Fabio Saldanha é estudante de Português e Japonês na Universidade de São Paulo, autor de quarta xícara de café (2015) e chiclete quebrado (2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina matinal é centrada na divisão da leitura, do café e dos meus gatos, que sempre dão um jeito de ou tentar roubar meu café, ou não aceitarem dividir a atenção dedicada a eles com os livros. Logo em seguida, direto para o trabalho. E acredito ser isso a minha rotina matinal.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não sei se tenho um horário preferido. Acho que a ideia da rotina em si já proporciona um tempo para que se acostume com o trabalho, com o tipo de dedicação que se deve ter e dispor para fazer seja lá o que se tem que fazer. Vivenciei meus períodos de transição com um pouco de resistência, mas o desafio de fazer coisas novas e fazer com que você (e seu corpo, e sua rotina) mudem me fizeram ver novas possibilidades de conciliar tudo o que gosto de fazer.
Não tenho uma preparação ou um ritual. Acho que escrevo de maneira errática, porque não vejo um ritual na mesma – geralmente acabo escrevendo quando tenho meu tempo de leitura, porque vejo na escrita uma espécie de resposta, aos tipos de pergunta e reações que vão sendo formuladas aos textos e ao que vejo e leio para, depois, ser transformado em algo passível de ser escrito, reinserido no que se chamaria de texto literário.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Já tentei escrever todo dia e confesso que não gostei da experiência. Já me desafiei a escrever pelo menos uma vez na semana com data e horário para dar como encerrado certo texto e, bom, foi assim que nasceu meu primeiro livro. Essa experiência foi muito boa, mas acredito que também, nesse período, era algo meu um tipo de exercício de diferentes vozes, com algo que eu gostaria de chamar de meu, como uma apropriação. Talvez por isso tenha sido desafiador e, ao mesmo tempo, produtivo, por ter dado frutos que me foram importantes. Mas, ao mesmo tempo, logo depois do primeiro livro ser publicado eu quis mudar o tipo de relação que tinha com os textos escritos, passei por um período de refreamento, quis deixar de escrever para ler mais, aventurar-me em novos textos, em novos escritores para depois decidir o que fazer com isso. Daí nasceu a maneira de escrever o segundo livro, como resposta, como pergunta, como resposta da pergunta que surgia conforme eu conseguia ler, conseguia me sentir questionado. Para o que vem acontecendo desde então, bom, é segredo.
Brincadeira! O processo de escrita desde então, que foi retomado mesmo esse ano, não tem uma forma muito clara, eu acho: escrevo quando quero, quando me sinto confortável, quando vejo que a pergunta, a resposta, ou o imaginado para um texto possa ser algo que me vai ser gostoso de escrever. Durante um tempo evito escrever porque sinto uma repetição, uma retomada de algo já feito – e aí fico pensando “não quero fazer assim de novo”, ou qualquer coisa parecida. Por isso não gosto de me cobrar – já fiz isso, foi bom, mas não quero de novo – e, assim, escrevo quando quero e ainda reavalio se, de fato, o escrito vale a pena ser salvo ou só engavetado, para uma revisitação daqui uns bons milênios.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não costumo escrever muitas notas – a menos que eu esteja no ônibus em pé ou logo logo desço no meu ponto e não posso começar a escrever, aí sim, faço uma nota ou outra – que muitas vezes acabam sendo esquecidas porque, bom, notas não funcionam muito comigo. Mas isso mesmo é engraçado, porque, relendo minhas notas, às vezes penso “mas que diacho é isso?” Chamo de “processo de pesquisa” a leitura. Para mim, ler é essencial, e deve ser feito antes durante e depois e ainda mais um pouquinho depois de você achar que terminou um texto ou qualquer coisa parecida. Como escrevo poemas, tendo a privilegiar a leitura de autores que escrevem poemas, mas, ainda assim, acho que ler é parte essencial. Não que você precise sempre achar sua voz enquanto cópia, mas sim pelo lado de que é bom: antes de ser escritor, sou leitor e é por ser um leitor que acabei começando a pensar em escrever, e daí para de fato começar a escrever e depois de muito tempo me tornar um autor publicado.
Não defendo que escrever é sofrer ou qualquer coisa parecida, mas sim que a escrita perpassa a leitura de outras pessoas, senão seríamos e continuaríamos sendo somente pequenas ilhas de pessoas que não conversam umas com as outras – e, acho eu, uma das melhores coisas da vida é poder estar em um mundo, o atual, no qual você pode chegar para um autor no lançamento dele, ou falar com ele ou ela por redes sociais e mostrar “olha, eu adorei o que você escreveu!”
