Fábio Pessanha é poeta, mestre em poética e doutor em teoria literária pela UFRJ.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
acordo sempre pela segunda vez, dentre tantas noites mal fingidas ou bem tramadas, se dormidas. de manhã, abro portas e janelas, peço ao sol que me releve, que faça breve a rotina dessas palavras que teimam em não serem escritas. mas acordo de novo, pela quinta vez. isso não é uma rotina. talvez seja uma tentativa de nascer para sempre. abrir os olhos como se o mundo vingasse no meu peito, como se as horas não fossem vãs e os desejos, todos refeitos. a alegria de um estado de nervos que faz o corpo ser corpo e se deitar junto com a cama que é ainda outro corpo, um senão sem resposta, uma alternativa, quem sabe, para a tentativa de mais janelas no quarto onde não durmo. o dia não começa porque nunca termina. é sempre noite quanto mais se faz dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
não há ritual nem trabalho. não há escrita. não há hora melhor. não há dia melhor. nunca há dia melhor. não há dia. nem noite. tampouco ritual. trabalho. não há. escrita. se foi. melhor? pior? o preparo gasto nas horas das palavras é constante, porque o que há é linguagem. o que mora nesse turno são gestos, palavras são desenhos que rascunham o infinito, e nada mais. nenhum senão é suficiente para dizer que o risco de se morrer exatamente agora provoca uma avalanche no meio do caminho para o lugar que nunca será um destino. toda hora é bem-vinda, pois o tempo é só chegança e atropelo. às vezes, nem cabe mais um tchau ou vai com deus. a escrita é o tempo todo. ou nunca foi.
não há preparo que eu repare. quando muito o que acontece é um salto para dentro do delírio de algumas reinvenções palavrais, frasais, uns mistérios semânticos que comparecem de repente. é preciso ficar atento para esses repentes.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
o texto é uma coisa sem jeito, sem muita obediência. das vezes que fazemos as pazes, ele me engana e aparece quando não deve. gosta de fazer surpresas quando estou pelado, prefere as horas impossíveis, e acho até que isso é bem comum de se dizer. é bonito fazer charme de pessoa avessa aos moldes convencionais. tento dizer uma resposta que nunca ficará pronta. mas confesso: não há resposta. só perguntas postas. as portas pelas quais os pés compassam desatinam o eixo irregular da escrita. tento ser bem educado, crer que existe rotina, e até existe. até. porque sempre tem aquela hora em que:
eu sento e escrevo e não me distraio não paro concentro concentro concentro não cogito um copo d’água nem vontade de uma punheta rápida e vou e vou e escrevo sem parar sem respirar sem olhar para trás sem invejar o vizinho disciplinado sem olhar a amiga pela janela sem tentar dizer para mim mesmo que amanhã vai dar certo que amanhã vou me concentrar que amanhã nada me distrairá que amanhã será melhor que não vou atender o telefone que não vou perder a paciência com ninguém que não vou planejar futuros durante o presente que não estarei mais tempo no passado do que deveria que ainda não é meio-dia que dá tempo que sempre dá tempo que o tempo em mim é diferente que ninguém me entende quando digo que nem tempo tenho para entender que o tempo não se mede que não se prende em régua que regras são ficções que a gente inventa para enganar essa agonia de tentar correr mais rápido que as penas que o mundo é imenso de grande mas eu dou conta eu sempre dou conta sempre dou conta sempre dou conta sempre dou conta sempre dou conta sempre dou conta sempre dou conta sempre dou conta sempre dou conta sempre dou contasem predoucon tas empr ed ouc ont asemp redo ucon tas emp red ouco ntas empredouc ontase mpred oucon tasempr edoucontasem pred ouc onta sempredouconta que sempre há contas para pagar
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
só há processo todo o tempo. todo o tempo só há escrita. processo significa caminhar para adiante, uma movência constante. escrita é tessitura. um véu que não se rasga. uma teia que só aumenta. só há processo. só há escrita. nenhuma nota nunca é suficiente, nenhuma anotação registra o que se precisa exatamente escrever. tentar dizer é sempre um enigma. a fala é um poema que nunca foi escrito. o outro é um “quem” muito perto da gente. a gente é o outro o tempo todo. o outro do outro. o outro da gente. o outro ambulante. nessa alteridade infestada de rupturas não há sujeito. eis uma das maiores invenções retóricas: o sujeito. não há sujeito apenas, como algo sozinho e potente em si. há, quem sabe, o jeito nunca certo, jamais encontrado de se entrever nesse meio entre mim e o outro que a gente é, que me olha no espelho, que avisa ao orientador que o trabalho está encaminhado, mas é uma mentira.
