Fábio Cairolli é professor de Língua e Literatura Latinas na Universidade Federal Fluminense.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Antes de ter filhos, tinha uma rotina muito estável: acordava às seis da manhã, fazia meu café, corria e logo me sentava para trabalhar. Quando minha filha mais velha nasceu, toda a rotina ruiu e as atividades passaram todas a circular ao redor da dinâmica aleatória da infância. Ao entrar para o magistério superior, essa realidade se fragmentou ainda mais, já que a docência ocorre primordialmente pela manhã, mas não em todos os dias da semana. Quando a vida da minha filha mais velha chegou à idade em que suas rotinas eram mais simples e evidentes, comecei tudo de novo, de modo que o raro traço de rotina matinal que tenho tido é o despertar aflito e apaixonado com o choro de um recém-nascido. O que, aliás, é uma experiência criativa fascinante.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Antigamente, a manhã era o melhor horário de trabalho para mim. Além de ser o horário em que as faculdades físicas e mentais estavam mais repousadas, conseguia sentar para escrever bem cedo e, atrasando um pouco o almoço, manter um fluxo contínuo de concentração de cinco, seis horas. Com filhos, tudo mudou. Não só a manhã não é o auge da disposição física, já que é antecedida pela noite conturbada, como a casa fica mais tranquila pela tarde, turno em que a mais velha vai à escola e a maior parte das correrias domésticas já foi resolvida. Tive, com isso, que me adaptar à escritura vespertina.
O ritual que mais me agrada é realizar alguma atividade física antes de escrever. O exercício respiratório e a serotonina costumam aplacar bem a inquietude do corpo e eu meu concentro melhor; contudo, nem sempre posso me dar ao luxo de fazer as duas coisas. Coar uma térmica de café antes de escrever também é um ritual que sigo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Durante o doutorado, único período em que pude me dedicar exclusivamente aos estudos, escrevia todos os dias. Com a docência, essa frequência caiu. A cada semestre, é preciso planejar uma rotina diferente de aulas, preparação, atividades administrativas e de orientação, e às vezes a escritura só é possível em janelas bem estreitas. Idealmente, estabeleço uma meta não mais diária, mas semanal, de me dedicar à escrita em pelo menos dois meio-períodos por semana, algo entre seis a oito horas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando estou produzindo textos acadêmicos ou traduções, os processos são diferentes de quando escrevo meus próprios poemas. Eu gosto que a fase inicial da pesquisa e da compilação de notas seja bem caótica: eu permito que meu cérebro oscile muito livremente entre os variados assuntos que me interessam, academicamente ou não. Não é raro que o modo de observar um objeto dê respostas (ou proponha novas perguntas) sobre assuntos que são pouco relacionados. De alguma maneira, essa observação despretensiosa faz com que os contornos iniciais de um texto fermentem, por assim dizer, de forma inconsciente. Daí em diante, no caso da escrita acadêmica é a hora de compilar os dados, estabelecer os fundamentos bibliográficos, descobrir se as proposições primárias se justificam, o que é na verdade a fase mais importante da escrita e a que comporta menos redação propriamente dita. Tanto na academia quanto na poesia, a hora em que passo a redigir, no papel ou na mente, é um momento que sou tomado de grande entusiasmo, o próprio furor horaciano. Geralmente, raciocino e elaboro o texto melhor caminhando, o que transforma o trabalho em uma verdadeira dança das cadeiras, já que fico sentando e levantando até engrenar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como pós-graduando, passei pela maior parte das aflições que caracterizam essa fase do percurso intelectual, de me sentir incapaz e enganador, de achar que perdia o rumo ou que a utilidade do projeto que desenvolvia era nula. No fim, com todo o mérito e demérito, cheguei à defesa, tive condições de minorar julgamentos pretensiosos que fazia sobre mim mesmo e de sobreviver a críticas que são inevitavelmente mais duras do que esperamos. E sobreviver a isso foi um antídoto para os medos e bloqueios que tinha antes. Hoje, tenho muito menos pretensão em relação ao que escrevo, digo sempre a mim mesmo que o que escrevo e submeto a publicação são ideias que nunca serão definitivas e correspondem a uma fase do meu pensamento que não posso ter medo ou vergonha de mudar no futuro. Essa atitude afasta o medo a faz com que eu me permita dizer determinadas coisas que um julgamento muito severo levaria mais tempo para formular. Ainda circula pelo meio acadêmico certa noção de que os textos que se publicam devem ser o resultado incontestável de uma pesquisa, sendo menos incentivada a apresentação de resultados parciais, ou de reflexões menos pretensiosas, mas, principalmente, pouco diálogo é fomentado: todos têm urgência de publicar textos cada vez mais abundantes e perfeitos e que, por isso mesmo, são pouco lidos e discutidos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tenho um padrão unitário para o trabalho de revisão. Por vezes, uma única revisão me basta para submeter um artigo. Mas pode ocorrer de eu reler diversas vezes até acreditar na unidade do texto. O artigo que estou trabalhando presentemente está com a redação pronta há três meses, mas eu ainda continuo instigado pelo assunto, ruminando o tema, incerto se devo ou não tentar cavar mais fundo. Normalmente, só mostro o trabalho para outras pessoas quando o prazo de publicação permite, o que nem sempre é o caso. É mais comum que eu apresente meus textos no formato de comunicação oral antes de submetê-los a publicação, dado que os eventos acadêmicos permitem uma interlocução diferente, mais informal, que o texto publicado nem sempre permite.