Acho que fugi da resposta, não? Mas acho que é isso: meu processo é o da leitura, para escrita, para a leitura. E disso, acho que não arredo o pé.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que a melhor forma de lidar com a trava é uma soneca, um café e leitura. Às vezes um texto não sai porque a pessoa assinando o texto teima demais. Escrever é também reconhecer na gente as nossas frustrações, os nossos limites e o fato de que, muitas vezes, o cérebro e a mão não vão trabalhar juntos. Ao mesmo tempo, procrastinação já parece um pouco a mesma zona de conforto, só que do outro lado: ansiedades, não querer escrever, evitar escrever ou, ainda, evitar um desafio de algum tipo de projeto me parece, às vezes, uma resposta sintomática da necessidade de pausa.
Parar, dar um tempo, querer respirar parece uma necessidade de posse: eu preciso de um tempo porque a relação com a escrita virou reflexo de outras coisas, de outros pontos da vida que aparecem aqui e falam “olha, você precisa olhar pra mim também! não adianta fugir!” – e aí, cabe a quem escreve pensar “ou olho o problema de frente, ou falo que é trava, que a escrita não flui, qualquer coisa assim”. Parar, olhar para dentro – mas também para fora, ir respirar, ler um livro, comer um doce, correr, qualquer coisa assim, é bom porque recarrega as energias e tira a gente desse circuito que passa a virar pressão de sempre exceder metas (essa coisa meio complexo de coach, de todo mundo precisar ser tão dono de si que sempre deve-se passar o outro, a meta vira uma coisa extremamente abusiva se você não reconhece que, às vezes, ao invés de chegar na meta, deve-se viver o processo, o caminho, deixando-o aberto ao que vier a acontecer).
Talvez penso assim por escrever poemas, mas é o que penso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Acho que sou meio preguiçoso, mas vou revisando meus textos aos poucos – às vezes, só reviso quando, depois de escrever, quero ler para alguém ou penso “vou mandar esse texto para X ler!” – e, aí, ao pescar o arquivo, releio e penso “vish!”. Ando meio reservado com os textos que escrevo, talvez por estar com um apreço muito grande ao caráter de, talvez, ser o mais inédito para mais pessoas, então ando lendo em voz alta somente para os meus gatos e meu noivo mesmo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Depois de ter quase perdido um computador, passei a amar o armazenamento virtual, de nuvens e essas coisas assim. Acho fantástico, vendi minha alma mesmo ao computador e aos drives da vida. Nunca fui muito fã de escrever na mão, acho que perco uma parte do que quero no texto – por isso prefiro o computador, mas venho tentando mesclar as coisas. De qualquer jeito, continuo escrevendo a maior parte das coisas no computador, porque assim, muitas vezes, principalmente se a ideia de responder a um texto, ou as perguntas que faço a mim mesmo, me dão muitas ideias ou processos, prefiro digitar e, posteriormente, cortar se for necessário.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Leituras! Leituras e mais leituras! Isso mantém a criatividade e também abre o seu caminho para novas possibilidades: ainda mais se for o contemporâneo, alguém que olha o teu mundo e de repente você pensa “caramba, nunca que eu olhei isso dessa forma!”. O clássico, o cânone, também interessa porque a gente pode reler aquilo, poder ver o texto em um ato de hospitalidade e pensar “olha isso aqui é bonito, me fez pensar isso, acho que dá um texto”. Minhas ideias ou vem de textos, ou vem de conversas e observações na rua, no metrô, qualquer coisa assim. Nada muito espalhafatoso ou fora de algo que hoje acho ser meio comum, até.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou muito minha percepção do processo criativo foi conhecer o slam poetry. Acho que, ao ver esse gênero e essa questão da performance, ganhei a confiança de poder escrever poemas longos, poemas pensados na performance – antes disso, não tinha muito gosto pelo o que escrevia e acabava jogando fora mesmo. Com o tempo, fui dando vazão para esse gênero que acabei conhecendo e fui gostando dos resultados – daí começaram as brincadeiras dos estilos, das vozes e das novas leituras que me mostraram o quanto eu estava em diálogo (ou não) com quem escreve hoje e quais eram as minhas questões e a minha própria capacidade de aliar isso a uma voz, a uma perspectiva e a uma performance.
Se eu me reeconstrasse, falaria para mim mesmo “não coloque na frente da carroça os bois e uma casa toda. Curta o processo!”, mas acho que, se pudesse, falaria mesmo “faça da forma como fez. evite brigas, mas faça da forma como fez e faça o que você bem quiser com o texto. Isso vai te complementar, isso vai dar vasão, isso vai ser bom!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Queria escrever poemas e ficção científica, mas acho que isso fica para uma próxima encarnação, talvez. É bem capaz de todos os livros que quero ler agora já existirem, em algum lugar no mundo… talvez o melhor seria fazer com que eles simplesmente caíssem perto de mim (mas nao na cabeça). Ando pedindo novas referências a toda e qualquer pessoa que se dispuser a me falar um livro/texto que leu e ficou marcado na cabeça, continuo aceitando sugestões!