interessam, sobre os quais eu já sei alguma coisa, de modo que não preciso começar fazendo pesquisa. Voltando a O Sincronicídio, por exemplo, creio que posso ser considerado um obcecado pelo I Ching. Antes de escrever esse livro eu já havia desenvolvido um jogo eletrônico chamado “VIDA”, que foi lançado no CD de mesmo nome da banda Imago Mortis, onde o jogador podia escolher entre mais de duas milhões de mortes diferentes antes de receber um oráculo do I Ching. Também cheguei a apresentar um programa de rádio que tinha um quadro chamado “Hora da Mudança”, onde eu falava do hexagrama do I Ching correspondente à hora certa. Por aí dá para se ver que minha relação com o Livro das Mutações é bem obsessiva. Já o xadrez exigiu um pouco mais de pesquisa, embora eu já fosse apaixonado pelo jogo. Quanto à estrutura do romance policial em si, meu objetivo com O Sincronicídio era fazer referência a todos os principais estilos de narrativa: clássica, whodunit, noir, escatológica etc. Então procurei ler o maior número possível de livros policiais nesse período, mas logo tive que admitir para mim mesmo que eu na verdade estava utilizando a pesquisa como uma desculpa para poder ler à vontade esses livros tão viciantes. Em meu romance seguinte, Favela Gótica, o ponto de partida foram os monstros da literatura, do cinema, da mitologia. Eu já conhecia o suficiente para começar, e fui pesquisando mais à medida que fui avançando no livro. Nesse sentido, gosto muito de uma analogia para o processo de escrever, infelizmente não lembro o autor, que disse algo mais ou menos assim: “Escrever é como dirigir de carro à noite. Você não enxerga o percurso todo, mas os faróis iluminam alguns metros à frente, possibilitando que você avance um trecho de cada vez, até que consegue chegar ao destino”.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Desenvolvi duas estratégias básicas para lidar com esse tipo de situação. A primeira é exercitar a paciência. Perceber que aquele momento ruim é transitório, apenas uma fase, não é algo que vai durar para sempre. Não ficar forçando a barra, tentando escrever a qualquer custo. Respeitar o seu momento, procurar fazer outra coisa, espairecer, desanuviar a mente, relaxar. E ao mesmo tempo tentar aprender com o que está acontecendo, se colocar no papel de observador. Essa é a segunda estratégia, que considero mais importante. Acredito que todo problema já contém em si a própria solução. Quando um problema surge em nossa vida, é porque precisamos aprender essa solução. Enquanto não aprendemos, o problema persiste. Só que na maioria das vezes tentamos vencer o problema na base do sopapo, brigando com ele, ou então fazemos de tudo para nos convencer de que o problema não existe. Tenho aprendido, por experiência própria, que a maneira mais eficaz de lidar com um problema é reconhecer a sua existência, sem contudo dar demasiada importância a ele. Se você consegue desenvolver esse tipo de receptividade, acaba colhendo frutos interessantes. É muito importante esse movimento, de querer descobrir o que o problema está tentando dizer para você. Penso que na maioria das vezes as travas da escrita surgem como convites para sairmos de nossa zona de conforto. São oportunidades de fazermos as coisas de modo diferente, e até de enxergarmos as coisas de modo diferente. Isso porque geralmente só conseguimos mudar e evoluir quando algo nos incomoda profundamente. Lembro de uma anedota que exemplifica bem isso. Um sujeito vai abastecer o carro em um desses postos de beira de estrada, quando nota um cachorro deitado em cima de uma ripa de madeira, ganindo de dor. Ele pergunta ao frentista o que o cachorro tem, e o frentista responde que o cão está deitado em cima de um prego. “Mas por que o cachorro não se levanta?”, pergunta o sujeito. E o frentista responde: “É que a dor é suficiente apenas para fazer ele gemer.” Acho que na escrita, assim como em nossas vidas, acontece algo parecido. Um incômodo pequeno pode nos fazer gemer e reclamar, mas um incômodo grande o suficiente nos fará dar saltos!
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu sou do tipo que está sempre revisando suas crias, sempre retocando um detalhe aqui, outro ali. Então me obrigo a decretar um momento em que digo: “é isso!” E considero o texto finalizado. Nesse momento, mostro para algumas poucas pessoas, em cuja opinião eu confio. Minha esposa Fabíola e meu irmão Fabrício são geralmente os primeiros a ler o que escrevo. Dependendo do texto, peço a alguém para fazer uma análise técnica de algum trecho específico. Por exemplo, Favela Gótica tem uma cena importante que envolve a capoeira, então pedi a meu mestre de capoeira, Tyko Kamaleão, para avaliar se a cena estava bem estruturada. Depois de tudo, como revisão final, leio o texto impresso. Aprendi esse truque com o Haruki Murakami: é bem diferente ler um texto no computador e ler impresso no papel.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Atualmente prefiro escrever à mão. Quando escrevo direto no computador, pela facilidade de editar o texto a qualquer momento, percebi que fico muito autoconsciente, meio que escrevendo e revisando ao mesmo tempo. Isso faz com que o processo de escrever seja mais lento e muito penoso. Quando escrevo em um caderno não existe “crtl Z”, nem “ctrl X”, nem “ctrl V”, então sou obrigado a seguir em frente, mesmo que não esteja gostando muito de um trecho ou outro. Depois, quando vou passar o texto para o computador, aproveito para fazer uma primeira revisão. Então acho que acabo rendendo melhor assim. Só percebi que não posso deixar acumular muito texto no caderno para digitar, pois isso acaba gerando uma preguiça descomunal!
