Fábio Mariano é escritor, autor de O Gelo dos Destróieres (contos, Patuá).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Na verdade, ser escritor é a minha segunda profissão – exercida quase como uma resistência, uma esperança. A outra, a de professor de literatura no ensino médio, embora seja exercida da mesma maneira, é a que determina toda a organização da minha vida. Por isso, meu dia começa cedo, e minha rotina matinal é bastante regrada e comum: acordar, tomar banho, tomar café da manhã, e ir para a escola. Como vou de ônibus para o trabalho, uma de duas coisas me acompanha: ou a música, ou um livro – quando não os dois. Nesses trajetos curtos – de dez a quinze minutos – o espaço é para a leitura de alguns parágrafos, mas sempre são momentos em que estou bastante atento, tentando receber todos os estímulos do dia. Meus trajetos passam por grandes avenidas que são muito representativas da cidade onde moro – Campinas, em São Paulo – e às vezes, levantando a cabeça de um parágrafo ou de uma frase, acabo me encontrando com algo na rua, uma imagem, uma cena, que me desperta, e depois vai frutificar. Mas de resto, a manhã é sempre dedicada às aulas. Nos fins de semana, à leitura. Funciono pouco para escrever de manhã – eu acredito que sou mais receptivo do que produtivo nos primeiros minutos do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Posso dizer que tenho um ritual, que é o de rascunhar a mão e a caneta – mas pode ser em qualquer lugar. Ando sempre com um caderninho pequeno, onde eu anoto ideias para contos, frases, mas também com um caderno maior, que é o do trabalho no qual estou concentrado. Não tenho nenhum outro ritual.
Quanto às horas do dia, com certeza trabalho melhor depois de uma ou duas horas acordado. Mas como meus horários para escrever são escassos, eu tento utilizar o que posso aproveitar. Já foram as noites – principalmente quando eu ainda fazia o meu mestrado, e eu acreditava nesse período que só rendia à noite. Depois, precisei mudar minha rotina e acordar muito cedo quando comecei a dar aulas nos cinco dias da semana, e então as tardes foram os espaços que me sobraram. Eu sempre gostei delas, de sair, tomar um café ou um chá e escrever. Talvez esse seja também um ritual: uma bebida quente por perto quando escrevo, mas não é obrigatório.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados, até por conta da rotina de professor. Habsburgo, por exemplo, o romance no qual trabalhei durante 2018, foi escrito quase inteiro em Janeiro daquele ano, e o grosso do rascunho foi feito a mão, em doze dias sequenciais. Depois, veio a transcrição – mais nove dias sequenciais, nos quais o romance ganhou dois capítulos adicionais e muita reescrita. Então vieram duas revisões – feitas durante os dias de carnaval. Basicamente, tudo gira em torno de quando tenho tempo livre, mas nesses períodos mais longos, como os de férias escolares, tento manter uma rotina. Um sonho meu é conseguir fazer o que o Haruki Murakami diz que faz num dos ensaios de “Romancista por Vocação”: manter uma rotina de exercício físico que se segue de uma rotina de escrita. Mas, por enquanto, vou lutando para encaixar as duas coisas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A ficção tem uma relação estranha com a pesquisa. Eu gosto muito de ler autores sobre seu processo de escrita, então eu vejo que há autores de ficção que fazem pesquisa intensa, e outros que vão desenvolvendo as coisas a partir de uma ideia. Claro que há algum tipo de pesquisa, seja interna ou externa. Eu, por enquanto, me encaixo no tipo de autor que parte de uma ideia, ou de uma imagem. O caderno de anotações, que eu já mencionei, costuma ter de tudo um pouco – embora ultimamente