desenvolvo um projeto em meu doutorado, que se intitula “Manoel de Barros e Paulo Leminski: a palavra como experiência do poético”. uma pesquisa que me pesquisa e me faz desconfiar de quem sou. mas aprendi que isso vai levar a vida toda, porque não interessa tese, não interessa defesa, tampouco banca, tampouco teoria literária que, na verdade, é poética, sempre será – em mim – poética, que vou entregar no prazo, quando o prazo é um limite inventado. mas o prazo está dentro do meio do caminho que a gente é. um interstício entre início e fim, quando início e fim também são uma invenção, pois o que é existe, e é só caminho: a gente é sempre meio para alguma coisa, até nietzsche concorda quando diz que “o homem há de ser uma ponte, e não um fim”. é assim que me movo da pesquisa para a escrita: co-movendo-me.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
não sei bem como. às vezes não escrevo; quando muito, não penso, não nada, muito nada nesse enquanto, até chegar a escrever. é coisa que vai nascendo aos avessos, sem muito pensar na medida. é quando a palavra sai que a gente sabe que está escrevendo. mas nem sempre ela sai. tem horas que fica engasgada, e fica por muito tempo fundando gargantas para serem cada vez mais engasgadas. porque gargantas são formadas pelas palavras que ainda não nasceram, são o berço e a mãe por onde irromperam, a mão com que se agarra a garganta quando a voz já não dá conta de dizer qualquer coisa que preste para se pôr no texto.
é mesmo longo esse trabalho de se escrever um livro, uma tese. longo também é esse silêncio, que por muito tempo se traveste em horas, quando a ideia de um texto – seja poético ou acadêmico – se transmuta na vontade de chegar ao meio da página. a ideia de um poema ou de um ensaio poético ou de um capítulo da minha tese sempre quer chegar ao lugar onde nunca se alcançam. é uma relação mútua. solitária. nesse ensozinhamento, o lugar e as palavras convergem para um mesmo inalcançável infinito. tentar chegar ao centro nevrálgico de um texto é o desejo de cada palavra, como pretexto para se esconder no que ainda não foi possível dizer. escrever, então, está nesse lugar. escrever é o próprio lugar de onde a gente escorrega para esperar o próximo ônibus que nos levará a quem sabe uma ideia decente para o próximo tema. todo projeto acontece nesse augúrio mal firmado, nessa dança sem par definido porque há muita gente aqui dentro de mim. somos todos estranhos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
gosto de pensar que revisar é deixar renascer o texto nas possibilidades que ele deixou guardadas. às vezes, desfaço quantidades, dou graças aos abusos com os quais pego a palavra e digo que ela não presta mais, isso tudo é muito incontável. depende. depende do que não precisou ser dito, do que não compareceu à ideia no exato momento em que um texto soube ser texto, pois um texto pode ser, quase sempre é, qualquer coisa sem nome. não há como dizer o que está pronto dentro de uma prontidão de palavras. elas nunca são obedientes a uma expectativa.
mostrar o que se faz é uma aprendizagem, a gente sempre aprende quando se torna espectador das próprias pernas e das dos outros. elas – minhas pernas – me levam para não sei onde, deixam-se aparecer, são muito explícitas. nessa andança, mostro o que escrevo para quem quiser ver, mas nem sempre. ofereço meus trabalhos a quem tiver mais saliva para minha escrita, porque palavras são corpos, e muito cheias de carne para serem mastigadas.
não sei quantas vezes vi o dia nascer no sol que escrevi, perdi a conta de quantos poentes desenhei para um próximo poema que não existe, esqueci de dizer que muitas vezes não gosto do que escrevo porque depois que escrevo não sou mais eu. acho que não gosto de mim, mas insisto em me conquistar palavralmente. às vezes, outros leem o que escrevo e se apaixonam. a gente faz uns amores inexistentes até.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
é uma relação incestuosa. a gente se devora como se nasce. computador, papel, caneta, teclados, tudo se torna orgia. não há primeiro uma coisa e depois outra, tudo vai se dando como der, e aqui me refiro tanto aos trabalhos poéticos quanto aos acadêmicos. é suruba mesmo. os textos se misturam. começam como se fossem um poema e terminam como mais parágrafo da minha tese. começam como mais um capítulo da minha tese e escambam para um destino poemático, nunca dá para saber. e assim que é bom!