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Essa é a eterna pergunta, que todos fazem e ninguém consegue responder: “de onde vêm suas ideias?” Acho que no dia em que encontrarmos uma explicação satisfatória para essa pergunta, talvez o próprio ato de escrever seja esgotado e ninguém mais volte a sentir essa estranha compulsão. Eu não saberia dizer de onde vêm minhas ideias, mas sinto que elas estão de alguma forma relacionadas com coisas que me incomodam. Nesse sentido, o escritor é como a ostra, que tenta transformar o incômodo grão de areia em uma pérola. Cada novo livro que escrevo tem algo a revelar sobre mim mesmo, algo que preciso descobrir. Então posso dizer que minhas ideias nascem de desejos, medos e culpas inconfessáveis. Quanto a me manter criativo, acho que isso está muito ligado à capacidade de continuar se surpreendendo com as coisas. Há muito tempo fiz uma promessa para mim mesmo: jamais me acostumar com a beleza. Tenho a felicidade de desenvolver um projeto na Casa da Música, que está situada às margens da lagoa do Abaeté. Então eu sempre digo aos participantes: percebam a beleza que nos cerca. E todas as vezes que voltarem aqui, estejam atentos para a beleza. O artista jamais deve se acostumar à beleza. Ele deve estar sempre nutrindo seu coração de beleza, para que possa transmitir aos outros.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que estou menos desesperado, menos afoito. Para o bem e para o mal, sinto que confirmei a minha vocação de escritor. Não preciso mais provar a mim mesmo que nasci para isso. Nunca se tratou dos outros, sempre foi algo do tipo “eu comigo mesmo”. Uma parte minha lamenta ter perdido tanto tempo com hesitações, dúvidas, inseguranças, preguiça. Mas no fundo sei que não poderia ter sido de outra forma, pois cada etapa foi necessária para que eu chegasse aqui e agora. Hoje percebo o processo de escrever como um esforço de compreender a verdade a respeito de si mesmo. Escrever é uma tentativa de despertar. Ao menos da forma como eu sinto. Isso não tem nada a ver com o número de exemplares que você vende ou com os prêmios literários que conquista. Isso tem a ver com a percepção constante do mistério, que você tenta elucidar construindo castelos feitos com palavras. Escrever é buscar o encontro consigo mesmo. Isso é algo que não pode ser apressado ou abreviado, é um processo que ocorre em seu próprio ritmo, como as estações do ano. Então, se eu pudesse voltar no tempo e dizer algo para mim mesmo quando comecei a escrever, acho que seria algo do tipo: “Ah, você pretende escrever? Gostaria de ler depois.”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Nossa, tenho muitos projetos de livros por escrever! Acho que isso é uma forma de secretamente aspirar à imortalidade, não no sentido dos imortais da academia, mas porque só vivendo eternamente para conseguir escrever todos os livros que eu gostaria. Por algum processo misterioso, os dois primeiros romances que escrevi se desdobraram em dois outros livros, que existem ainda só no plano das ideias, sendo um novo romance e o outro de contos. O Sincronicídio gerou A Mais Tocada de Todos os Tempos e Os Mistérios do Guru, e Favela Gótica engendrou A Ilha da Eterna Onda e Contos de Akasha. Além desses estou gestando lentamente dois romances desafiadores, um inspirado no Mahabharata e outro que faz um paralelo com O Jogo das Contas de Vidro do Hermann Hesse. E ainda há um outro livro de contos que me surgiu em sonho. Isso sem contar três outros que já estão bem adiantados, um de poesia, um infantil e um sobre meditação para crianças. Todos esses são livros que eu gostaria de ler e que ainda não existem. Essa é minha motivação maior para escrever. Entendo que existam pessoas que escrevem movidas por interesses e sentimentos diferentes. Mas no meu caso, o escritor é um fruto direto do leitor apaixonado e compulsivo. Escrevo porque quero ler o que escrevi e, assim, me descobrir.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Já faz um bom tempo que tenho uma fila de livros por escrever, então antes de iniciar a fase da escrita propriamente dita eu passo um bom tempo concebendo e imaginando como será um livro, enquanto vou escrevendo os outros. Gosto de planejar o essencial: quantos capítulos o livro terá, o que será tratado em cada capítulo, quais serão os fios condutores principais, se a linguagem utilizada será mais direta ou mais poética. Além disso, gosto de estabelecer pequenos jogos comigo mesmo, determinando algumas regras que mudam de livro para livro. Por exemplo, em um livro recente iniciei todos os capítulos com alguém falando, enquanto que no livro anterior o título de cada capítulo foi a fala ao final desse capítulo. Além de criar uma espécie de marca distintiva de livro para livro, creio que esses jogos tornam o processo mais divertido e criativo. Mas também me considero bem flexível, não fico atado ao planejamento inicial, estou sempre disposto a rever tudo. Meu processo consiste, basicamente, em tentar ouvir o que o livro quer dizer. Cada livro chega de um jeito. A primeira e a última frase são igualmente difíceis, mas acho que a primeira tem mais peso, pois dela depende todo o resto.