eu tenha feito mais anotações longas que qualquer outra coisa. No início eu me dedicava a escrever contos – e os contos, quase sempre, partiam de uma ideia. Uma vez essa ideia colocada, eram dois ou três dias, talvez uma semana – eu não gostava de demorar mais que isso – desenvolvendo nos horários. Às vezes eu ia até umas duas da manhã, tendo começado em torno das nove da noite, escrevendo e revisando um conto. Eu sempre partia de uma imagem, cena ou situação. Talvez o melhor exemplo seja o de um dos contos de O Gelo dos Destróieres, que se originou com a notícia do fechamento do último cinema alternativo de Campinas. A imagem que me veio à cabeça foi a de um outro cinema – o penúltimo, fechado se não me engano uns quatro anos antes – e o entorno dele, numa galeria no centro da cidade. Aquele havia sido o último cinema de rua da cidade, e ficava localizado num ponto de prostituição conhecido da cidade. A partir dessa imagem, veio a pesquisa interna – meu pai encabulado por ter que passar por aquela rua quando voltávamos tarde das viagens a São Paulo, minhas idas àquele cinema, a videolocadora que ficava ali em frente. Fui buscar as experiências que eu associava com aquele cinema, as pessoas (eu conhecera um dos fundadores dele), e aí vem o processo de transformação. Então não sei se posso dizer que faço um movimento da pesquisa para a escrita. Habsburgo, por exemplo, foi uma ideia que me veio a partir de um curso que fiz como aluno especial na Unicamp. O professor trabalhou a relação entre professor e aluno em diferentes obras literárias, e, sendo ele especialista e literatura alemã, acabei associando uma série de leituras de língua alemã do início do século ao curso. No meio do caminho, fiquei obcecado pela história dos Habsburgo, então fui ler sobre eles. O problema é que o romance, em si, não tem nada a ver com a história dos Habsburgo – não nos fatos, os fatos são outros. Então para mim a pesquisa, por enquanto, funciona mais como um acúmulo de referências que disparam a memória – e aí eu busco, com os olhos, com a memória, com os ouvidos, a cidade.
Uma vez feito o rascunho inicial, parto depois para a revisão. Engraçado que com os contos eram poucas as notas, mas na produção do romance, acabei fazendo muitas delas. Muitas mesmo. E agora, trabalhando num novo projeto, tenho feito muitas notas no meio do processo. No fim das contas, Quanto mais tento me explicar, mais me convenço de que não sei se encontrei ainda um método, um processo único.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Primeiro eu não lidava. Escrever contos é ótimo por conta disso: você não lida muito com a procrastinação, porque se concentra e vai até o fim. Mas quando precisei me concentrar para os projetos mais longos (a harmonização dos contos de O Gelo dos Destróieres e o Habsburgo) eu procurei estruturar a rotina: fazer exercícios físicos, refeições em horários regrados, sempre. Eu procuro criar um ambiente de rotina para permitir que a rotina da escrita se desenvolva, ainda que seja difícil em determinados períodos. Quanto às expectativas e à ansiedade de trabalhar em projetos longos, eu procuro sempre fazer o melhor, revisar, e depois revisar de novo. E costumo enviar para alguns amigos, que discutem questões comigo. O Faulkner dizia uma coisa (ou atribuem a frase a ele, mas tem a cara dele): tente de novo, falhe de novo, falhe melhor. Eu parto desse princípio, o de que o escrito pronto já é uma falha, de que a gente nunca vai chegar na perfeição, e de que, se a achar que cheguei nela, é porque alguma coisa na minha vontade de escrever morreu.