há muita memória, uma assunção contínua, bagagens que sempre aparecem e que comparecem quando estou no computador, quando estou no ônibus tentando me convencer de que essa história de retina descolada é uma enganação das mais balelas, daí arrisco umas ideias onde der para escrever, e hoje dá para se escrever em muitos lugares. uma relação um tanto erótica entre os dedos e a tela do smartphone, com aquelas carícias, com aquelas pontas dos dedos que sempre erram o alvo do maldito tecladinho virtual, mas acertam no tesão do texto que nasce, que foge do contexto, que faz você esquecer que lá fora tem uma paisagem. por isso digo ser uma relação erótica essa com a tecnologia, com essa tela que te mostra desde corpos nus até aquele mais incrível poema que você nunca irá escrever porque ele já nasceu, porque nem sabe que você é seu. mas, mesmo assim, dentro dessa agonia de se pertencer a vários lugares, sou de morar em casas com portas fechadas e janelas abertas para deixar o vento entrar. gosto de vento no corpo. a propósito, tudo é rascunho, seja na pele ou no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
não sei de onde elas vêm. elas são cheias de chegança. são crianças malcriadas se debatendo no chão, invertendo cotovelos para catar os novelos das frases tão secretamente amarradas em seus silêncios. não há hábitos, apenas habito a linha do meio entre a frase e a canção, quando o poema vem, carrega o chão nos delírios daquele verbo que não cansa de conjugar a terceira pessoa esquecida daquela conversa largada lá atrás, nas lembranças de um tempo que não volta. o cultivo a que me proponho é quando me cativo a ser mais outro alguém que não conheço ou quando dos que conheço me apaixono por despertencer ao meu nome, pois acredito que o nome prende a gente num equívoco personativo, que se repete a cada vez que fala pela voz de quem nos chama, pela vez de quem nos ama, dos contrários de um ritmo para o qual não há saída nem entrada. só há estância.
quando é o caso da minha tese, por exemplo, aí vem uns tratos diferenciados. sem deixar que a poemática se desafeiçoe, o texto ganha corpo de gente bem arrumada: penteio o verbo, boto os substantivos para dentro das calças, alinho a gola dos subjuntivos e me meto a dizer imprecisões bem precisas. é um delírio esse fio da navalha onde sempre se diz o errado pelo certo, quando a errância – que não para de errar – engana o quanto pode da normatividade, quando se pretende que um texto diga algo. bom mesmo é quando o texto não diz, mas cala. bom mesmo é quando a pesquisa nos leva ao lugar de seu início, quando a gente percebe que a resposta nunca é posta por completo.
não sei se isso quer dizer cultivar hábitos, mas gosto de ler poemas antes de escrever o que quer que seja. tenho lido muito os poetas de agora, tem muita gente boa por aí. mas tento um equilíbrio. não sou desses que considera uma escola literária a melhor, ou a época, ou se bom é o poeta que está vivo. todos os poetas são vivos sempre! seja homero ou carlito azevedo, quando nos pomos em leitura, trazemos suas obras para perto, ela nasce com a gente. por isso não existe poema contemporâneo, autor pré ou pós-moderno. independente do tempo, da época, da estatura da escrita, seus poemas, suas obras, seus tratados teóricos são sempre agora. instante.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
minha escrita ficou mais leve, mais precisa dentro de uma necessária imprecisão. aprendi a dar umas cambalhotas e não cair mais em cima do braço, porque já sofri muitos acidentes. escrever é algo que sempre fiz e sempre tive muito cuidado nesse empenho. antes, entendia o texto como algo que deveria ser escavado e dissecado, ou seja, um cadáver verbal. depois percebi que a palavra é um corpo vivo, vivíssimo! hoje não quero mais dissecar, analisar. hoje quero dançar com o que escrevo e leio, interpretar o mais sem-medidamente possível.
não deixo de me abrir para a travessia da linguagem, uma vez que nasci nela. tento sempre perceber o quanto a palavra é corporal no que fala em mim… em você… na gente… atravesso ruas, viro esquinas, misturo o que posso e não posso, mas sempre é possível dar mais um trago antes do meio-dia, na esperança de que esse trago traga mais afetos para perto de qualquer agonia. cada vez mais aprendo isso, cada vez mais descubro caminhos para o zelo com esse silêncio que fala alto em mim. a palavra me incorpora no que escrevo, independente de texto acadêmico ou poemático, sempre estou ali onde sou verbalmente encarnado.