Já quando escrevo poesia, ao considerar o poema acabado faço apenas uma leitura, e no dia seguinte, ao digitar, faço a segunda revisão, para só voltar a julgar o texto quando pensar em fazê-lo circular, o que pode levar bastante tempo e mudar totalmente a perspectiva da leitura.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou fascinado pela tecnologia em geral, e não apenas por aquela mais relacionada às letras e à escritura propriamente dita. Acompanho o trabalho de colegas que desenvolvem pesquisas com robótica e inteligência artificial, por exemplo, o que pode soar estranho em um pesquisador que trabalha com as literaturas da Antiguidade Clássica. A verdade, contudo, é que um objeto de pesquisa que venha do mundo antigo demanda uma observação tão diversificada que os Estudos Clássicos costumam ser protagonistas no uso de tecnologias avançadas – veja-se o uso de equipamentos avançados de tomografia para tentar ler o interior dos papiros carbonizados pela erupção do Vesúvio, por exemplo. Para escrita acadêmica, faço questão de usar meu computador, onde acumulo compulsivamente os PDFs de que preciso. Já para poesia, prefiro fazer em um caderno, à mão, pois gosto do tempo que o processo leva, do valor estético da letra, sempre única, do traçado da caneta e, além de tudo, por me forçar a fazer uma leitura diferente durante a digitação.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm da combinação de dois hábitos opostos, mas complementares: por um lado, deixo que minha curiosidade vague com muita liberdade por todo o tipo de assunto. Como disse antes, tenho uma gama ampla de interesses, entre aqueles temas que desenvolvo academicamente e outros com os quais não tenho comprometimento profissional. Isso permite que paradigmas diferentes se contaminem, algo que tem se revelado produtivo para mim. Por outro lado, tento manter uma continuidade nos assuntos de meu interesse. Se estou interessado, por exemplo, em ecologia, acompanho com rigor uma coluna semanal especializada; se me interesso por um determinado autor, período, ou gênero literário, monto uma lista de obras prioritárias para ir encaixando na minha rotina de leitura. Dessa forma, o pensamento funciona de forma circular e cumulativo, alternando entre interesse ativo e passivo por cada assunto, sedimentando e maturando as ideias enquanto se ocupa de outra coisa.
Mais recentemente, a docência se revelou um ambiente que fomenta ideias de escrita. Ao elaborar os cursos que ministro, sou muitas vezes levado a indagações que não tinham me ocorrido quando aluno, mas que são prementes diante da necessidade de fomentar o desenvolvimento de outras pessoas. Estava certo quem disse que a gente aprende muito mais como professor do que como aluno. Esse tipo de questão é excelente ponto de partida para a pesquisa e para a escrita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Academicamente, o que mudou foi a maturidade com a qual lido com os temas que me ocupam. Estou em melhores condições de julgar o mérito das fontes disponíveis, sou mais crítico em relação à forma como desenvolvo a argumentação e me preocupo com a clareza. Quanto mais tempo a gente se dedica aos mesmos temas, menos inocente é a observação que se é capaz de fazer. O que pode se tornar uma segurança perigosa também. Por isso mesmo, acho que a principal mudança que ocorreu nos últimos anos foi passar a fazer eu mesmo um exercício de refutação dos meus argumentos. Em uma das revisões que faço dos meus textos científicos, tento sempre ir respondendo à pergunta “de que maneira o leitor pode discordar disso?” Geralmente, uma argumentação frágil pode ser percebida rapidamente pela objeção que o próprio autor identifica.
Já como poeta, minha escritura mudou na medida em que fui lendo mais e mais poesia, e principalmente por estar fazendo essa leitura na academia, como pesquisador e ouvindo as melhores vozes sobre o assunto. Ao ser capaz de dizer o que aprecio em cada autor de forma mais clara e com mais volume de informação, passei a ser capaz de dizer também a mim mesmo o que queria escrever com mais clareza.
Se pudesse voltar no tempo, diria para aquele doutorando para acreditar mais na própria pesquisa. O doutorado é a fase mais solitária da formação intelectual, além de ser também uma fase de pouca interlocução. Acabei ouvindo opiniões mais conservadoras e deixei de fora da tese coisas que gostaria de ver lá, e que hoje sei que figurariam bem. Provavelmente, também teria, apesar da estreiteza do meu cronograma, apresentado mais vezes os resultados parciais da pesquisa, pois teria ouvido uma diversidade maior de opiniões. É muito em função daqueles quatro anos da minha vida que publico textos para os quais não considero ter uma resposta definitiva, de modo a poder ouvir os outros, de modo a poder retornar ao tema depois.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O que me mantém em movimento é a capacidade de sonhar. Até por isso, tenho uma infinidade de projetos, muitos deles malucos, que gostaria de começar. Deixo eles brilhando em um canto do cérebro, até que em certos momentos surgem as condições favoráveis para realizar alguns deles. Por exemplo, sempre tive vontade de montar um projeto que envolvesse livros e manuscritos raros, mas nunca priorizei esse tema. Agora, contudo, que estou trabalhando no Rio de Janeiro, a proximidade com uma instituição como a Biblioteca Nacional torna mais viável o acesso a materiais que antes só conhecia nos catálogos e, por isso, acho que tentarei dar alguns passos nessa direção. Projetos que envolvam aplicação de tecnologia no estudo do latim e de suas literaturas são outro sonho distante que envolvem minha área de atuação. Nem falo dos projetos poéticos, tantas são as coisas que queria fazer.
Os livros que gostaria de ler que ainda não existem são aqueles nos quais vejo meus interlocutores mais próximos trabalhando: testemunho sua empolgação e esforço, vez por outra sou chamado a opinar sobre certas passagens, mas a longa gestação dessas obras me enche de ansiedade. Igualmente, gostaria de ver como livros os dois ou três projetos que tenho, cuja gestação, elefantina, se alonga mais do que o coração aguenta.