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Acabei respondendo um pouco antes. A passagem do papel para o computador já é uma primeira revisão, e geralmente nesse processo eu corto e adiciono muita coisa. Depois disso, gosto de passar pelo menos mais duas revisões. Aí envio para um grande amigo, o Gabriel Medeiros (autor de Andrômaca: Quarenta Semestres, pela Patuá) e me aconselho com ele. Discutimos o projeto – temos esse hábito desde a faculdade, quando nos conhecemos. E então eu faço uma revisão levando em consideração todas as sugestões dele, e envio o texto final.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu gosto da tecnologia. Gosto de Kindle, de digitar as coisas, mas o primeiro rascunho, quase sempre, é a mão. O computador tem uma vantagem muito grande, que é ser mais rápido que a mão. Em certo sentido, é até por isso que prefiro escrever a mão o rascunho inicial, porque a velocidade é limitada, e isso acaba ditando um ritmo mais calmo para o fluxo das ideias. A etapa de criação é muito ajudada por isso. Agora, as etapas posteriores, as revisões, por exemplo, são muito mais simples com o auxílio do computador. Eu não vejo sentido em não utilizá-lo, especialmente porque costumo usar muito a ferramenta de comentários do processador de texto. Faço comentários e comentários sobre o mesmo trecho, e isso ajuda na hora de pensar em opções.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu estou percebendo que me adiantei muito e misturei um monte de coisa nas resposta ali de cima. Vou retomar para ser mais objetivo. As ideias vêm principalmente de imagens e cenas. Eu falo muito “isso dá um conto” quando alguém conta uma história. Vou acumulando esses fragmentos e, em algum momento, isso vem. Costumo também utilizar muito das minhas experiências. Em certos momentos eu gosto de ficar no canto e observar, ao invés de participar das coisas que estou vivendo. Procuro prestar atenção em alguns detalhes também, o tipo de olhar, o movimento das mãos, os sotaques. Acredito que eu vou intuindo os personagens através desses detalhes, e então eles vão sendo recheados com memórias, com expectativas realizadas e frustradas em relação a pessoas e situações, e aí de repente os personagens começam a andar por conta própria. Então anotar essas coisas é fundamental, e também falar sobre os sonhos, porque nos sonhos essas coisas também vão aparecendo – eu também os trato como material. E um outro hábito, que me ajuda sempre a ter mais profundidade na hora de buscar as coisas na minha cabeça, é a meditação: preciso meditar (e tenho conseguido fazer isso menos do que gostaria) para poder me voltar para dentro e buscar o material que fica armazenado.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu sou um escritor iniciante, então não sei se estou qualificado a responder essa pergunta. Mas escrevia desde os 14 anos com intenções de publicar. Tenho um livro de contos da adolescência que, talvez, em algum momento, eu decida revisar e publicar. Acredito que o que mudou no processo todo foi a escrita paralela: as anotações, as referências, a busca de certos traços nos livros alheios. Às vezes volto para uma personagem de um livro que já li para ter certeza dos contornos da minha, e de que eles não se confundem com os contornos daquela personagem. Os múltiplos comentários, as revisões, eu fui amadurecendo isso. Mas acredito (e espero) que ainda exista muita coisa para mudar e aprender.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu sempre tenho projetos iniciados. Já fui muito apaixonado por futebol, muito mesmo, e gostaria muito de escrever um romance sobre o futebol, que envolvesse diferentes gerações, uma coisa de dentro mesmo – seria também uma maneira de homenagear meu pai, que foi jogador no futebol de Várzea. Mas acredito que esse projeto vai demorar a sair.