minha tese ainda está em andamento, acho que já disse que estou terminando o curso de doutorado em teoria literária na ufrj, e se tudo correr bem, entregarei tudo pronto até o fim deste ano. mas já posso adiantar que mesmo entregando, minha pesquisa nunca estará completa. texto é uma coisa que nunca acaba; palavra muda, é voo e instante, um corpo mutante que sempre se descobre, que sempre pode mais do que já pôde. a palavra é hoje e nunca mais. como esta entrevista, por exemplo, que é um fracasso previsto para ser entregue, pois ao terminá-la estarei pronto para começá-la, e sempre a cada término será um precipício ou, quem sabe, o preparo para mais um princípio.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
quero sempre aquele projeto em que não estou. explico: é preciso que a gente esteja onde nos desencontramos. acredito ainda que a gente se perde quando se encontra, e nisso a gente se torna um começo. então estou sempre começando porque estou sempre me perdendo. a gente é um começo contínuo, tanto quanto um constante fim. assim, desse jeito: ao mesmo tempo: sem antes ou depois. então, não sei dizer com certeza qual projeto gostaria de fazer. mas tenho certeza de que será sempre um começo, e começaremos juntos, o projeto e eu.
o mesmo vale para os livros que gostaria de ler. só leio o que não existe, pois isto que não existe passa a existir com a leitura. quero dizer que não importa se o livro está vendendo muito, se todo mundo comenta, se cai em provas… nada disso importa enquanto ele não chega a mim. a história de um livro ou de qualquer obra, literária ou não, só começará quando tal obra for lida.
sobre leitura, refiro-me ao ato que nos torna corpo com a obra, quando interpretamos, pois na interpretação assimilamos o que nos chega. daí uma obra passa a compor nossa corporeidade, torna-se carne e sangue conosco.
a leitura desencadeia mundos, faz viger realidades. uma obra tem várias existências, tantas quantas forem seus leitores. muitos mundos acontecem, muitas realidades são erguidas, por isso a importância da leitura, da poesia, da literatura, enfim, da arte. acredito muito profundamente que é pela arte que o homem se torna humano, que o mundo se edifica e a gente se vê capaz de pensar, capaz de ouvir, de fazer ciranda com o outro, de ser o outro que somos enquanto mundos. então, esse livro que quero, ele sempre nunca existe e só passará a ter corpo quando nos encontrarmos e nos lermos. dá até para imitar o guimarães rosa aqui: nonada.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
num projeto, fico todo largo desde as pontas até o conchavo com a intenção de me dizer por mais uns instantes. coisa estranha é essa de tentar reter o dito num programa. pois se “dizer” é ser como a palavra que se espraia na linguagem (e com ela), como planejar o intento de mais uns conformes a serem atados num destino já findo? fluir seja talvez o nome disso que eu faço quando me amparo no despreparo de uma rotina. daí, a tentativa de medir com força métrica o nome da dificuldade do que torna fácil o enredo de mais algumas frases – compostas num dilema – possa ser, quem sabe, o enigma daquele dito do qual estou sempre engravidado. e digo mais: não é a primeira, tampouco a última sentença a mais difícil. a frase é sempre a palavra em seu conjunto musical-sintático, trazendo ainda as morfologias entortadas para dar conta de uma ideia incorporada em texto. e assim, sem muita eira nem beira, o importante é que se esteja sempre em estado de escrita, pois todas as palavras são sempre as primeiras, assim como, ao mesmo tempo, as últimas. é nesse corpo que me deixo, é com ele que me jogo não se sabe onde.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
o trabalho é um ato contínuo que acontece sem muita demanda lógica. preparar um esquema significa, em mim, a súplica por sua arruinação. cato os desfalques antes de eles investirem contra meus suplícios. nem sempre é uma questão de preferência a pertinência dos trabalhos. é mais – às vezes, menos – uma questão divinatória. ainda que eu ensaie um espaço para que as ações se encaixem, o ritmo de seus despertencimentos acabam ditando a estratégia das muitas irmanações. o gesto é quase sempre de ritualizar o impreciso. o desejo por algumas horas de pura atenção é uma dádiva que perco a cada joelho dobrado no chão. talvez por isso eu prefira os pecados.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
motivo não sei ao certo. se invocação, evocação ou provocação. há algo que nasce da nervura das letras. um propósito que se destina ao rompimento do ainda não traçado. sei lá se vislumbro uma paixão ou se me refaço pelo ímpeto dos nascimentos contínuos. seria muito romântico dar uma resposta bonita, dizer o que me motiva a partir de algumas belas imagens e tals… a verdade é que não sei. mas não sei, dentro do âmbito racional, da coisa certa, da pontualidade com que se dá uma resposta precisa. agora, se considerarmos o saber como degustação, como entrar na coisa tanto quanto se deixar penetrar por ela, aí até posso arriscar a dizer que sei; pois o saber nesse caso significará salivação, metabolismo do que me chega sem remetente e se torna tão corpo quanto minhas ruínas diárias. então, sei porque (me) provo, porque o saber tem o sentido gustativo do que se torna crescimento, e cada palavra esperada nasce enquanto o próprio fim da linguagem. essa presença do que se move para incorporações, essas liturgias presentes em minhas conversas com o outro, assim como a vontade que tenho de encenar no corpo o destino das vozes que me atravessam em diálogo, isso tudo talvez seja o que me motiva. presto muita atenção no modo como as pessoas falam e em como seus corpos dizem em silêncio as frases que serão eternizadas em meu esquecimento.