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Trabalho como Ghost Writer, por isso tenho sempre no mínimo dois projetos acontecendo simultaneamente: o meu e o do cliente. Evito trabalhar em dois projetos meus ao mesmo tempo, a não ser quando não dá para evitar, e em fases distintas do processo. Por exemplo, recentemente eu alternei a redação de um livro de contos com a revisão de um romance que já havia sido publicado digitalmente, preparando o texto para a publicação física. Isso com relação à prosa. Quanto à poesia, ela chega quando quer e bem entende. Limito-me a ouvir e passar para o papel. Também escrevo letras de música, e curiosamente nesse caso o processo é bem diferente, bem menos espontâneo, pois é preciso fazer a letra caber numa métrica previamente definida. Quanto à organização, tento escrever todos os dias, conciliando da melhor forma com os outros compromissos.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Cada vez mais, sinto minha vocação de escritor como uma jornada de autoconhecimento e de aprendizado espiritual. A cada novo livro que escrevo, deparo-me com um desafio diferente, que ao ser encarado proporciona invariavelmente preciosas – ainda que por vezes dolorosas – descobertas. Escrevo porque preciso descobrir o que cada livro tem a me dizer. Escrever é a minha jornada do herói. Lembro-me do momento exato em que decidi que queria ser escritor. Eu tinha onze anos e contemplava feliz da vida minha recém-inaugurada biblioteca, com alguns livros de Agatha Christie e José de Alencar, minhas duas primeiras grandes paixões literárias, além de exemplares de queridas coleções: Para Gostar de Ler, Vagalume, Sherlock Holmes e Perry Rhodan. Olhando embevecido para aqueles volumes que tantas emoções haviam me proporcionado, decidi que queria aprender aquela magia de criar mundos com o poder da imaginação. E desde então nunca mudei de ideia.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Acho que essa é a grande meta de todo escritor: descobrir sua voz. É meio como descobrir quem se é, e talvez tão difícil quanto. E no meu caso, pelo menos, creio que é um processo contínuo, que não posso esperar que um dia se complete, pois isso significaria que não tenho mais nada a dizer. Existem escritores que buscam se aperfeiçoar em escrever um determinado tipo de livro e que escrevem sempre da mesma forma, apenas aprimorando o processo de um livro para o outro. Não é o meu caso. Nesse sentido, minha grande influência foi o Anthony Burgess, que hoje é lembrado principalmente como o autor de “Laranja Mecânica”, mas que escreveu grandes obras totalmente diferentes umas das outras, como “Poderes Terrenos” (que tem a melhor frase de abertura de todos os tempos: “Era a tarde do meu octogésimo primeiro aniversário e estava na cama com meu veado quando Ali anunciou a visita do arcebispo.”), “As Últimas Notícias do Mundo” (que mistura três temas totalmente nada a ver: Freud agonizante em seu exílio, um musical sobre Trotsky e um asteroide em rota de colisão com a Terra), “Sinfonia Napoleão” (transposição literária da “Eroica” de Beethoven) e “Enderby por Dentro” (uma hilária viagem pela mente de um poeta viciado em masturbação), só para citar meus favoritos. De tanto estudar os livros dele, cunhei uma frase sobre Anthony Burgess que considero lapidar: “Ele podia escrever o livro que quisesse, então dedicou-se aos livros que apenas ele poderia escrever.” E hoje é com muita gratidão que me vejo seguindo essa cartilha que tanto admirei em Burgess. Não diria que posso escrever qualquer livro que eu quisesse, pois isso não é verdade. Mas certamente tenho me dedicado a escrever os livros que apenas eu poderia ter escrito. Digo isso com toda humildade, pois não vai aí um julgamento de mérito dos livros. Escrevi livros que têm tanto a ver com minha jornada pessoal pelo planeta, que não vejo como poderiam ter sido escritos por outra pessoa que não eu.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Como citei acima alguns livros muito bons de Anthony Burgess, vou aproveitar esse espaço para recomendar os três romances que escrevi até o momento. O primeiro, “O Sincronicídio”, é um romance policial concebido como um enigma de xadrez através dos 64 hexagramas do I Ching. O segundo, “Favela Gótica”, é uma fantasia distópica com toques de ficção científica, que no fundo fala de tristes realidades de nosso Brasil. Por fim, “DIÁRIO DE UM IMAGO: contos e causos de uma banda underground” é um romance cômico de não-ficção sobre a banda de heavy metal Imago Mortis. Pegando o gancho da música, quero sugerir também “ANUNNAKI – Mensageiros do Vento”, primeira ópera rock em desenho animado produzida no Brasil, na qual tive a grande alegria de participar como coautor, junto com meu irmão Fabrício Barretto.