Claro, a última pergunta é a mais complicada de todas. É tanta coisa. Talvez um grande romance maia ou asteca, um manuscrito perdido pré-colombiano que fosse encontrado, de ficção científica. Acho que a coisa mais próxima disso é o conto La Noche Boca Arriba, do Cortázar. Numa edição com ilustrações.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Eu acredito que depende muito da natureza do projeto. Estou no meu quarto projeto literário, em certo sentido: o primeiro e o terceiro, O Gelo dos Destróieres e Ruído Branco, respectivamente, foram livros de contos; o segundo, Habsburgo, uma novela. Tenho que tomar cuidado para não me perder na obsessão, porque às vezes tendo a planejar demais, e aí o projeto simplesmente desanda. Os contos, muitas vezes, nascem de uma cena, de um rascunho, mas um projeto maior precisa de uma estruturação. Se essa estruturação for rígida demais, no entanto, não há nada para descobrir – e não consigo escrever se não houver nada para descobrir, a coisa me desinteressa. Quanto à frase, eu diria que, para um conto, é a última, com toda a certeza. Saber a hora de parar, eu acredito, é uma das grandes qualidades de um conto. Já com os projetos mais longos – novelas, romances – a primeira frase é a mais difícil, porque você planeja uma estrutura narrativa, alguns personagens, um enredo, mas aí começa a pensar por onde começar. Uma vez que comece, a narrativa mais longa vai sinalizando o final, mas não os caminhos que tomará até chegar a ele. E o final, eu acredito, é menos importante que esses caminhos.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
A semana de trabalho precisa ser muito organizada, porque se não for, vira um caos. Eu já trabalhei em três escolas diferentes, em cinco, e penso se, algum dia, será possível trabalhar em uma só. É um sonho. Mas enquanto conciliamos calendários, correções de prova, cursos, aulas e um monte de outras coisas, o jeito é trabalhar nas frestas. Nos momentos em que podemos. (Estou escrevendo essa entrevista no Carnaval, entre um remédio para dor de garganta e outro, e foi num carnaval que estruturei Habsburgo). Mas quanto a projetos literários, eu prefiro trabalhar sempre em uma coisa de cada vez. Se estou montando um livro de contos, sou capaz até de anotar ideias, mas guardo-as para mais tarde. Se um projeto (e é o caso dessa segunda novela, que não sai nem a pau!) começa a me consumir, a me deixar bloqueado, “entupido”, como costumo dizer, então eu deixo-o de lado por um tempo e vou trabalhar em outra coisa. Mas não consigo alternar, preciso de períodos de descanso.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
O momento em que eu me decidi a me dedicar à escrita… Vou começar por aqui. Eu brinco que foi na primeira infância. Eu adorava brincar com Lego, tinha uma caixona em casa. O problema é que eu não gostava só de montar, mas também de contar as histórias. E essa invenção da história de alguém é o que me chamou a atenção sempre, muito mais que qualquer outra coisa. Mas tenho que dar o devido crédito aos meus professores de redação e literatura do colegial, sobretudo das professoras de redação do primeiro e do terceiro ano. Um professor não ia deixar de reconhecer seus professores, né? Essas pessoas elogiaram algo que viam em mim, um talento, e fizeram a coisa mais bonita que um professor pode fazer: ver em nós algo que ainda não vemos. O Paulo Freire fala disso no Pedagogia da Autonomia, sobre uma professora dele. E eu já ouvi isso numa corrida de um lado da cidade para o outro também: um rapaz novinho de tudo, que disse que gostava muito de redação porque a professora o elogiou.
Também tive uma amiga, sobretudo, que me estimulou muito. Não sei se ela gostaria que eu mencionasse o nome dela, mas minha maneira de agradecer foi deixar o sobrenome dela em uma das personagens que aparece em um dos livros – ela sabe quem é. Não nos falamos muito hoje porque a vida é corrida, mas ter alguém que lê o que você escreve, e em quem você confie, para que não seja julgado, mas que vai te dizer se não gostar de algo… Acho que isso também fez parte da minha decisão ali no Ensino Médio.
Quanto ao que me motiva, eu acredito que é uma coisa simples: a vontade de se ver no outro. De estar onde o outro está, não permanentemente, mas de experimentá-lo, e descobrir algo no processo. É tão difícil descobrirmos algo por conta própria, e aprendemos muito com o outro. Por isso acho que a escrita é tão fundamental para mim: quero descobrir.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Essa questão do estilo próprio é difícil, ainda mais para alguém com tão pouca coisa publicada como eu. Mas acredito que a maior dificuldade que temos é sermos assombrados pela ideia do estilo próprio. A partir do momento em que o Gabriel Morais Medeiros (editor da Ofícios Terrestres e autor de dois livros de poesia maravilhosos pela Patuá – não consigo não falar dele quando falo da minha literatura, pela nossa amizade literária, pela nossa irmandade literária), a partir do momento em que ele me disse que via no meu estilo algumas coisas, e que gostava muito dessas coisas, eu acho que deixei de me preocupar um pouco. Eu tento ser mais fiel ao que meus personagens querem dizer, quero achar as palavras deles, e me deixar de lado. Claro que faço opções, mas é como se eu estivesse procurando um estetoscópio, um fone de ouvido, e não uma caneta propriamente dita.
