Fábio Sá e Silva é PhD em direito, política e sociedade pela Northeastern University (EUA) e Assistant Professor na The University of Oklahoma.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Hoje em dia é difícil começar sem ler e-mails e notícias, ou entrar nas redes sociais, o que pode ser uma grande armadilha para uma das minhas formas de escrita (e aquela à qual tenho tentado me dedicar mais), a escrita em profundidade. É grande a força gravitacional do cotidiano, em especial no contexto em que vivemos, no qual a democracia sofreu um revés e direitos e instituições estão sendo dilapidados. Por um tempo até achei que escrever sobre tudo isso era minha tarefa mais premente e importante. Aos poucos me convenci sobre a necessidade de tecer críticas mais estruturais e reconstrutivas da realidade brasileira e o papel que o direito e as instituições hoje nela desempenham (o que me levou até a deixar de lado as redes sociais). Mas a rotina matinal continua sendo tomada por e-mails e notícias, com pouco espaço para a escrita.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Na hora em que o texto flui, e nisso encontro sério problema, pois é possível que tenha que interromper a escrita em função de compromissos (houve um tempo em que sequer conseguia parar para comer ou dormir, mas depois que tive filhos tive que me disciplinar um pouco mais). O ritual de preparação, que eu diria que é meu o hábito reflexivo em si, consiste em estruturar o argumento na cabeça. Apenas quando ele fica mais redondo é que começo a atirá-lo na tela do computador. Nesse processo, costumo usar muitos recursos gráficos, como post-its ou fluxogramas, a partir dos quais vou testando as consistências das ideias, identificando gaps, etc. Também sou capaz de ficar um tanto quanto “aéreo”, com dificuldade de registrar compromissos ou deveres do cotidiano.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A escrita, em si mesma, se dá mais em períodos concentrados. Mas a formação do argumento, como destaquei acima, pode durar dias ou semanas. Não tenho, pois, meta diária.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Uma vez que estruturei o argumento na cabeça (que também é quando “aterrisso”), é fácil começar (difícil, na verdade, é parar). Ao final, quando penso que concluí, deixo o texto descansar e retorno a ele (em geral uma semana ou dez dias depois) para verificar se comunica bem a mensagem que pretendia.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Somatizo bastante, meu dentista sabe bem (tenho problema de ATM; fico com dores fortes e um pouco irritadiço em momentos mais cruciais da preparação de um trabalho).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Uma amiga e colega, Susan Silbey, do MIT, tem um texto fabuloso dizendo que a ciência é uma das formas mais democráticas de sociabilidade, pois requer de nós a fundamentação de um argumento e a disposição para ouvir argumentos em sentido contrário (ciência é intersubjetividade). Conforme fui amadurecendo academicamente, compreendi o sentido e a potência dessa fala (ainda que ache que ela traga riscos de idealização e ideologização da prática científica, que é muito mais permeada por interesses e egos do que Susan sugere). Mas enfim, eu procuro levá-la a sério; meus textos são apresentados duas, três, até quatro vezes para audiências distintas, e vou incorporando o “feedback” que recebo das pessoas. Já a minha revisão mais pessoal, essa também é dolorosa e demorada (para mim e, creio, especialmente para quem me pede textos): sou capaz de reter um texto por dias simplesmente porque não estou satisfeito com uma frase.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A escrita em si é no computador, mas, como disse, sou adepto de recursos gráficos para organizar o pensamento. Já passei por situações engraçadas, nas quais não conseguia produzir por ter perdido um “desenho” no qual havia estruturado o argumento. Algum tempo depois fui encontrar esse desenho junto com as coisas dos meus filhos, devidamente colorido com canetinhas e tinta guache. Felizmente já havia conseguido reconstituí-lo em minha mente.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Participar de congressos é sempre bom para tomar contato com novidades e tendências analíticas (o caráter intersubjetivo da ciência de que falei acima). Já fui a painéis sobre os quais não tinha nenhum interesse em particular, mas a partir dos debates saí com a cabeça fervilhando de possibilidades de replicação de trabalhos ou construção de estudos paralelos. Por outro lado, cenas do cotidiano exercem sobre mim uma força imensa. Por exemplo, tenho grande interesse pelas profissões jurídicas e, mais recentemente, pelo que poderíamos chamar de elites jurídicas. Assistir advogados e advogadas atuando em eventos, reuniões, etc., é uma grande fonte, para mim, de questões de pesquisas, empíricas e, cada vez mais, teóricas (confesso aqui uma pequena inveja de antropólogos e antropólogas que têm na observação sua principal técnica de pesquisa).
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Experimentei diversos estilos. No início, por conta da minha formação jurídica, adotei linguagem muito rebuscada e pedante. Depois, quando comecei a escrever textos mais curtos e de opinião, passei a valorizar o “foco” e a necessidade de ter sempre uma mensagem central que quero passar (o texto, nesse caso, é uma intervenção cirúrgica em um processo de formação de opinião). Nesse ínterim me desconectei do direito e ingressei no mundo anglo-americano, e aí peguei diversos cacoetes das ciências sociais dos EUA (introdução, teoria, métodos, resultados e conclusão). Minha fase atual é voltada a trabalhos de maior profundidade, na qual nenhum desses estilos será exatamente útil. Então vou ter que me reinventar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Queria analisar as medidas tomadas pelo governo Temer, desde o afastamento da presidenta Dilma, e verificar em que medida elas coincidem ou não com o discurso que os (neo)liberais faziam sobre a relação entre direito e economia nos anos 1990. O que me lembro de ler à época era que qualquer mudança legislativa deveria ser precedida de análises de impacto, havendo, assim, na consciência jurídica (neo)liberal, uma relação mutuamente constitutiva entre direito e eficiência. Em 2016 e 2017 tivemos várias medidas, tais como eliminação de Ministérios, mudança na estrutura de ocupação de cargos de confiança, a PEC do teto de gastos, a reforma do Ensino Médio… Gostaria de ter acesso a dados do processo de formulação dessas demandas e compreender qual a consciência jurídica que está por trás delas… Se não for tipicamente (neo)liberal, como podemos caracterizá-la?
Quanto a livros, estou, como todo mundo, à busca de referências para entender as crises atuais, em especial no que tangem à derrocada do que Nancy Fraser chamou, recentemente, do “fim do neoliberalismo progressista”. Quando pensávamos que o pêndulo da história poderia girar de novo para um polo estruturado por integração econômica e direitos humanos, estamos vendo algo bem diferente acontecer em todas as partes do mundo. Mas imagino que já haja, sim, pistas para entender isso em diversos livros (aceito dicas).