quanto a lembrar do momento em que decidi me dedicar à escrita, sempre que me pego pensando no início de minhas letras, sou levado à rotina dos meus abandonos (e isso aprendi com Manoel de Barros). princípio nunca houve, pois sempre esteve. claro que entendo o mote da pergunta, mas se fácil fosse pegar o caminho da resposta, não faria sentido o despacho diário das minhas procuras. o fundamento da minha escrita é algo regido pela falta de desfechos.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
penso que estilo é como uma marca de nascença que a gente vai depurando aos poucos, com a prática. é necessário, antes, perceber por quais caminhos estaremos propensos a sofrer quedas. daí, a cada vez que o chão se fizer destino dos ossos, será possível praticar o incansável ofício da leitura; uma vez que ler seria um exercício de recondução ao esfolamento da pele. ou ainda, a percepção da matéria que nos toma por vivências.
se uma palavra é um corpo vivíssimo, como gosto de pensar, então a desenvoltura de um estilo perpassa pela consagração da linguagem numa corporeidade de gestos verbais. Manoel de Barros diz que o estilo é um “fenômeno patológico da linguagem”, e eu concordo! afinal, o estilo seria aquilo que designa um modo singular de ser, aquilo que faz adoecer o corriqueiro das frases para o acontecimento dos desvios linguísticos. podemos então compreender esses desvios como adoecimento, na medida em que, nesse sentido, adoecer seria um modo de dizer que a palavra saiu do seu lugar-comum (equivocadamente compreendido como “saudável”) para ocupar um estranhamento normativo. minha dificuldade, portanto, está no aprimoramento consecutivo das minhas mortes, a fim de que a cada poema, a cada imagem que me desencadeie em texto, eu esteja pleno de todos os riscos dessa iminente parturiência. nesse contexto, algo parido de minhas letras teria a identidade do que eu sou.
quanto ao autor que tenha me influenciado, a dica já foi dada acima. Manoel de Barros é o poeta que me comove facinho. muitos poetas, escritores de maneira geral, me tocam; mas ele é o único que tatua densidades muito sérias em mim. sem que eu perceba direito, quando o leio fico com um sorriso estatelado na cara. ou emocionado, todo marejado de lágrimas.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
começo com minha maior referência em poesia, e mais uma vez falo dele: Manoel de Barros. recomendo qualquer livro seu. mas se for para escolher apenas um, então sugiro o primeiro que li: Livro sobre nada. ao lê-lo, fui completamente tomado pelo seu modo de escrita. percebi na prática o que era aquilo que eu ouvia na faculdade, ainda na graduação – entre 2005 e 2008 –, sobre tomar posse da própria língua, e também a respeito do aspecto autoral em tudo que escrevemos, principalmente no âmbito literário. além do mais, muito me chama a atenção o caráter poético-filosófico de tal obra, ou seja, o fato de trazer poematicamente o nada enquanto provocação pensante, na iminência de todas as possibilidades possíveis e – por que não? – impossíveis do texto, da realidade.
outro livro que recomendo e que foi fundamental em minha formação poética é O Guardador de Rebanhos, do heterônimo Alberto Caeiro, de Fernando Pessoa. dentro de um potente diálogo entre poesia e filosofia, esse livro foi um dos primeiros a me fazer perceber a íntima relação entre poesia e pensamento, que está muito além, dentro de minha concepção, de um gênero lírico. costumo defender que poesia é um modo de existência, onde o poético tem a ver com a movimentação da realidade e como captamos sua ação em nosso cotidiano.
por fim, chego à Maria Gabriela Llansol, com o seu Na casa de julho e agosto. livro que me marcou profundamente por trazer em sua tessitura uma poeticidade sem igual. conforme escrevi há algum tempo a respeito de tal obra, num artigo publicado em uma revista acadêmica, esse romance é um convite ao despropósito, ao mergulho na novidade de um teatro de pensamentos difusos que, em seu próprio tempo, inaugura um mundo de possibilidades, de leituras libertas das amarras conceituais.