Quanto ao autor, não acredito que alguém tenha me influenciado mais que outros. Mas acredito que uma referência está sempre no meu norte, que é o Milan Kundera. Acredito que minha visão de literatura, a partir da leitura dele, mudou muito, então teria de dizer que ele é uma influência muito forte.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Essa é uma coisa que faço com muito gosto.
O primeiro livro é o Perifobia, da Lilia Guerra, publicado pela Editora Patuá em 2018. O livro é de contos, e é um dos melhores livros de contos que já li. Principalmente porque, enquanto tenho a impressão de que uma grande gama de escritores vê o conto como um meio, a Lilia o vê como um fim, como o gênero que ela pratica. E que olhar! Que capacidade de ver, de descrever, que personagens reais, e que ponto de vista (no sentido mais literal possível, o ponto de onde vemos a história) ela traz! Desde o vocabulário dos personagens, os enredos. O primeiro conto, Rascunho de Amaro, é tão lindo que não é a história do Amaro, mas é a história do Rascunho que a companheira traça dele, em meio à sua rotina. Ela se demite de um emprego, redescobre sua beleza, trabalha duro, faz café, conta a história do pessoal da rua, e em meio a tudo isso ainda descobre o rascunho do companheiro. É uma das coisas mais lindas que já vi em literatura.
O segundo é o Torto Arado, do Itamar Vieira Júnior, publicado pela Editora Todavia, em 2019. Sei que muita gente fala sobre ele, porque o livro está em destaque, ganhou o prêmio Leya de 2018, então quero chamar a atenção para a minha experiência pessoal. De uma maneira bem simples, Torto Arado mudou minha visão de história do Brasil. Me fez ver o Brasil de uma maneira que eu não conseguia ver, do ponto de vista da história do caminho da abolição aos dias de hoje. E essa história me faltava – e olha que eu tive uma educação muito, muito privilegiada, num certo sentido, o que faz a gente pensar o quanto nossa história é silenciada. O momento em que sabemos a história de Donana, aquilo foi, para mim, uma revelação. O Itamar, junto com a Deborah Dornellas e o seu Por Cima do Mar, com a Vita, também me devolveram uma sensação de que a nossa literatura pode ser tão grande quanto aqueles gigantes que eu via no passado, o Graciliano, o Guimarães, a Clarice, o Lúcio Cardoso… Para mim, foi a partir dessas leituras (primeiro da Deborah, depois do Itamar) que eu cheguei a me acreditar possível como um escritor – porque é preciso se acreditar possível como escritor também.
Eu sei que já falei um terceiro livro ali no meio da resposta do Itamar, mas se me for permitido falar de mais um, eu queria mencionar o Cartografia do Silêncio, da Caroline Policarpo Veloso, publicado pela Patuá em 2019. Trocamos livros quando eu lancei o meu Habsburgo, ali no Patuscada, e eu li o livro da Caroline no dia seguinte ao lançamento… E foi um soco no estômago. Uma poesia firme, clara – essa foi a primeira coisa que me pegou. É uma poesia firme e clara, uma poesia que pega a gente pelos cinco sentidos, antes de pegar pelo sentido da palavra… E aí, quando você vai ver, está envolvido nessa cartografia que ela quer que a gente realize. Você se vê silenciando, ouvindo o seu próprio corpo, mas levado à experiência que ela propõe, à areia, à água, às asas de pedra que ela coloca nas costas.